Em um caldeirão de múltiplas visões, a abertura para dialogar com o governo e o setor privado é uma das divergências. Também se questiona até que ponto a economia verde significa uma mercantilização da vida
Um cenário histórico parece redesenhar os jardins de Burle Marx, na região do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Um evento paralelo, organizado por coalizões da sociedade civil e denominado Cúpula dos Povos, reunirá dezenas de milhares de pessoas que chegarão de todas as partes do mundo, compondo uma babel fervilhante de idiomas, etnias, aspirações. Envolvido em múltiplos projetos de transformação social, cada grupo nutre distintos graus de oposição às políticas de quase todos os governos e da própria ONU.
Desde a Rio 92 – um divisor de águas nas relações internacionais envolvendo ambiente e desenvolvimento –, a discussão sobre o papel e as necessidades da própria sociedade civil foram acumulando as complexidades do mundo atual, em que temas como economia verde e governança global – centrais durante a Rio+20 – tornam-se especialmente desafiadores diante da crise socioeconômica mundial.
Os maiores questionamentos giram em torno de dúvidas quanto ao fato de a economia verde significar ou não a mercantilização da água, do ar e dos recursos naturais e a até que ponto isso compromete a justiça socioambiental. Além disso, embora conceitualmente façam parte da sociedade civil, as empresas não integram a Cúpula dos Povos e constituem mais um ator em relação ao qual há profundas divergências.
Não é uma costura fácil: as mais de 50 redes nacionais e internacionais que compõem o Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20 se debruçam há um ano e meio para tecer os objetivos da Cúpula dos Povos. Tamanho esforço reflete a multiplicidade de causas e interesses, desde os dos povos tradicionais e indígenas, de sindicatos de trabalhadores, movimentos de mulheres até os dos socioambientalistas, entre outros. Uma dificuldade adicional citada pelo Comitê é a limitação do tempo e dos recursos [1] , já que a convocação oficial para a realização do evento ocorreu somente em 28 de janeiro, durante o Fórum Social Temático, em Porto Alegre.
[1] Como apoio à infraestrutura do evento, o governo brasileiro disponibilizou R$ 11 milhões, segundo os organizadores
[2] Atividades autogestionadas são aquelas livremente organizadas por redes, organizações e coletivos inscritos no evento, que são responsáveis por sua preparação, metodologia, programação e materiais
A pluralidade torna-se mais evidente quando se observa o número de inscrições para as atividades autogestionadas para a Cúpula. Foram mais de 1,2 mil.
O QUE SEPARA
Na avaliação de Rubens Born, coordenador-executivo adjunto do Instituto Vitae Civilis e integrante da coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Fboms), dentro da mobilização da sociedade civil há grupos que divergem quanto à manutenção de diálogos com a esfera governamental. “Ainda há muita reserva nesse campo das negociações. Precisamos também aprender a recompor as negociações no quadro mais global, além das causas locais”, afirma Born.
Em Entrevista à página 50, Pedro Ivo Batista, coordenador da Cúpula dos Povos, pontua que entre as entidades ambientalistas há uma abertura para o diálogo com o governo e com as empresas maior do que com os movimentos populares e sindicais.
O que existe de diferença entre as organizações pode ser interpretado como uma demarcação de campo, na visão da antropóloga Moema Miranda, diretora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e integrante do Grupo de Reflexão e Apoio ao Processo do Fórum Social Mundial (Grap) do Comitê. “O camponês, por exemplo, que vive perto de uma barragem, tem uma visão diferente da questão socioambiental comparativamente à interpretação e motivações do indígena. Quando nos voltamos para as zonas urbanas, as pessoas que estão em uma favela tratando do direito à cidade estão mais próximas a esses grupos. É assim que se constituem os atores políticos”, exemplifica a antropóloga.
No aspecto religioso, Moema destaca a discussão sobre o cuidado das relações com a natureza. Nos movimentos de esquerda, a vertente ecossocialista propõe a distribuição da riqueza. “Todos mantêm valores e princípios semelhantes, mas com propostas diferenciadas”, diz Moema.
EM BUSCA DE ALINHAVOS
Mas existe um esforço para costurar essa diversidade em bandeiras comuns. Na análise de Moema, o que une a maior parte das redes da sociedade civil – não todas elas – é o posicionamento anticapitalista e antidesenvolvimentista. “Consideramos que os recursos da Terra têm de ser pensados como finitos, e não pode haver uma visão antropocêntrica. Transformar em mercadoria os aspectos fundamentais da vida é ‘mediocrizar’ o que possui real valor”, afirma. No aspecto de governança, as discussões convergem para a extensão do poder exercido por corporações globais, grandes empresas e organismos internacionais.
Para Nilo D’Ávila, coordenador de políticas públicas do Greenpeace, a economia verde, da maneira como tem sido colocada, aflige os movimentos sociais. “Há preocupação quanto à mercantilização da natureza e do direito ao acesso à biodiversidade, além das questões envolvendo florestas e mudanças climáticas”, diz.
Quando, por exemplo, o processo de polinização de uma floresta pode ser transformado em serviço ambiental, abre-se espaço também para o “direito” de poluir e mercantilizar serviços que eram práticas tradicionais das populações, entre outros precedentes, segundo Moema.
Antonio Marcos Alcântara de Oliveira Apurinã, dirigente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, que integra a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), vive essa aflição no dia a dia.
“Na Amazônia brasileira, queremos ter o gerenciamento de nossas terras, dos recursos naturais. A proposta do Redd (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) para o Brasil está sendo boa para os capitalistas, mas, para nós, não.” Apurinã considera que não é justo que quem destrua o meio ambiente compense em outro local. “Não basta só pagar, também tem de reflorestar em seus lugares de origem.”
O maior desafio, na visão de Apurinã, é estabelecer uma articulação geral em comum com outras organizações indígenas, nos países andinos e de toda Bacia Amazônica. “A questão da água é um tema convergente entre nós. Mas, em outros países, há realidades diferentes. No Equador, o governo paga royalties aos índios, na Bolívia há extração de petróleo em áreas indígenas.” Ele afirma que o objetivo dos povos indígenas ligados à organização é consolidar um documento junto com as entidades socioambientais e demais organizações, mesmo que tenham algumas teses diferentes.
Para Israel Evangelista, Ofarere (Mensageiro de Oxóssi) do Ilé Oxumaré, da Bahia, da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), também é fundamental para a rede manter a luta por causas que tenham convergência com as chamadas minorias. “Com os indígenas, temos convergência na questão das ervas medicinais. Em 1992, aprendemos com eles a forma de lidar com as plantas para cuidar das doenças. Dentro do Movimento Negro, temos uma bandeira em comum de discutir as políticas para os menos favorecidos, como de matriz africana.” E com os ambientalistas as discussões pautam-se pelas visões diferenciadas sobre a realização de rituais.
Evangelista constata que, de maneira geral, falta maior entendimento sobre economia verde entre os movimentos e organizações sociais, principalmente por falta de informações. “Não compreendemos como será trabalhado o valor da natureza, se vão privatizar a água e os interesses que estão por trás desse modelo”, diz.
Segundo Moema de Miranda, outro aspecto de convergência que ganha espaço na América Latina, emergente dos povos indígenas andinos, é a do bem viver. Tem como princípio que a Terra é um ser vivo e como objetivo a constituição de uma sociedade de harmonia com o meio ambiente.
Assim, a sociedade civil entende como seu maior desafio conciliar propostas em comum para o documento final, que deverá ser criado pela Cúpula dos Povos no fim da Rio+20. Para isso, o Comitê Facilitador estabeleceu a adoção de uma forma centralizada de articulação, com as chamadas Plenárias de Convergência e Assembleias dos Povos. É isso que a difere do Fórum Social Mundial, em que esses encontros são autogestionados.
PROTAGONISMO MENOR?
Comparativamente ao período da Rio 92, Pedro Ivo Batista, da Cúpula dos Povos, diz haver maior protagonismo das ONGs, que foram importantes, por exemplo, para trazer os sindicatos para o tema socioambiental. Mas hoje existe uma crise sociopolítica e também de credibilidade das instituições perante a sociedade, o que exerce grande pressão sobre os governantes.
Hoje, as organizações sociais criticam a falta de ousadia da Rio+20, pedem maior comprometimento das nações e avaliam que o rascunho do documento-base das discussões oficiais é superficial para contemplar os desafios a serem enfrentados no mundo. Teme-se que o resultado da Conferência se restrinja a somente um acordo político e ao desenho dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Por fim, toda essa crítica acaba funcionando como uma liga nesse caldeirão. Cada um entra com seu ingrediente, mas o caldo torna-se um só. E, a depender das contundentes críticas, a promessa é de apimentar as discussões e pressionar o business as usual.