No intervalo de uma semana, entre o fim de setembro e o início de outubro, a cidade de São Paulo teve tanto a madrugada mais fria (8,7 graus) quanto o dia mais quente (34,5 graus) do ano. Quem mora nesta cidade onde se é agraciado pelas quatro estações do ano em um só dia deve ter sentido na pele o contraste. Medição e percepção de temperatura, no entanto, caminham menos juntas do que podemos supor.
Um estudo publicado no periódico Weather, Climate, and Society coletou dados de enquetes com americanos sobre a percepção da temperatura atual em relação à das décadas anteriores e comparou-os com os dados históricos reais da temperatura nas mesmas localidades. Entre as variáveis que mais influenciaram as respostas estava a ideologia do entrevistado: aqueles mais individualistas, pouco afeitos a regulações ambientais e descrentes em relação à mudança climática, tenderam a subestimar o aumento de temperatura; por outro lado, os respondentes mais “comunitaristas” tenderam a superestimar a temperatura atual em relação ao passado.
Ideologias contaminam nossa percepção da realidade, algo que a Psicologia chama de “cognição cultural”. No caso acima, trata-se de um aspecto específico da cognição cultural chamada “cognição protetora da identidade”: nossa tendência a perceber riscos de maneira alinhada a nosso grupo social ou visão de mundo. Seu efeito sobre nossa cognição é tão forte que evidências em contrário são solenemente ignoradas, isso quando não causam o efeito oposto: Dan Kahan, pesquisador de Yale e um dos coordenadores do Cultural Cognition Project daquela universidade, demonstrou que, entre os mais cientificamente letrados, a apresentação de mais evidências possuía um efeito polarizador, aumentando ainda mais o ceticismo daqueles que já percebiam como baixo o risco da mudança climática.
Os estudos sobre cognição cultural parecem apontar para uma divisão difícil de superar. Mesmo a web, espaço colaborativo por natureza, traz embutido o risco de “guetização”: Nossa rede de amigos se torna a de pessoas que pensam como nós, e nossas fontes de informação, aquelas que apenas reforçam as nossas crenças já existentes (mais sobre essas “bolhas virtuais” na reportagem “A produção do desencanto”, da edição 60).
Se o diálogo entre as pessoas já é difícil, a cooperação é ainda mais, exigindo dedicação e prática. O sociólogo Richard Sennett, professor da London School of Economics e da universidade de Nova York, argumentou no fim do século passado que as mudanças na ética do trabalho do capitalismo contemporâneo estariam levando a uma “corrosão do caráter”. Nos últimos anos, Sennett vem se dedicando a encontrar aspectos do trabalho cooperativo, da vida comunitária e da arquitetura das cidades que resgatem nosso senso compartilhado de propósito. Se o “pensar” parece delinear nossas diferenças, Sennett evoca o “fazer” como uma força aglutinadora — sua resposta para um “pragmatismo com alma”.
Jeremy Rifkin, já citado anteriormente nesta coluna, acredita no potencial para desenvolvermos nosso lado Homo empathicus, e passarmos a enxergar como parte de nossa “família estendida” não apenas os membros de outras “tribos” (políticas, religiosas etc.) como os de outras espécies e de toda a biosfera (ver vídeo). Nós temos a tecnologia para isso. O desafio é tornar essa a ética preponderante em nossa sociedade.
*Fabio F. Storino é coordenador de TI e Gestão do Conhecimento do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces).[:en]No intervalo de uma semana, entre o fim de setembro e o início de outubro, a cidade de São Paulo teve tanto a madrugada mais fria (8,7 graus) quanto o dia mais quente (34,5 graus) do ano. Quem mora nesta cidade onde se é agraciado pelas quatro estações do ano em um só dia deve ter sentido na pele o contraste. Medição e percepção de temperatura, no entanto, caminham menos juntas do que podemos supor.
Um estudo publicado no periódico Weather, Climate, and Society coletou dados de enquetes com americanos sobre a percepção da temperatura atual em relação à das décadas anteriores e comparou-os com os dados históricos reais da temperatura nas mesmas localidades. Entre as variáveis que mais influenciaram as respostas estava a ideologia do entrevistado: aqueles mais individualistas, pouco afeitos a regulações ambientais e descrentes em relação à mudança climática, tenderam a subestimar o aumento de temperatura; por outro lado, os respondentes mais “comunitaristas” tenderam a superestimar a temperatura atual em relação ao passado.
Ideologias contaminam nossa percepção da realidade, algo que a Psicologia chama de “cognição cultural”. No caso acima, trata-se de um aspecto específico da cognição cultural chamada “cognição protetora da identidade”: nossa tendência a perceber riscos de maneira alinhada a nosso grupo social ou visão de mundo. Seu efeito sobre nossa cognição é tão forte que evidências em contrário são solenemente ignoradas, isso quando não causam o efeito oposto: Dan Kahan, pesquisador de Yale e um dos coordenadores do Cultural Cognition Project daquela universidade, demonstrou que, entre os mais cientificamente letrados, a apresentação de mais evidências possuía um efeito polarizador, aumentando ainda mais o ceticismo daqueles que já percebiam como baixo o risco da mudança climática.
Os estudos sobre cognição cultural parecem apontar para uma divisão difícil de superar. Mesmo a web, espaço colaborativo por natureza, traz embutido o risco de “guetização”: Nossa rede de amigos se torna a de pessoas que pensam como nós, e nossas fontes de informação, aquelas que apenas reforçam as nossas crenças já existentes (mais sobre essas “bolhas virtuais” na reportagem “A produção do desencanto”, da edição 60).
Se o diálogo entre as pessoas já é difícil, a cooperação é ainda mais, exigindo dedicação e prática. O sociólogo Richard Sennett, professor da London School of Economics e da universidade de Nova York, argumentou no fim do século passado que as mudanças na ética do trabalho do capitalismo contemporâneo estariam levando a uma “corrosão do caráter”. Nos últimos anos, Sennett vem se dedicando a encontrar aspectos do trabalho cooperativo, da vida comunitária e da arquitetura das cidades que resgatem nosso senso compartilhado de propósito. Se o “pensar” parece delinear nossas diferenças, Sennett evoca o “fazer” como uma força aglutinadora — sua resposta para um “pragmatismo com alma”.
Jeremy Rifkin, já citado anteriormente nesta coluna, acredita no potencial para desenvolvermos nosso lado Homo empathicus, e passarmos a enxergar como parte de nossa “família estendida” não apenas os membros de outras “tribos” (políticas, religiosas etc.) como os de outras espécies e de toda a biosfera (ver vídeo). Nós temos a tecnologia para isso. O desafio é tornar essa a ética preponderante em nossa sociedade.
*Fabio F. Storino é coordenador de TI e Gestão do Conhecimento do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces).