Pensar na morte pode motivar decisões que beneficiam as gerações futuras. Mas a memória protética global que a tecnologia digital proporciona contribui para uma falsa sensação de permanência. Será preciso relembrar que somos mortais?
“Quando ligamos o rádio em um quarto de hotel em Nova York e ouvimos Elvis cantando ‘Heartbreak Hotel’, raramente somos surpreendidos pela peculiaridade de nossa situação: um homem morto que canta.” O escritor William Gibson, autor da frase, afirma que vivemos uma época estranha, na qual o que ele chama de “botão rebobinar” permite que contrariemos o fluxo natural do esquecimento. Graças ao grande mecanismo digital, diz ele, construímos uma memória protética global que torna o nosso ‘agora’ indesculpavelmente curto e, ao mesmo tempo, inauditamente elástico. Precisamos ser relembrados de que, cedo ou tarde, vamos morrer?
Pensar na morte não é algo que os vivos gostem de fazer – especialmente enquanto ouvem Elvis no rádio. Mas pode ser, segundo pesquisadores da área de psicologia, um artifício para que decisões sobre a alocação de recursos beneficiem as gerações que estão por vir.
A questão é urgente, lembra o ativista Bill McKibben em artigo recente: se o aumento de 0,8 grau nas temperaturas globais nas últimas décadas causou o desaparecimento de um terço do gelo no verão Ártico, assim como 30% mais acidez nos oceanos e 5% mais vapor d’água na atmosfera sobre os oceanos, imagine as conseqüências de um aumento de 2 graus. Esse número é o único em torno do qual, destaca McKibben, há acordo entre os líderes mundiais sobre nossas ações quanto às mudanças climáticas.
Sabe-se que os indivíduos são egoístas e míopes no uso de recursos – tendem a favorecer a si mesmos em vez de outras pessoas e preferem usar recursos no presente a postergar o consumo para o futuro. A literatura de psicologia indica que escolhas em contextos intergeneracionais favorecem as gerações mais próximas e, na medida em que cresce a distância temporal entre as tomadas de decisão e seus resultados, diminui a tendência a decidir em benefício de terceiros.
Cada um de nós, entretanto, sabe que vai morrer. Nosso impulso pela autopreservação, aliado à certeza de nossa eventual morte, alimenta o desejo de deixar algo que sobreviva à nossa existência física. O impacto sobre outras pessoas que perdura no futuro está no centro dessa busca por um significado maior para nossas vidas. Em um artigo recém-publicado na revista Psychological Science, Kimberly Wade-Benzoni, da Duke University, e seus colegas hipotetizam que esse desejo de produzir um legado positivo pode fomentar decisões que gerem benefícios futuros, desde que os indivíduos a cargo de tais decisões sejam lembrados da morte.
Eles testaram a hipótese com dois experimentos e concluíram que indivíduos lembrados da morte sentem uma conexão com outras pessoas no futuro mais forte do que com aquelas no presente. Em resumo, agir em benefício de gerações que estão por vir oferece aos tomadores de decisão uma oportunidade de simbolicamente estender seu legado para o futuro.
Os resultados indicam, dizem os pesquisadores, que o sucesso de políticas públicas para encorajar comportamentos ambiental e ecologicamente sustentáveis “pode depender de salientar a mortalidade dos indivíduos e de apresentar suas decisões como trocas intergeneracionais”. E que “o desejo de nos perpetuar no futuro e potencialmente além da vida mortal é um ímpeto forte e profundo para a ação generativa”.
Na era do homem morto que canta e da possibilidade onipresente de rebobinar, parece que tais sentimentos e desejos precisam ser, constantemente, reanimados. A fotógrafa Rachel Sussman, por exemplo, foi relembrada “da brevidade de uma vida humana em face da vastidão incompreensível do ‘para sempre’” por uma árvore. Ela conta, em ensaio publicado em fevereiro, seu encontro com “O Senador”, um dos ciprestes mais velhos do mundo, morto em janeiro aos 3.500 anos de idade após um incêndio em Orlando, na Flórida.
Rachel relata sua visita ao Senador em 2007 para fotografá-lo para seu livro The Oldest Living Things in the World – uma tentativa de destilar em milésimos de segundo vidas que perduram por milhares de anos. Insatisfeita com o resultado, ela prometeu a si mesma voltar para fotografar novamente o cipreste. “Mas em cinco anos, embora tenha ido à Flórida algumas vezes para ver familiares, não retornei ao Senador”, escreve ela. “Era fácil demais. Com certeza, se o Senador esteve ali por 3.500 anos, estaria por 3.505.”
Não estava. Antes que Rachel pudesse revê-lo, o cipreste sucumbiu ao fogo. “A extrema longevidade pode nos acomodar em uma falsa sensação de permanência. Caímos em uma realidade cotidiana desprovida de pensamento de longo prazo, certos de que as coisas que estiveram ali ‘para sempre’ permanecerão, imutáveis. Mas ser velho não é o mesmo que ser imortal”.
A sensação de longevidade a que a fotógrafa se refere provavelmente tem a ver com a facilidade de apertar o botão rebobinar. Optar pelo botão avançar com certeza nos faria imaginar a morte e, quem sabe, escolher melhor.
*Flavia Pardini é jornalista e fundadora de Página22