O homem do jogo do bicho bradava, depois da missa, “Vai dar cobra”, embora ninguém lhe desse ouvidos. Afinal, quem queria apostar na cobra ao sair da igreja?
Na esquina da rua onde eu morava, houve durante muitos anos uma loja de calçados. Depois que não deu certo, abriu no lugar uma casa lotérica, apostando em melhor sorte nos negócios. O novo dono sempre quis dar passos mais largos com os sapatos que, naturalmente, já não ficavam expostos na vitrine. E as dezenas de número 37 a 44 bico largo foram as primeiras a saltar da sola do pé para os sorteios da loteria federal. Bingo!
A igreja na mesma rua acumulava toda semana 1 milhão, 5 milhões, 30 milhões de orações. A quantidade não dependia do aperto dos sapatos, mas, principalmente, da pressão nos bolsos. Logo que acabava a missa, os fiéis faziam fila na porta da casa lotérica, acreditando que as palavras dirigidas aos céus minutos antes pudessem, enfim, garantir-lhes um quinhão do paraíso aqui embaixo. O homem do jogo do bicho ainda bradava na esquina “Vai dar cobra”, embora ninguém lhe desse ouvidos. Afinal, quem queria apostar na cobra ao sair da igreja?
Ao lado da loja de calçados, havia uma peixaria bem antiga. Empresa de família, transmitida geração a geração. Mas… sabe como funciona? Filho de peixe nem sempre peixinho é. Quando o neto assumiu os negócios, a fonte secou. Não poderia haver, contudo, destino mais irônico para uma peixaria do que o de se tornar loja de aquários. Assim, o lugar que vendia peixes mortos passou a vendê-los vivos, sem dica de preparo do salmão com cebolas e batatas, obviamente. Se a moda pega e açougue vira pasto, ou supermercado vira pomar, até que não seria má ideia para esverdear as metrópoles brasileiras.
A padaria perto da casa de onde me mudei chamava Janaína. As padarias da região, aliás, davam para ter nome de gente. Havia a Regina e continuam a existir a Apolo e a Rita de Cássia. A Janaína fechou. E sempre refleti sobre esse insucesso. Imaginei se, além de diminuir os preços salgados, não faltou aos funcionários da padaria praticar a receita inversa das nomeações. Isto é, chamar os clientes pelos nomes das iguarias. Docinho de coco, bombinha de chocolate e pão de queijo seriam modos, com certeza, bem mais acolhedores.
Não esqueço também a autoescola, que ficava a poucos metros de um semáforo. No verde, a secretária abria as portas para os alunos entrarem. No vermelho, pedia para aguardarem. Como a rua era estreita e havia poucas vagas, os veículos especiais do curso de direção ficavam sempre estacionados sobre a calçada, ensinando aos futuros motoristas sobre o que não fazer no trânsito. No fim das contas, a autoescola virou uma agência de crédito imobiliário – não que dirigir tenha saído de moda. Mas isso sugere que uma autoescola que estacione seus próprios carros na calçada não tenha muito futuro.
Na vizinhança, às vezes as coisas pareciam fora do lugar mesmo, ou o lugar fora das coisas. Ainda hoje, o dono da lanchonete ao lado da agência pendura uma placa de “passo o ponto”, todo abril. Em junho, ele retira a placa. Em agosto, torna a colocar, removendo-a novamente em novembro. Isso pra mim é estratégia de marketing. A freguesia se sente na obrigação de consumir os diversos quitutes do cardápio por pena do homem, querendo ajudar o comerciante a arrecadar fundos.
Em frente ao bar trabalha um sapateiro em sua pequena oficina. Na entrada, pendura cartazes com poemas que ele mesmo escreve. No entrelaçar dos cadarços dos calçados de couro e nos remendos da borracha, brotam os versos e as histórias, com cheiro de outros tempos. Somente depois de pegar o par que eu havia deixado ali para consertar, a visita à rua onde eu morava, na Zona Norte do Rio de Janeiro, pôde seguir, então, seus passos esquina a esquina.
* Eduardo Shor é jornalista