É no intervalo entre as necessidades mínimas e os limites da natureza que precisamos construir nossa prosperidade. Cabe à economia servir de instrumento para gerir esse espaço
Independentemente do resultado oficial da Rio+20, uma coisa já é certa: reviramos a agenda da sustentabilidade, estabelecemos uma enormidade de conexões e colocamos novas ou renovadas perspectivas sobre questões vitais para o nosso futuro próximo. Entre estas, a discussão sobre o papel da economia na construção da sustentabilidade tem destaque especial, tanto pelas polêmicas sobre a “economia verde” quanto pelo assanhamento geral dos apetites financeiros.
Em meio a tanto ruído, o assessório quase toma o lugar do principal, e nos vemos debatendo imagens borradas, em vez de nos voltar para o substantivo.
Há uma turma que, ofuscada pelo brilho verde das novas oportunidades de negócio, embarca sem a menor crítica na promessa de uma festa em que haveria lugar para todos, do catador ao político, do consultor ao magnata. Entusiastas do “business as usual incrementado” comemoram que será dado o devido valor às suas inovações (reais ou só aparentes). Que afluirão às gôndolas milhões de consumidores, ávidos por purgar suas consciências consumistas comprando produtos “sustentáveis”. Que aportarão nas bolsas de valores os bilionários investidores, órfãos da crise do subprime e aflitos por novos mares para ancorar seus ativos sem lastro.
Já no bloco do “não à economia verde” estão os que elegeram essa imagem como materialização do capitalismo, astuto e perverso, prestes a abocanhar mais um naco do Universo, mercantilizando e privatizando os bens comuns ofertados pela natureza, como a água, a atmosfera e a biodiversidade. Outros – inclusive setores do capitalismo e do populismo – a veem como ardil tramado pelos ricos países do Norte que, em um golpe magistral, usam o “pretexto ambiental” para perpetuar a posição subalterna dos países do Sul, condenados eternamente a vender commodities, mão de obra barata e, agora, também serviços ambientais. Para isso, seríamos compelidos a comprar tecnologias do Norte, financiadas sob a capa da cooperação internacional e servindo como vetor para um novo ciclo de endividamento, com a devida extração de juros e royalties.
O mundo é mesmo cheio de oportunidades e maldades. É justo o empreendedor buscar negócios, como é legítimo e necessário manter a crítica a falsas soluções e armadilhas. O problema é jogar tudo isso em um rótulo borrado. A esta altura, está claro que não faz sentido debater “economia verde” como um conceito científico ou um projeto socioeconômico. O termo pode servir como etiqueta para simplificar discursos e catalisar propostas, mas o que interessa mesmo é saber como faremos para que a economia – de qualquer cor – trabalhe para as pessoas, e não para fazer as pessoas servirem aos mercados. Como fazer com que a prosperidade global seja construída respeitando, de um lado, o “piso social” e, de outro, o “teto ambiental”?
E aqui chegamos na rosquinha (ou donut, para quem prefira). Refiro-me à proposta trazida pela Oxfam ao debate da Rio+20. Em uma feliz combinação de consistência com simplicidade e bom humor, a pesquisadora Kate Raworth usa a figura de um gráfico tipo donut para representar o que seria o “espaço seguro e justo para a humanidade”, a partir do reconhecimento de dois limites fundamentais.
De um lado, nosso projeto de civilização: o imperativo ético (e pragmático) de satisfazer os direitos humanos, não deixando em privação (e revolta) nossos concidadãos globais. De outro, o planeta em que vivemos, naturalmente limitado em sua capacidade para nos prover recursos e serviços essenciais à vida.
É no intervalo entre esses dois limites que precisamos construir nossa prosperidade. E esse deve ser o papel da economia: mobilizar, aproveitar e distribuir recursos – dentro desses limites. Mas como saber se estamos ficando aquém do necessário social ou indo além do possível ambiental [1]? É nesse ponto que a rosquinha vira bússola: um diagrama com indicadores e métricas que nos permitam tangibilizar e gerenciar os limites a que estamos sujeitos. (Veja mais sobre esta proposta em: vitaecivilis.org/rosquinha e em oxfam.org/grow)
[1] No exemplo proposto pela Oxfam, o teto ambiental é medido conforme estudo do Stockholm Resilience Center, e o piso social, com métricas para temas destacados no processo de consulta da Rio+20. Mas o convite é para que as métricas, respeitando uma lógica geral, variem conforme a realidade de cada situação
Que a saída de nossa crise civilizacional envolve a economia, não há dúvida, pois não temos outro instrumento para atingir a escala e o volume de transformação necessários, no curto tempo de que dispomos. Mas não uma economia alucinada e sem fronteiras, que nos levou às bolhas especulativas, à crise global e à hiperconcentração, com suas trágicas mazelas. Seria um desastre uma nova onda especulativa global, à base de “bônus da água”, “debêntures do clima”, “derivativos da biodiversidade” e outras insanidades.
Disso, não precisamos. Mas, sim, de uma economia que reconheça o valor da natureza. De mecanismos para medir o quão distantes estamos dos limites sociais e ambientais e que, combinados com uma governança efetiva e democrática, promovam a prosperidade e o bem-viver, no espaço potencialmente seguro e justo de que dispomos
* COORDENADOR DE PROCESSOS INTERNACIONAIS DO INSTITUTO VITAE CIVILIS