Por Amália Safatle*
Mais que nunca o binômio crise/oportunidade foi tão oportuno. O setor produtivo se vê cada vez mais próximo de cenários de escassez e limitação, dados pelo ambiente físico do planeta, e para os quais os avanços tecnológicos por si só não conseguirão fazer frente.
Com a “água subindo pela barriga”, uma parcela crescente do empresariado percebe na questão da sustentabilidade não um modismo, mas pura necessidade que abre inovadoras possibilidades de produzir e consumir, dentro de uma lógica menos linear e mais sistêmica, baseada na ética, na colaboração e no compartilhamento.
“Os problemas estão ficando evidentes – e isso é uma força de transformação”, diz Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP. Ricardo Abramovay, da FEA-USP, reforça: “A percepção do meio empresarial sobre as inconsistências (no modelo econômico atual) são muito maiores que há 20, 30, 40 anos. Um segmento empresarial mais amplo tem contestado isso (o business as usual, ou o velho jeito de fazer negócios) e vê que tem pernas curtas”.
Reunidos ontem à noite no lançamento do ciclo de encontros Primaveras, em São Paulo, Dowbor e Abramovay debateram com um público de quase 100 pessoas – a maioria jovens – saídas para o que se convencionou chamar de crise civilizatória: a percepção que o modelo convencional ruiu, evidenciado por débâcles econômicas, financeiras, ambientais e sociais. Se a humanidade quiser viver melhor e de forma menos desigual nesta nave, terá de repensar a forma como se organiza, como gera e distribui riqueza, como consome e por que consome. O Primaveras é um espaço de diálogo cocriado por Página22, Matilha Cultural, Outras Palavras, Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e Escola de Ativismo.
A eficiência no uso de recursos naturais e energia tem crescido mas, em compensação, a pegada humana sobre a Terra aumenta por conta de hábitos de consumo insustentáveis, aliados à emergência da classe média mundial e da população ainda em crescimento vegetativo.
Para incluir os menos favorecidos, os mais ricos terão de entender prosperidade não como mero aumento de ganho material, mas sim sob a ótica de outros valores (uma reflexão sobre “ser” em vez de “ter”), de modo a fechar a equação do planeta finito. Nunca a economia – ciência que se propõe a melhor alocar os recursos – foi tão necessária.
Mas ainda não sabemos lutar contra a desigualdade, lembra Abramovay, só contra a pobreza. “Só sabemos fazer mais, para atender a mais gente. Em algumas áreas, temos realmente de fazer mais, como em saúde, educação etc, mas em outras coisas precisamos aprender a fazer menos.”
O lado “oportunidade” dessa “crise” é que o mundo pede inovações, e o campo a ser trabalhado é imenso e dá asas à criatividade. Passa pela desmaterialização (por exemplo, vender o serviço transporte, em vez do produto carro), pela sociedade do conhecimento compartilhado, pelas soluções colaborativas, mas, sobretudo pela ética nos negócios.
“O grande desafio político é introduzir a ética no centro da decisão econômica”, diz Abramovay. Ele lembra que, não faz muito tempo, ainda que a empresa agisse apenas a favor de si mesma, gerando externalidades para a sociedade, mas dentro da lei, estava tudo bem. Hoje não é mais assim. Há uma pressão social, uma vigilância, uma cobrança crescentes.
“A pergunta a ser feita às empresas é: qual é a sua real contribuição para a sociedade? Por que a sociedade precisa de uma empresa como, por exemplo, a Coca-Cola? Basta à empresa apoiar uma cooperativa de catadores? Para combater a obesidade causada pelo refrigerante basta fazer uma quadra de basquete? A ética passa por aí”, questiona.
Enquanto isso, Dowbor lembra que a mídia e as revistas de negócios enaltecem o quem arranca o pedaço maior de minério e petróleo. Mostram o empresário como o grande produtor de petróleo e de minério, mas é preciso lembrar ninguém produz petróleo ou minério”, ironiza.
Mas, como transformar esse cenário? Abramovay parte da opinião de que as empresas não vão mudar simplesmente por reorientação dos incentivos econômicos. “Isso é uma balela”. O caminho, para ele, é pressão social de um lado, enquanto de outro se configura uma nova revolução industrial, descrita como “terceira” pelo economista Jeremy Rifkin, autor de The Third Industrial Revolution. Na obra, Rifkin sustenta que o poder se exprime em termos econômicos, e mostra como a descentralização na produção significa uma descentralização política. Exemplo: consumidores de energia passariam a ser também fornecedores de energia para a rede.
Não por acaso, acredita Abramovay, The Economist e Wired publicaram material com ênfase na forma de produção descentralizada que as impressoras em 3D permitem. Aparelhos como esse abrem possibilidade de produção eficiente e cada vez mais barata nas mãos das pessoas, com potencialidades de transformação imensas, pois permite fazer em casa coisas que até então só poderiam ser feitas com grande concentração de funcionários, recursos e bens de capital, uma elite burguesa. (Página22 falou disso em 2010: pagina22.com.br/index.php/2010/11/rumo-ao-replicator)
Questionados se estamos de novo apostando a solução de todos os problemas na tecnologia, a mensagem de ambos é: entre ética, novas tecnologias e conectividade, ficamos com os três. Não podemos nos dar ao luxo da escolha, e nem temos tempo para isso. A tecnologia digital é o meio de uma mensagem clara: a solução deve ser buscada em rede, pela rede, a favor da rede. Se as crises são sistêmicas, as oportunidade também o são.
*Jornalista, fundadora e editora da revista Página22, especializada em sustentabilidade. Texto publicado originalmente no Terra Magazine