O “bom-dia” dito em português pelo coordenador da Rio+20 e ex-ministro do Ambiente na França Brice Lalonde quebra o gelo inicial da entrevista. Dias bons, de preferência bem melhores, é um pouco o que se espera da Conferência. Mas não só. Lalonde tem a missão de fazer com que temas espinhosos como economia verde, governança global e erradicação da pobreza encontrem consenso entre as vozes dos indignados, céticos, governos e Major Groups.
Mesmo em meio às tensões, ele vê boas chances de sucesso para as negociações, alertando, contudo, que as mudanças são lentas e fundamentalmente locais. “É um erro acreditar que as ações começam de fato nas conferências. As ações começam a ser tomadas nos níveis nacionais e nas esferas locais após esses encontros, quando aplicamos o que foi discutido.” Sobre governança, afirma: “A ONU é uma instituição fundamental, mas precisa mudar sua própria ideia como organização”.
Boa parte da sociedade civil organizada no Brasil está insatisfeita com a forma pela qual foi aberta a sua participação na esfera oficial da Rio+20. Qual a sua avaliação sobre isso? De que forma a participação da sociedade civil deveria ser fortalecida na Conferência?
Trata-se de um processo em andamento, porque, antes de 1992, a sociedade civil não tinha voz em nenhuma esfera de negociação entre governos. E desde lá se percebe um grande progresso, uma abertura nessas conferências, que também ficaram mais transparentes. Em 1992, os Major Groups foram criados para que a sociedade civil tivesse voz ativa nos processos de negociações da ONU [A Agenda 21 formalizou nove grupos como categorias principais: negócios e indústria, crianças e jovens, agricultores, povos nativos, autoridades locais, ONGs, comunidade científica e tecnológica, mulheres, e trabalhadores e sindicatos].
A Rio+20 está ainda mais aberta para eles e, mesmo que a negociação já tenha começado, a sociedade civil é inserida na Conferência e pode passar suas mensagens e seus insumos. Além disso, o governo brasileiro passa por um momento de inovações, expandindo as discussões para o universo da internet, destacando 10 temas principais que devem resultar em recomendações que serão levadas para a Conferência.
É claro que é sempre um trabalho em processo. Como podemos inventar novas conferências e como podem os países criar novas formas de dar participação à sociedade civil? Estamos nos movendo nessa direção. Não tão rápido quando desejamos, mas já tivemos progressos. Aliás, a sociedade civil pode ser ouvida até mesmo fora das conferências.
Então o processo está sendo efetivado pela internet e pelo suporte de tecnologias que nós temos hoje.
Sim, e isso ajuda muito no conjunto. A situação dos nove Major Groups pode não ser perfeita, mas já é um primeiro passo. E não só sociedade civil, mas os governos locais, as cidades e os negócios estão mais envolvidos dentro da ONU. Isso é importante para que essas parcerias resultem na construção de objetivos concretos.
Mas a insatisfação da sociedade civil parece mostrar o contrário. E o sentimento é tão forte que muitas organizações foram orientadas a boicotar a conferência oficial. Em sua opinião, que prejuízos isso traz para o resultado da Rio+20 e para os avanços na agenda de transformação da sociedade?
Tudo isso é lamentável. Organizações e cidadãos querem participar do processo e isso será inevitável. Todas as conferências são passíveis de crítica e isso não é um problema. Mas é um erro acreditar que as ações começam de fato nas conferências. As ações começam a ser tomadas nos níveis nacionais e nas esferas locais após esses encontros, quando aplicamos o que foi discutido. Não se deve esperar que um evento em que 193 países negociam juntos mude o mundo de uma hora para outra. É apenas a ponta de um extenso processo.
Conferências são importantes porque fazem parte de um caminho, mas, sozinhas, não são nada. Nem será o principal elemento de mudanças na sociedade e na economia. Então, o que eu posso dizer? Se esses grupos não querem participar, tudo bem… todo mundo é livre! (risos)
Há ainda muito desentendimento sobre um dos temas centrais da Conferência, que é a economia verde. A expressão é entendida de variadas formas e, para boa parte da sociedade civil, a leitura é que se trata de pintar de verde o business as usual, com objetivo de perpetuá-lo como está. Outras vozes mais radicais entendem que, por trás do conceito economia verde, está a intenção de “mercantilização da vida”. Sem que haja – em primeiro lugar – um mínimo consenso sobre a definição de economia verde e – em segundo lugar – um mínimo acordo sobre economia verde, o que se pode esperar da Rio+20?
Desentendimentos e discussões são parte da vida e fundamentais em um debate público, em que as pessoas precisam entender os argumentos de todos os lados e o que está em jogo. Em meu ponto de vista, a economia verde é inevitável. Não sei nem se posso chamar isso de economia, mas sei que não haverá nenhuma economia se destruirmos a natureza. Acredito que, como diz o Ban Ki-moon (secretário-geral da ONU), isso é o descobrimento de que o capital humano e natural é tão importante quanto o capital financeiro. Ou é até mais importante. Então, a ideia (da Rio+20) é entrarmos em uma economia verde e darmos um novo passo na história da humanidade.
Na Conferência está toda essa discussão estrutural que envolve ecologia, como você insere o capital natural na economia nacional e como atribui valor aos serviços ecossistêmicos. Todos as ferramentas para implementar a economia verde. Tudo isso tem de ser feito e temos que evitar o greenwashing. No final, trazer o desenvolvimento para uma sociedade é uma batalha. E os consumidores também devem lutar. A internet ajuda nisso. É na rede que se pode expor a verdade sobre as organizações que estão praticando greenwashing. Hoje é fácil descobrir. (leia mais na reportagem “Caiu na rede”)
Faltou uma costura prévia, uma preparação, para se buscar um mínimo entendimento antes que a Rio+20 tivesse início? Ou estamos no momento certo para discutir o desenvolvimento sustentável?
Todas essas discussões começaram em Estocolmo, em 1972, e foram retomadas em 1992, no Rio de Janeiro, e em Johannesburgo (na Rio+10, em 2002). Vê-se que as discussões são permanentes. Essas reuniões internacionais servem para renovar esses debates e dizer: “Ei, líderes, não se esqueçam disso”. O problema é que políticos, líderes e empresários têm uma agenda de curto prazo. É por isso que, diante de uma crise econômica, as pessoas estão concentradas no que é de curto prazo. Precisamos insistir em que as conferências abordem um debate sobre os próximos 20 anos. Como cada país pode trabalhar melhor para lidar com problemas tão importantes, em áreas tão primordiais? E como trabalhar juntos? Esses problemas vão se tornar mais e mais evidentes nos próximos 20 anos.
Claro que eu preferiria que a Rio+20 tivesse sido organizada muito antes. Só que o mais importante não é o que vai acontecer durante o encontro da Rio+20, e, sim, na Rio+21, +22, +23, +24 e em cada ano seguinte a ela. Para o futuro, precisamos saber como implementar tudo o que foi discutido na Rio+20 e como aplicar os objetivos discutidos. Precisaremos de pelo menos três anos para passar esses objetivos da teoria à prática e entrarmos em um acordo.
Estabelecer a economia como ponto central da Rio+20 é uma forma de instrumentalizar as transformações necessárias, e tornar toda a discussão mais palpável. Mas, para isso, precisaremos de ferramentas novas e novas conformações sociais e econômicas. Podemos dizer que as críticas se devem ao fato de a sociedade aspirar urgentemente por mudanças e não aguentar mais o discurso e a prática que o mainstream ainda usa?
(Silêncio) Hum…
A pergunta é difícil?
A pergunta não é difícil. Difícil é a resposta. Eu sempre tendo às minhas crenças pessoais em casos assim. Se eu fosse o coordenador, eu diria que vamos discutir a “caixa de ferramentas” que nos foi dada como saída. Vamos pegar o que sair de lá (definições oficiais da Rio+20), colocar em perspectiva e exemplificar as diferentes ferramentas, se elas têm uso, se são sustentáveis e ver como legitimá-las em cada país. Temos é que dar um salto quântico! (risos). Temos de saltar de uma situação em que cada país olha o que pode fazer sozinho para um cenário em que todos os países olhem juntos o que fazer. Ainda não enxergamos a humanidade ou o planeta como um todo. Vemos separadamente cada povo, cada diferente país, cada cidade e tentamos juntá-los e ter políticas comuns. Precisamos inventar algo completamente novo, em uma escala humana ou planetária. Temos que discutir isso seriamente e temos a Rio+20 para isso.
A economia pode, então, voltar à condição de ciência humana? Ou seja, ser uma ferramenta a serviço das pessoas?
Ninguém questiona a importância da economia para a humanidade. Ela está relacionada ao ser humano e trata de transformações sociais, seja sobre transformar matérias-primas em serviços, em trabalho, seja em produtos. Economia é adicionar valor a tudo que existe e, se você não tem economia, não tem empregos, não tem fontes de renda.
A questão hoje é inventar uma nova economia mais voltada para o bem-estar, a melhora da situação do planeta, dos indivíduos e da segurança social, em vez de apenas alimentar os lucros. Economia também é parte da democracia, ajudando-nos a ter as melhores ferramentas de certificação, informações sobre os produtos, sobre como são produzidos… Enfim, discutimos não só todas essas diferentes ferramentas que estão lentamente chegando e mudando o mundo, mas também como organizar uma cadeia de comércio justo, ético, participativo. Tudo isso é importante e temos de concordar sobre isso.
Mas o senhor acredita que o Primeiro Mundo, que cunhou o termo green economy e foi o berço do ambientalismo, estará mais aberto para, eventualmente, deixar de buscar o crescimento e com isso dar espaço ecológico para que os países pobres e emergentes possam crescer e atingir padrões mais sustentáveis em suas economias?
Esse é um pensamento ideológico e simplista. O mundo está mais complexo e cheio de nuances. E está mudando para melhor. A geopolítica atual é diferente de lugar para lugar. Países como Brasil, Índia e China estão se tornando superpotências mesmo com altos índices de pobreza. Várias nações consideradas pobres estão crescendo muito rápido, como Colômbia, Cingapura, Tailândia e Coreia do Sul. Há pessoas riquíssimas nos países em desenvolvimento. Na lista dos maiores bilionários, muitos são chineses!
Ao mesmo tempo, se você for até a Europa encontrará vários jovens preocupados com a África, por exemplo. E eles vão até o continente ajudar as pessoas a viver melhor. Claro que há também o egoísmo de países que parecem não se preocupar com essas questões e isso tem que mudar, claro. Mas eu não restringiria isso a uma ideia de “Primeiro Mundo contra o resto do mundo”.
Hoje, as pessoas se conectam por meio das redes sociais e as telecomunicações são cada vez mais importantes. O mundo está mudando na nossa frente e não podemos ficar presos a uma situação do século XX. Estamos no século XXI. Precisamos é batalhar por mais igualdade e mais justiça.
O significado da Rio+20 deveria ser: se o mundo fosse um só país, nós aceitaríamos a qualidade de vida que temos? Aceitaríamos que nossas terras sejam destruídas, poluídas ou superexploradas? Não, não aceitaríamos. Estamos chegando a uma situação em que precisamos de um cooperativismo internacional na luta pelo desenvolvimento e fim da pobreza. Teremos que encontrar novas fontes de financiamento, criar algo como impostos internacionais e não apenas ações voluntárias.
Considerando-se esse pensamento de “um planeta como um único país”, quais são os maiores entraves aos acordos internacionais no campo da sustentabilidade?
As distâncias, as vontades políticas de cada um, a imaginação, o egoísmo e os meios de implementação, que têm lacunas. Além disso, as pessoas têm medo do futuro. Medo de entender o que acontecerá se não pudermos mais usar carvão, por exemplo. Se hoje dependemos de carvão e alguém me diz que devo usar energia solar, como faço isso?
É possível? E há uma competição internacional. Não estamos realmente unidos, e, sim, apenas preocupados com nossa situação particular. Outro problema é a liderança, que deve ser mais ativa. Um líder do bem, que se preocupe com o desenvolvimento do mundo enquanto um só país, não será reeleito por suas boas intenções.
Muito já se falou nos últimos meses sobre a falta de foco da Rio+20, seja de ambição, de engajamento, seja até de interesse das pessoas, das empresas e dos governantes. O senhor mesmo já teceu algumas dessas críticas em entrevistas anteriores. Como coordenador-executivo, o que está a seu alcance para fazer da Rio+20 uma conferência bem-sucedida?
Você tem de acreditar no futuro e nos políticos que elege. Se temos 7 bilhões de pessoas na Terra hoje, e teremos 9 bilhões em 20 anos, como combater a pobreza, ter vida e empregos decentes sem destruir os recursos naturais? Esse é o foco principal da Rio+20. E não estou criticando, estou apenas impaciente.
Para a Rio+20 ser bem-sucedida, decisões têm de ser tomadas e resultados têm de ser apresentados. Principalmente nas questões da água, de energia e das instituições que impactam e reforçam a importância do meio ambiente no Fórum de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
Temos de chegar a denominadores comuns em torno dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, para que eles beneficiem todas as nações, todos os seres humanos. Esses serão os objetivos para alcançarmos nos próximos 20 anos um meio de vida decente e não destrutivo. E temos de nos concentrar não apenas no objetivo final, mas também em todo o processo para chegarmos lá.
Então, se pudermos estabelecer esses alvos e nos comprometer a alcançá-los, a Conferência será bem-sucedida?
Sem dúvida. Se conseguirmos nos reunir em torno desses objetivos, conseguiremos trabalhar por eles. Envolveríamos organizações, parcerias, ONGs, pessoas de todos os tipos, cidades, negócios em torno disso. Temos tantas coisas a serem feitas que é importante definir as prioridades e organizar o trabalho das pessoas para alcançá-las.
Uma das pautas da Rio+20 é a governança global, que inclui uma alteração no quadro administrativo da própria ONU, criando ou elegendo um de seus organismos laterais como um órgão especial para o desenvolvimento sustentável, como a Organização Mundial do Comércio ou da Saúde. A ONU está preparada para uma mudança desse nível?
A ONU foi criada após a Segunda Guerra Mundial, em um contexto traumático, porém reflexivo, da humanidade. É uma instituição fundamental, mas precisa mudar sua própria ideia como organização e suas unidades pelo mundo precisam auxiliar nisso. Tem de haver uma mudança não apenas nessa futura “Organização do Desenvolvimento Sustentável”, mas também no Conselho de Segurança, que teria de concordar com esse órgão. Não é um processo fácil, mas certamente tem de ser feito. Não há por que não estarmos prontos para mudar.