(Por Bruna Bernacchio, de Outras Palavras )
Durante dez dias de novembro, Thiago Dezan e Rafael Vilela, midiativistas do Fora do Eixo, viajam por aldeias Guaranis Kaiowá do Mato Grosso do Sul, com duas mochilas e barraca nas costas, cultivando relações com famílias, lideranças e ativistas de movimentos e registrando tudo. Ao passar pelas diversas aldeias – Panambizinho, Ita’y (Lagoa Rica), Guyra Kambi’y, Laranjeira “Nhanderu”, Passo Pirajú, Apicay, Reserva Indígena de Dourados (Aldeias Bororó e Jaguapirú), Pyelito Kue, Campestre, Pirajuí. O objetivo era dar voz, ao invés de tentar falar pelos índios.
Ao fazê-lo, vivenciaram a luta pela “Tekoha”, a terra sagrada — uma resistência à expansão desumana do agronegócio. Graças a esta imersão humana, livre dos interesses comerciais da mídia tradicional, revelam também o cotidiano dessas aldeias — de guerra, morte e medo, mas ao mesmo tempo incrivelmente alegre, de grande espiritualidade e constante debate sobre outras questões indígenas.
Desde o início da viagem, Thiago e Rafael postaram com frequência fotos e pequenas narrações em uma página do facebook intitulada “Coluna Guarani Kaiowá”. Quando retornaram, produziram um vídeo reportagem, editando brevemente trechos das mais de 30 horas gravadas. A intenção inicial era mobilizar para as manifestações em favor dos guaranis-kaiowás que aconteceram nas ruas de todo o país, em 9/11.
Agora, todo o material pode ser retrabalhado. Está disponível em licença livre, Creative Commons, para quem quiser utilizar. Para apresentar o vídeo e compartilhá-lo na internet, os midiativistas fizeram um interessante programa de Pós-TV, repleto de informações e relatos de suas experiências pessoais. A transmissão pode ser vista na íntegra aqui e aqui.
Abaixo, uma seleção Outras Palavras de suas falas mais significativas.
“A viagem […] teve um motivo muito claro: produzir e qualificar o debate nas redes sociais, sobre algo que já estava virando um fenômeno.”
“Os próprios indígenas falavam muito, as lideranças: o que rolou no facebook foi um diferencial pra luta deles e pra permanência principalmente pro povoado de Pyelito Kuê.”
“O que a gente vivenciou de perto é que essa história não é recente, não tem nada muito novo. Tudo isso já é um processo histórico, e a gente indo ou voltando, fazendo o vídeo ou não, continuam esses problemas.”
“Esse contexto de mobilização social, com as marchas […], é um começo. Tá todo mundo aqui começando uma pesquisa, uma investigação, uma mobilização, e uma forma de ativismo, que os brancos também puxam, mas na base das lideranças indígenas. […] É um momento muito histórico da gente conseguir fazer essa conexão de brancos e índios, as duas culturas, as redes somando de todas as formas, eles mesmo fazendo um trabalho no facebook massa, a gente está aqui pra potencializar isso.”
“Trocando ideia com essa galera que já está há um tempo no documentarismo, o Bruno [Torturra] deu um toque pra gente: ‘Cara, se você não sabe falar como que foi, fala o que te tocou mais, isso que mais importa’. E pra gente o que foi muito tocante foi que, apesar daquele rastro de sangue, que a gente foi vendo a cada aldeia que a gente passava, […] é a forma completamente calma, tranquila e alegre que os Guaranis Kaiowá lidam com essa situação. E não é que eles são passivos, ou porque eles não tem capacidade de lutar, mas eles são pessoas muito em paz, são muito alegres, apesar de tudo. Eles conseguem conversar com você com um sorriso na boca, que dificilmente alguém da gente que passasse por uma situação dessa, de perda de parentes, de ameaça de morte, tudo isso, conseguiria ter de forma tão natural. Então acho que mais marca assim mesmo é a alegria. […] Como as crianças continuam brincando de pular no rio, como todo mundo continua vivendo, apesar de tudo. E lutando pela vida mesmo.”
“Uma frase também do Daniel que eu acho muito importante: quando a luta é pela vida, a morte se torna um negócio muito pequeno.”
“Foram aldeias nas suas mais diversas condições. Desde aldeia que fica na beira de estrada, porque eles não têm nenhum outro lugar pra ir; até aldeia que fica dentro da fazenda, uma espécie de ocupação, que eles chamam de ‘retomada’, justamente porque é essa retomada ao território que foi deles anteriormente; aldeia que já estava regulamentada, regularizada, que os indígenas estavam ali sem problemas; aldeias que são demarcadas, mas que têm uma população indígena muito superior ao que comportam. Os antropólogos fizeram até uma assimilação de que isso seria uma espécie de campo de concentração indígena.”
“Aí tem dados muito legais: que lá no Mato Grosso do Sul, cerca de 22 indígenas ocupam o mesmo espaço que uma vaca em hectares. Pra você ver que tipo de valores estão regendo essa distribuição de terras no nosso país”.
“Antoniel, que é uma das cinco lideranças indígenas do Brasil […], pra ele conseguir ir visitar as aldeias, ele tem que ir com mais quatro homens da Força Nacional, que o Governo Federal mandou pra lá, justamente porque o estado do Mato Grosso do Sul não atende as aldeias indígenas. A Polícia Militar e a Polícia Civil não estão subindo para as aldeias. Num movimento muito de exclusão completo com aquela comunidade. […] As aldeias não demarcadas, na verdade, são um grande território que não tem acesso a nenhum tipo de política ou serviço público. Então são grande aglomerados de pessoas que estão completamente à deriva, sem nenhum apoio do Estado. Por isso que a pauta deles, que às vezes parece uma pauta única, mas é isso, a questão da demarcação do território.”
“Boa parte dos guaranis não sabiam que ia ter essas manifestações dia 9, e foi muito emocionante poder ser o porta voz dessa mensagem, porque os caras não estão sozinhos gritando dos confins da floresta, mas que nós aqui também estamos falando nisso, estamos querendo nos aproximar mais deles.”
“Deste conteúdo que foi todo produzido lá, a gente priorizou a fazer esse vídeo pra mobilizar as manifestações […], mas que são mais de 30 horas de conteúdo registrados, entre viagens, atolamentos, travessias de rio, depoimentos dos indígenas, e muitos outros episódios que aconteceram lá. E este conteúdo está todo em copyleft, se alguém pegar uma cópia dessa parada, é só entrar em contato com a gente. Se alguém quiser montar uma outra versão desse vídeo, os conteúdos estão na mão. Porque eu acho que esse é o grande diferencial do midiativismo que a gente vem produzindo aqui: não basta você só ir lá, expressar sua opinião, mas você abrir isso também, pra que outras pessoas possam fazer suas leituras. […] Porque esse conteúdo está aí exatamente pra ser mostrado pro mundo todo.”
“…Ao longo desses dias todos lá, circulando pelo interior do Mato Grosso do Sul, a gente conseguiu pegar vários enchertos, várias visões de mundo, mas que no todo somam uma história comum. […] Todos eles tinham acesso à essa terra de forma irrestrita antes do século XX, então até o começo de 1900, eles tinham acesso a praticamente todo o território do MS, e esse território foi sendo podado e cortado pelo Estado em missões de expansão de frente agrícola a partir de 1910. […] Como a Reserva Indígena de Dourados, por exemplo, em que se pegou indígenas de várias etnías, de vários grupos, e se condensou eles, hoje são quase 15 mil, numa área de 3.500 alqueres, né, muito pouco espaço. Foram processos de esmagamentos mesmo, de confinamento dos próprios indígenas ali, pra liberar o espaço, pra expansão da agricultura, do progresso, nessa visão desenvolvimentista aí do território e de economia.
“Então, o que existe é um processo global, em que as aldeias foram retiradas de seus espaços iniciais, e se recusaram a ir embora. […] Porque eles entendem que historicamente ali é o lugar onde eles tem que estar. […] Entre os anos 70 e 90, começou um processo gradual, que hoje se intensifica, de retomada. […] Eles vão lá na raça mesmo, reocupam esse espaço, e resistem. […] Até tem uma das entrevistadas aí, que aquela aldeia que a gente mostra na beira da estrada, chama Apicay, que é muito simbólico, porque o nome mesma já significa ‘os que esperam’, né, esperam pela terra sagrada.”
“A repercussão, tanto lá quanto aqui, é muito legal. E acho que se todo mundo pudesse, todo mundo devia ir. Inclusive um dos atos que está sendo discutido agora pro final do ano, é de rolar um acampamento coletivo nessas aldeias em risco lá. […] Acampamento solidariedade. […] Ir ao local, olhar no olho da galera, e conseguir ter esse sentimento de troca, que vai muito além do conteúdo, né, a gente não estava lá pra só sugar informação, mas pra manter um canal de diálogo permanente. Eu acho que isso é uma metáfora do que deve ser essa relação da sociedade civil agora, com o movimento originário dos índios.”
“Eles estão bem marcados mesmo por essas experiências trágicas da mídia ir lá e fazer algo contra eles. […] A questão da carta é bem importante, que ela foi extremamente mal interpretada. Foi interpretada pela sociedade aqui, pelas redes, como uma tentativa, uma ameaça, de suicídio coletivo, e todos os índios que você fala sobre isso são altamente contra isso, acho que em nenhum momento os povos indígenas consideraram se matar coletivamente. O que existe de fato é um processo, de certa forma, de uma depressão muito latente em várias pessoas, por vivenciar essa situação de conflito. Então de fato existe sim uma taxa de suicídio muito alta, e que resulta dessa pressão social e dessas questões todas que estão colocadas. Não de uma desistência da luta, mas de pessoas que não dão conta de aguentar emocionalmente. Eles falam de uma doença da alma.”
“A Pyelito Kue tem uma história que é bem significativa nesse processo deles, já existe como uma terra do outro lado do rio, onde as famílias estão instaladas, e essa superpopulação, crescimento ao longo dos anos, fez com que os mais novos migrassem pros territórios antigos, que tinham sido desocupados, e ocupassem o que hoje são fazendas. Então aí a ira dos fazendeiros, né. Porque os fazendeiros compraram essa terra do governo, a não muito tempo, há 50, 60 anos, e não querem por nada perder elas sem ter acesso ao valor que elas valem no mercado, né. Então essa treta é econômica. O governo vendeu uma terra que não era dele, pros fazendeiros, pra expansão da fronteira agrícola, e hoje está nesse impasse. Porque o governo também só se dispõe a pagar o terra da casa da fazenda, e não da terra bruta. E isso está num impasse que não existe solução fácil também, porque o governo tem que desenbolsar. […] Mas isso não justifica uma atitude violenta por parte dos fazendeiros, né. A gente entende que o governo tem a sua parcela de culpa, por ter vendido lá trás essas terras, mas que hoje em dia a gente precisa, e conjunto, pensar numa solução sem causar mais violência pras pessoas, né.”
“Isso foi o encontro de educadores indígenas. […] Foi muito bacana saber que eles estão juntos pensando como é que eles vão construir a escola deles, como é que eles vão conseguir ampliar o número de aldeias que possuem seus centros de ensino indígenas. E tinham mais de 200 pessoas lá, todas acampadas no mesmo lugar, comendo e fazendo sua comida em conjunto. E são lideranças indígenas do país inteiro dos Guaranis Kaiowá discutindo o futuro da educação indígena, passando por um processo de formação de um projeto de vida e sociedade que é muito claro. E fica claro também o quão de frente o projeto indígena bate com o projeto que está posto aí, dos grandes negócios, das grande empresas, megacorporações, e desse sistema baseado no consumo. […] Pra gente, que tenta estabelecer no dia a dia esse processo mais coletivo, mais solidário, de uma troca mais justa, a gente fica impressionado com o que eles já têm, né.”