Depois de ler a edição 62 “O Capitalismo sob revisão”, Paulo D. Branco refletiu e preparou esse artigo especial para Página22. Ele é Coordenador de Programa do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e sócio-fundador da Ekobé, empresa de consultoria em sustentabilidade corporativa. Leia abaixo.
Chegou a hora de revisitar o triple bottom line
A atual edição da Página22, que circula sob o título “Capitalismo sob revisão – o mainstream começa a refletir sobre os limites do sistema”, reforça a vocação da revista em capturar com precisão prioridades e colocá-las no centro do debate sobre sustentabilidade. Desta vez, com a proximidade da Rio+20, o tema escolhido não poderia ser outro senão a imperiosa necessidade de revisão do atual sistema econômico, em sintonia com os limites dos ecossistemas e o bem-estar da sociedade.
Apesar desta não ser uma nova prioridade para os leitores da revista, como aponta seu próprio editorial, é sim notícia o fato de representantes do sistema dominante a colocarem em destaque quando o assunto é a busca de soluções para a crise civilizatória em que nos colocamos. Ao tema têm se dedicado pessoas como André Lara Resende, ex-presidente do Banco Central; Wolfgang Shäuble, ministro alemão das Finanças e mesmo o Prof. Michael Porter, que ao repertório sobre estratégia competitiva vem acrescentando oportunos insights sobre a criação de valor compartilhado.
Foi essa novidade, abordada na reportagem de capa “A hora é agora”, que me levou a um mergulho profundo, daqueles que nos fazem questionar certezas e nos encantam com novas perguntas. Vamos, então, aos questionamentos e encantamentos.
Para falar sobre os primeiros – os questionamentos –, devo esclarecer ao leitor que nos últimos 15 anos venho atuando como consultor, educador e pesquisador, somando esforços às iniciativas de líderes empresariais brasileiros que buscam sintonizar os seus negócios com os desafios do desenvolvimento sustentável.
Nessa trajetória aprendi muitas coisas, dentre elas o fato de que os negócios, para se proporem sustentáveis, devem buscar um equilíbrio dinâmico entre as dimensões econômica, social e ambiental. A essa busca o inglês John Elkington, fundador da consultoria SustainAbility e certamente conhecido do leitor, atribuiu a expressão gestão do triple bottom line (TBL), que costumamos representar por três círculos que se sobrepõem como na figura a seguir.
Sou testemunha do quanto esta representação tem sido útil para que gestores e tomadores de decisão em geral, ampliem sua percepção sobre o papel das empresas na criação de valor não só para seus acionistas, como para o conjunto dos seus stakeholders. Ao mesmo tempo me questiono com frequência, e a cada dia com mais intensidade, se esta é uma representação adequada frente aos desafios com que nos defrontamos. As evidências têm me mostrado que não, já que ela tem alimentado uma espécie de autoengano [1] no mundo empresarial, levando líderes bem intencionados a acreditarem ser suficiente a pergunta “Com base em nosso plano de negócios, qual deve ser nossa estratégia de sustentabilidade?”.
Ao mesmo tempo em que se mostra pouco ousada, perpetuando o business as usual, essa pergunta desvia a atenção, os esforços e os recursos das organizações, em relação aos desafios que realmente devem ser enfrentados. Aqui convido o leitor a desfrutar do mesmo encantamento que tive ao mergulhar na reportagem “A hora é agora”, que, ao elencar um conjunto de vozes aparentemente dissonantes, como Naomi Klein – um dos símbolos dos movimentos antiglobalização – e o ministro das finanças da Alemanha Wolfgang Shäuble, nos confronta com esse autoengano que nos impede de avançar: a crença no crescimento econômico constante em um planeta com recursos finitos.
Instigado por esse confronto, saí em busca do que o próprio Elkington vem abordando quanto o assunto é o TBL, o que me levou a um acalorado debate [2] em torno do conceito de criação de valor compartilhado e da própria necessidade de não nos limitarmos às contribuições que os círculos sobrepostos já nos deram. Nesse momento me permiti revisitar a figura quase sagrada que por tantos anos tenho ajudado a propagar. Ao fazê-lo, me encantei com as perguntas e possibilidades que decorrem de um novo arranjo. Mais simples esteticamente, mas com profundas consequências na dinâmica da sociedade contemporânea, esse rearranjo seria mais ou menos como a figura que segue.
[1] Autoengano é o resultado de um processo mental que faz com que um indivíduo, em um momento, aceite como verdadeira uma informação tida como falsa por ele mesmo noutro momento. Ou como nos diz o Prof. Eduardo Giannetti em seu livro de mesmo nome, autoengano “são as mentiras que contamos para nós mesmos, como uma forma que a nossa mente tem de nos autoproteger de situações ou conflitos cuja consciência nos seria demasiadamente dolorosa.”
[2] Ver texto de John Elkington (Don’t abandon CSR for creating shared value just yet) publicado no Guardian em 25 de maio de 2011 e comentários a ele associados.
Certamente não se trata de uma grande sacada, já que é assim que as dimensões retratadas são percebidas por algumas linhas de pensamento, entre elas a dos economistas ecológicos, da qual faz parte Herman Daly e seu conceito de economia estacionária (steady-state). Mesmo assim, me encantei ao pensar nos líderes empresariais com que tenho convivido e nos que ainda conhecerei, mobilizados por uma pergunta que decorre desta nova figura: “Tendo em vista o imperativo global da sustentabilidade, qual deve ser nosso plano de negócios?”
Alinhada com o reconhecimento de limites impostos pela biosfera e com o fato da economia ser um subsistema da sociedade que deve estar a serviço das pessoas e não das coisas, essa pergunta me parece suficientemente robusta e inspiradora para desencadear as inovações de ruptura que hoje se fazem necessárias.
Aqui estamos falando de inovações que de fato promovam reduções absolutas, e não apenas relativas, no consumo de recursos naturais e energia; que assumam a capacidade de suporte do planeta como um aliado e não uma restrição; e contribuam para que mais e mais pessoas tenham no ato de consumo a satisfação de suas necessidades e a expressão de seu bem-estar.
Pensar nessas possibilidades de inovação e já identificá-las nos modelos de negócios de algumas organizações pioneiras me estimula, assim como aguardar o novo número da Página22 e me permitir novos mergulhos em conteúdos sempre instigantes.