A coalizão C40 anuncia metas ambiciosas, mas cidades líderes do grupo, como São Paulo, não cumprem compromissos de suas políticas climáticas
No papel, a cidade de São Paulo é uma das pioneiras no mundo em adotar uma legislação local com metas ambiciosas para a diminuição nas emissões de gases de efeito estufa. Com essa tacada de mestre, a prefeitura paulistana ganhou peso político no C40, sigla de Climate Leadership Group. Trata-se de uma coalizão de 59 cidades – incluindo as 40 mais populosas do planeta – que se reúnem periodicamente para trocar experiências sobre ações locais de mitigação dos gases-estufa e que tem sido lembrada como um bom exemplo de governança local diante da morosa e burocrática agenda das Nações Unidas (ver quadro no final da página).
Entretanto, a atuação (ou inação) da prefeitura paulistana em temas cruciais para a luta contras as mudanças climáticas, como o do transporte público, parecem cravar um mar de distância entre o ativismo da administração municipal no C40 e a realidade urbana cada vez mais caótica na maior cidade da América do Sul.
O C40 realizou um dos eventos paralelos da Rio+20 de maior repercussão na opinião pública, com a presença de prefeitos de cidades emblemáticas como Nova York (Estados Unidos), Seul (Coreia do Sul), Lagos (Nigéria), Johannesburgo (África do Sul), Heidelberg (Alemanha), Rio, São Paulo e Curitiba.
Na ocasião, o C40 anunciou que as ações conjuntas de seus membros resultarão no corte [1] de 248 milhões de toneladas de gases causadores de efeito estufa até 2020, e de 1 bilhão de toneladas até 2030 – a quantidade de emissões atuais de México e Canadá combinados. O grupo também anunciou a criação de uma Rede de Resíduos Sólidos, em parceria com o Banco Mundial e o governo americano, para auxiliar técnica e financeiramente ações locais que visam reduzir emissões de gás metano.
[1] A redução dessas emissões deverá ocorrer em relação ao cenário convencional, ou business as usual, em que não são tomadas medidas de mitigação dos gases-estufa
Em termos de metas e compromissos, o conjunto de iniciativas locais é mais dinâmico e assertivo que as discussões em âmbito global. Mas a distância entre planos e ações coloca em dúvida a eficácia dos membros do C40 em implementar os compromissos assumidos nos eventos públicos dessa inovadora coalizão de cidades.
Em São Paulo, por exemplo, o cumprimento das metas estabelecidas pela Política Municipal de Mudança do Clima está aquém do ideal. A ambiciosa meta de redução para o ano de 2012, lavrada em lei de junho de 2009, prevê a diminuição em 30% das emissões antrópicas (geradas por humanos) de gases de efeito estufa, medidos em CO2 equivalente, em relação ao patamar apurado pelo inventário realizado pela prefeitura em 2005. (Acesse a íntegra)
O prefeito Gilberto Kassab, em entrevista a uma rádio de São Paulo durante a Rio+20, disse que as metas não serão cumpridas em sua plenitude, mas ressaltou ações que vão ao encontro desse compromisso, como o aproveitamento energético dos gases emitidos pelos aterros. (A reportagem tentou agendar entrevistas com representantes da prefeitura sobre o cumprimento das metas, mas não obteve retorno satisfatório. Sua assessoria de imprensa limitou-se a informar que o novo inventário de emissões em curso apontará se as metas estão sendo cumpridas.)
O assunto foi objeto de estudo de caso apresentado pela cidade na conferência do C40 como um dos principais destaques das ações paulistanas de combate às mudanças climáticas. Embora os projetos energéticos nos aterros sanitários sejam importantes e bem-vindos, o inventário de 2005 revela que 88,78% das emissões provenientes do uso de energia são provocadas pela queima de combustíveis fósseis, colocando em evidência o problema da matriz energética usada no transporte urbano.
Segundo especialistas, a política paulistana de mobilidade – fundamental para a diminuição nas emissões de gás carbônico na capital paulista – está na contramão do discurso do C40. “O principal elemento que interfere nesse assunto, que é a emissão de CO2, deveria estar dentro de uma política de priorização do transporte coletivo e não motorizado”, diz Nabil Bonduki, arquiteto e professor de Planejamento Urbano da FAU-USP. “Não se nota, porém, um portfólio de investimentos da prefeitura em diferentes modais de transporte coletivo”, emenda Renato Boareto, gestor ambiental e ex-diretor de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades. Para ele, a expansão tímida das malhas metroviária e ferroviária é fruto de uma “terceirização” do problema para a esfera estadual, sem participação efetiva da gestão municipal.
Boareto, assim como Bonduki e Kazuo Nakano, arquiteto e urbanista do Instituto Pólis, assinalam o abandono da atual gestão no que diz respeito à implantação de corredores de ônibus, em colisão com duas das extensas metas da Política Municipal de Mudança do Clima: prioridade do uso do transporte público coletivo e implantação de medidas de ganho de eficiência e ampliação da integração intermodal (entre diferentes tipos de transporte).
O gestor ambiental aponta um tripé de políticas promotoras do transporte coletivo que não estão sendo priorizadas pela administração paulistana: implantação de redes cicloviárias, de corredores de BRT (Bus Rapid Transport, sistema de transporte rápido por ônibus em corredores exclusivos) e de medidas para desestimular o uso do carro, como o fechamento de ruas para o trânsito de automóveis.
Ao contrário das outras duas cidades brasileiras que fazem parte do C40, Boareto não enxerga em São Paulo um “desenvolvimento institucional e de infraestrutura” que estabeleça um novo padrão de mobilidade urbana em favor da redução dos gases-estufa. Para ele, a cidade do Rio de Janeiro, dentro do tripé proposto, está à frente da capital paulista ao construir quatro corredores de BRT, o chamado “ligeirão” – um deles em operação desde junho –, e ao ampliar e aprimorar sua rede de ciclovias e de aluguel de bicicletas, além de realizar ampliações das linhas de trem e metrô e implantar um sistema de bilhete único, a exemplo do que está em vigor em São Paulo desde 2004.
A prefeitura carioca articulou oito projetos em parceria com o C40, embora não tenham ainda sido inseridos no site da entidade. Entre eles estão projetos para reduzir a pegada de carbono da frota de veículos que fazem coleta de resíduos e a troca de experiências com outras cidades sobre revitalização urbana. Vale lembrar que a cidade também aprovou uma Política Municipal sobre Mudança do Clima em 2011, com metas de redução de gases de efeito estufa igualmente em relação aos níveis de 2005: 8% (2012), 16% (2016); e 20% (2020). Confira a lei carioca.
Curitiba, que, assim como o Rio de Janeiro, também não incluiu suas iniciativas no site do C40, encontra-se em um patamar superior em termos da discussão sobre a mobilidade urbana, avalia Boareto. A capital do Paraná possui a maior rede de BRT do País, promoveu seu crescimento urbano em torno dos eixos de transporte público e fomenta uma maior discussão pública de sua gestão ambiental e urbana. A maior participação da sociedade civil organizada reforça a importância da ação atomizada nos rumos de políticas de interesse coletivo, como mostra o texto no final da página sobre a Teoria de Ação Coletiva.
PARA ALÉM DO TRANSPORTE
As críticas à ineficácia da política climática em São Paulo não param na questão do transporte e da mobilidade urbana, visto que a lei estabelece metas em outras áreas afetadas pelas mudanças climáticas além de energia: construção, uso do solo, resíduos sólidos e saúde.
Algumas iniciativas da capital paulista foram apresentadas com menor destaque do que aquelas relacionadas aos aterros sanitários na conferência do C40 no Rio, como o programa de inspeção veicular, um plano diretor de drenagem para combater as enchentes e a ampliação de áreas verdes. Mas faltam políticas mais integradas e substanciais, observam especialistas que acompanham o desenvolvimento urbano da cidade.
No tema dos resíduos sólidos, é grande a cobrança popular pela ampliação do sistema de coleta seletiva. Medidas tomadas nesse campo refletem a falta de sintonia entre as autoridades e os cidadãos. Ao comentar a instalação dos Pontos de Entrega Voluntária (PEVs) em São Paulo, Bonduki critica a linguagem visual utilizada nesses equipamentos, que, segundo ele, nem mesmo esclarece o que pode ou não ser depositado nos contêineres. “É um projeto confuso. Não acredito que tenha algum significado na coleta seletiva da cidade.”
Nakano menciona a falta de preocupação do poder público municipal com o estabelecimento de moradias adequadas e não vulneráveis a enchentes e deslizamentos. “A forma de produção das moradias não busca um padrão de urbanização includente”, diz, apontando a perpetuação das favelas e a construção de conjuntos habitacionais que “reproduzem modelos da década de 1970, precários e periféricos”.
A situação se agrava quando se trata da ocupação de rios e córregos. Nesse caso, assiste-se ao agravamento do processo de impermeabilização do solo e da exclusão territorial de populações com menor poder aquisitivo. Para o urbanista, por mais positivas que sejam iniciativas como o C40, as discussões ainda não estão alinhadas com as agendas de execução. “É preciso reinventar e fortalecer as formas de democracia participativa”, afirma.
RAIO X DO C40
O que é: organização de grandes cidades de todos os continentes que compartilham experiências e se comprometem a implementar ações sustentáveis locais para resolver o problema global das mudanças climáticas.
Quantas cidades participam: 59, sendo três brasileiras (Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo) e oito sul-americanas (as três brasileiras mais Bogotá, Buenos Aires, Caracas, Lima e Santiago). Juntas, representam quase um quinto do PIB mundial e 12% das emissões globais de CO2.
Quando surgiu: em Londres, no Reino Unido, em outubro de 2005. O prefeito à época, Ken Livingstone, reuniu representantes de 18 metrópoles para estabelecer ações e parcerias para a redução de emissões de gases causadores de efeito estufa. Batizado C20, em 2006 passou a chamar-se C40 por reunir as 40 cidades mais populosas – sigla que se convencionou manter apesar das sucessivas mudanças no número de cidades participantes.
TEORIA DE AÇÃO COLETIVA
Entre as teorias que tratam da participação de grupos organizados da sociedade, ganhou significativa visibilidade a Teoria de Ação Coletiva, proposta pelo economista norte-americano Mancur Olson, em 1965.
A teoria afirma que grupos de interesse pequenos têm maior chance de influenciar e agir na obtenção de um bem público, como a redução das emissões de gases causadores de efeito estufa, do que grupos grandes, pois seus membros tendem a considerar seu poder irrisório e não se mobilizam para a consecução de uma meta que, no entanto, beneficiará a todos.
A necessidade de um grupo organizado ou instituição que sirva como guia para a execução das ações para alcançar esse bem comum exige uma mediação entre a racionalidade individual e a racionalidade coletiva, que não é naturalmente, segundo a teoria, fruto da primeira.
Para Kazuo Nakano, arquiteto e urbanista do Instituto Pólis, é a sociedade civil organizada que pode induzir a uma mudança nas políticas públicas de São Paulo, para que sejam mais alinhadas com as ações propostas pelas metas da Política Municipal de Mudança do Clima. “A sociedade é dinâmica, mas o governo não corresponde. É um tensionamento nada produtivo”, diz.
Uma iniciativa da prefeitura de São Paulo que visa ser uma ponte com a sociedade civil dentro da ideia de planejamento urbano é o SP 2040, plano de desenvolvimento que, de acordo com o site do projeto, busca “construir uma visão estratégica de longo prazo para o município de São Paulo, com análises e proposições focando um horizonte temporal para o ano de 2040 e também objetivos intermediários para 2025”.
A apresentação do plano e o debate com a sociedade é uma das etapas. O SP 2040 contemplará um seminário internacional e uma série de oficinas regionais para debates referentes aos resultados das etapas anteriores, visando aperfeiçoar o plano e a visão de futuro desejada, para harmonizá-la de acordo com os interesses da população paulistana. O grau de organização da sociedade civil definirá o alcance e a profundidade desses debates.
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Em resposta a essa reportagem a Prefeitura de São Paulo enviou à Redação uma mensagem que foi publicada na edição 67.