Vinte anos depois, a maior questão é encontrar os meios para viabilizar a transição a uma nova economia, que se coloque a serviço do bem-estar humano – dentro dos limites e ciclos da natureza
O ceticismo em torno da Rio+20 tem levado analistas a compará-la com a fracassada conferência do clima de Copenhague, realizada em 2009, e a bem- -sucedida Cúpula da Terra de 1992, a Rio 92. Embora seja de fato remota a perspectiva de um resultado ambicioso na parte oficial do evento, parece pouco apropriado contrastá-lo com o encontro de 1992 [1], que sacramentou todo um ciclo de anos de negociações de três convenções (Clima, Biodiversidade e Desertificação), da Agenda 21 e das declarações do Rio e sobre florestas. “A Rio 92 foi o momento de mostrar o que deveria ser feito daí em diante para o mundo alcançar o desenvo lvimento sustentável”, lembra Rubens Born, coordenador adjunto do Instituto Vitae Civilis.
[1] O pacote de 1992 foi gestado ainda na década anterior, no contexto das discussões da Comissão Brundtland, que produziu o clássico relatório Nosso Futuro Comum, em 1987.
Agora, o desafio é fazer. “Desta vez, o que se necessita é estabelecer meios que viabilizem o desenvolvimento sustentável”, diz Nick Nuttall, porta-voz do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), ao tentar delimitar o propósito da reunião que ocorrerá este mês entre os dias 20 e 22 no Riocentro. “Nunca se pretendeu fazer da Rio+20 uma cúpula de tratados e convenções como em 1992”, pondera.
Entre reportagens e entrevistas da edição 64 da Página22, acompanhe os assuntos-chave que estarão (ou deveriam estar) nos debates da Conferência. Funcionam como pontos de acupuntura, ou seja, se estimulados, repercutem de forma transversal no organismo como um todo. São pontos sensíveis e nevrálgicos na direção para o “futuro que queremos”. Nessa transição, a economia deve ser usada como um meio a serviço de uma sociedade mais justa e com maior qualidade de vida.
Para o Pnuma, a economia verde e socialmente inclusiva é o caminho mais efetivo para alcançar o desenvolvimento sustentável, conforme preconiza o relatório liderado pelo economista indiano Pavan Sukhdev, publicado em 2011. O trabalho demonstra que a economia verde até produziria taxas mais altas de crescimento a médio e longo prazo. Outro estudo, publicado em março último pelo Departamento de Desenvolvimento Sustentável da ONU, com autoria de ícones da economia ecológica como o americano Herman Daly, concorda com os incentivos verdes recomendados pelo Pnuma, mas defende a primazia do bem-estar humano e dos limites ecológicos planetários sobre o crescimento.
Mas hoje o pano de fundo é especialmente desafiador. O quadro socioeconômico adverso nos países ricos desacelera a travessia rumo a essa economia mais sustentável que se advoga (mais em texto no final da página). Segundo Eduardo Viola, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, qualquer avanço substancial demanda o comprometimento das três superpotências contemporâneas – Estados Unidos, União Europeia e China –, com apoio do que ele classifica como as cinco grandes potências – Brasil, Índia, Coreia do Sul, Japão e Rússia. Trata-se do grupo responsável pela maior parte dos problemas ambientais e climáticos do planeta e que possui capital humano, recursos naturais e tecnologia para reverter a atual crise ambiental.
O problema é que, das três superpotências, duas – EUA e UE – estão mais preocupadas com suas dificuldades econômicas domésticas do que em assinar acordos globais que impliquem aumento de gastos públicos e maior carga financeira nas costas das empresas. Para alguns analistas, a crise tem sido uma boa desculpa para os países ricos justificarem o conservadorismo de sua atuação recente nas negociações do clima e na agenda da Rio+20. “Há uma crise do planeta que é muito mais grave que a crise econômica atual e terá repercussões econômicas globais muito dramáticas”, adverte o advogado Fabio Feldmann, ex-secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo. A seu ver, a crise econômica, ao contrário, deveria ser utilizada como oportunidade para estimular o desenvolvimento sustentável.
Feldmann resgata a recomendação do Relatório Stern, de 2006: o investimento anual de 1% a 2% do Produto Interno Bruto mundial em energia limpa e tecnologias sustentáveis evitaria a perda de 20% desse mesmo PIB até 2050, decorrente de desastres climáticos, perdas florestais e na agricultura e aumento no nível dos oceanos. Mas a lógica convencional de curto prazo é a que impera no momento, embora já existam tentativas de mudá-la, como foi o caso dos pacotes de recuperação econômica lançados logo após o início da crise financeira de 2008. Perto de 15% do pacote total de US$ 3 trilhões foram dedicados a incentivos verdes, segundo levantamento do HSBC publicado em 2009.
Além da diplomacia
Apesar do contexto desfavorável, a Rio+20 poderá lançar uma nova agenda para o mundo acelerar seu caminho rumo a um futuro mais sustentável. Diferentemente do que ocorreu na Rio 92, a nova agenda – que pautará o debate sobre meio ambiente e sustentabilidade ao longo desta década – deve priorizar os instrumentos concretos para viabilizar a transição rumo a uma economia sustentável. Essa agenda pós-Rio+20 não é obra exclusivamente diplomática. Inclui uma gama ampla de atores, tais como mídia, movimentos sociais, ambientalistas, empresas, cientistas e governos locais.
“Não podemos somente olhar para os diplomatas para mudar o mundo. É mais provável que eles sigam do que liderem”, observa Tom Bigg, diretor de parcerias do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED), de Londres.
Vai na mesma linha o empresário Roberto S. Waack, presidente da Amata Brasil e membro do conselho de administração da Global Reporting Initiative (GRI) e do conselho internacional do Conselho de Manejo Florestal (FSC). “Não acredito nas convenções internacionais como promotoras de mudança. Elas e as conferências são importantes como indutoras de ações. Mas não dá para esperar pelas soluções multilaterais. O GRI, por exemplo, não foi criado por uma decisão multilateral”, diz.
Eduardo Viola também prefere apostar nos espaços extradiplomáticos: “A Rio+20 oficial está fadada ao fracasso, mas sou mais otimista com a Rio+20 paralela, composta por sociedade civil, empresas, mídia e academia. Tem maior dinamismo, é onde ocorre o networking mundial”.
Ainda assim, fóruns multilaterais continuam sendo relevantes para a governança global, na opinião de Rubens Born, do Vitae Civilis. Mas precisam voltar a discutir os impactos negativos de ações econômicas globais e nacionais sobre o ambiente planetário e as populações pobres. “A ONU deixou de ser um lugar para discutir economia. A Rio+20 deveria resgatar esse papel”, diz.
Bigg, do IIED, segue o raciocínio do dirigente do Vitae Civilis, ao reclamar de que a cúpula do Rio está apenas olhando para a governança ambiental, que é uma pequena fração de uma agenda de governança muito mais ampla. “Ela ignora as regras jogadas por instituições muito mais poderosas que lidam com questões econômicas e sociais e pelo poder e influência dos atores do setor privado”, adverte Bigg, em alusão a entidades como a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Consumo dos ricos
Além do papel de maior protagonismo dos emergentes a nova agenda contemplará uma revisão profunda nos padrões de consumo dos países ricos – que servem como modelo para as nações em desenvolvimento –, instrumentos econômicos que estimulem a produção limpa e mecanismos de financiamento à transição no mundo em desenvolvimento. Mas o grande enrosco da Rio+20 é, de novo, o como fazer, que demanda dinheiro, conhecimento, governança, metas e indicadores.
Nas negociações preparatórias à Conferência, quase nada se avançou no tema do dinheiro. “O financiamento é a parte mais obscura da Rio+20”, acredita José Eli da Veiga, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, que, entretanto, está menos pessimista que no ano passado quanto à força política do documento final da reunião. “Há um aparente consenso em torno da necessidade de adotar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Isso abrirá terreno para a discussão sobre indicadores que pode iniciar um processo de superação do PIB”, avalia.
A adoção dos ODS – que dariam continuidade aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio a partir de 2016 – encontra amplo respaldo entre as principais ONGs, cientistas, empresas, governos e a própria ONU. Estão cotados para ser a grande estrela da cúpula. “A Rio+20 precisa negociar ODS sérios e de credibilidade que funcionem como guia para políticas e ações em todos os países”, afirma Bigg.
Mas o que de fato precisa ser incluído na declaração final para livrar a conferência oficial do malogro anunciado? A despeito das quase 300 páginas do Rascunho Um da declaração O Futuro Que Queremos, com um manancial de proposições e colchetes (assuntos sem consenso), surgiu durante este semestre o esboço informal de uma agenda mínima para concentrar o foco do evento oficial. Trata-se de uma agenda que atende a aspirações de atores diversos, como Pnuma, União Europeia, alguns governos de países em desenvolvimento, como o do Brasil, e ONGs proeminentes na área de desenvolvimento, tais como IIED, Vitae Civilis, Oxfam e Instituto de Recursos Mundiais (WRI).
O programa compreende o lançamento de um processo negociador nos próximos três anos em torno dos seguintes pontos: a aprovação de uma resolução da ONU instituindo os ODS a partir de 2016; um novo indicador de riqueza que leve em conta o bem-estar humano e a sustentabilidade ambiental (iniciativa “Além do PIB”); uma convenção internacional sobre responsabilidade corporativa que obrigue as empresas a relatar publicamente seus impactos socioambientais; e diretrizes para incentivar compras públicas sustentáveis. (mais sobre os temas quentes no Guia)
As ONGs tentam inserir outros tópicos nesse programa mínimo, a exemplo da reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis, da taxação das transações financeiras globais e do piso social global [2] . Este seria como um programa de renda mínima para assegurar padrões de vida decentes em todo o mundo, inclusive com transferência de recursos dos países ricos às nações mais pobres.
[2] Em abril de 2009, a ONU lançou a Iniciativa do Piso de Proteção Social, liderada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), no bojo de um pacote para atenuar os efeitos da crise econômica nos países em desenvolvimento
Empresas no jogo
Ao comentar o item relativo à responsabilidade corporativa, Nick Nuttall, do Pnuma, afirma que a publicação de informações socioambientais corporativas permitirá a fundos de pensão e outros investidores fazer escolhas reais em favor de companhias que genuinamente estão fazendo a coisa certa.
Embora reticentes à ideia da convenção sobre responsabilidade corporativa, as empresas tendem a ganhar maior proeminência na discussão e implementação do pacote da Rio+20. “As companhias poderão estimular os países a levantarem o grau de ambição na Rio+20, se declararem publicamente respaldo à precificação do carbono e a políticas pró-energias renováveis”, prega Manish Bapna, presidente interino do WRI, de Washington.
Enquanto os humanos consomem e discutem, os limites ecológicos planetários, dos quais depende o futuro da economia, continuam sendo rompidos. A grande batalha da década será aproveitar as crises em curso como oportunidade para inverter a lógica dominante em que natureza e sociedade encontram-se a serviço da economia. Passa da hora de a economia colocar-se a serviço da sociedade, e em respeito aos limites e ciclos da natureza.
Amarras da Rio+20
Questões de fundo que emperram o avanço das negociações
Crise econômica
O fraco desempenho das economias da Europa, do Japão e dos Estados Unidos freia iniciativas que impliquem aumento de custos com incentivos verdes, reduções mais robustas nas emissões de gases-estufa e ajuda a países em desenvolvimento na transição para a nova economia.
Reeleição de Obama
Para manter a esperança de se reeleger em novembro, o presidente americano Barack Obama teve de desacelerar seu programa ambiental, que também é atacado implacavelmente pela maioria republicana no Senado. A administração democrata é acusada pela oposição republicana de agravar o problema do desemprego com suas medidas regulatórias antipoluição.
Liderança fraca
Diferentemente das conferências ambientais de Estocolmo, em 1972, e do Rio, em 1992, que tiveram o canadense Maurice Strong como figura central nas negociações, o secretário-geral da Rio+20, o diplomata chinês Sha Zukang, não tem muito carisma nem peso político para exercer uma liderança expressiva no evento deste mês. O Brasil também não assumiu um papel mais proativo no processo preparatório, o que dele era esperado como anfitrião do encontro.
Omissão sobre financiamento
Pouco ou nada se avançará no tema do financiamento da transição para a economia verde nos países em desenvolvimento. A Rio+20 deverá repetir a cobrança que vem sendo feita há pouco mais de quatro décadas quanto à aplicação de 0,7% do Produto Nacional Bruto das nações ricas em programas de ajuda oficial ao desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês). Apenas cinco países estão cumprindo a meta.
Desgaste do sistema decisório
A necessidade de consenso entre os 193 membros das Nações Unidas torna muito lentas as negociações diplomáticas das conferências ambientais. Em um artigo publicado em março na revista Science, um grupo de 32 especialistas em governança propõe trocar o consenso pela maioria qualificada nas decisões da ONU sobre desenvolvimento sustentável e meio ambiente.
Resistência nos EUA à ONU
Boa parte da opinião pública dos Estados Unidos, que sedia a organização, opõe-se à criação de novos órgãos no Sistema ONU e a aumentar a contribuição do país à entidade. Relaciona tais iniciativas à burocracia excessiva e à corrupção, o que pode minar esforços para fortalecer o Pnuma ou criar uma organização de meio ambiente na ONU.