Se não se tornar efetiva a governança da mudança climática, ficará mais provável um “choque de civilizações” do que uma isolada crise civilizatória do chamado Ocidente
Há afirmações que costumam ser feitas como se fossem meras repetições
de certezas, ou de razoáveis consensos, quando, ao contrário, são ideias sujeitas
a contestações, ou com grande potencial de gerar controvérsias. Ninguém sairia perdendo se, em vez de peremptórias, tais afirmações fossem apresentadas como modestas preferências de respostas para certas dúvidas. Assim, ao menos se evitaria a difusão de equívocos.
Correspondem perfeitamente a tal contexto duas afirmações que com certeza já chegaram aos ouvidos dos leitores de PÁGINA22: “estamos em uma crise civilizatória”; “o ser humano é egoísta”. Até dá para entender as possíveis origens dessas avaliações, mas poderia ser desastroso supor que sejam inofensivas.
Quantas civilizações coexistem na atualidade? Não houve coincidência alguma entre os que mais aprofundaram estudos sobre o tema. Supondo que se chegasse a algum consenso de que elas são “sete ou oito”, dele necessariamente decorreria a seguinte interrogação: a qual delas está se referindo quem afirma que haja crise civilizatória?
O mais provável é que esteja pensando na que decorreu da grande expansão europeia, frequentemente chamada de Ocidente. Pois então: será mesmo razoável afirmar que essa civilização está em crise? A principal justificativa para tal dúvida vem de uma simples comparação com o período 1914-1945, a “Era da Catástrofe”.
Com certeza houve uma crise civilizatória quando se esteve sob a ameaça de vitória do nazismo, movimento duplamente engendrado pelas disputas geopolíticas europeias e pelos impactos sociais da pior recessão econômica do capitalismo. Mas nada de parecido ocorreu a partir de então, apesar da longa lista de outras tragédias bélicas e desastres sociais causados por terremotos econômicos. Desde que, entre julho de 1944 e junho de 1945, os acordos de Bretton Woods foram firmados por 44 nações e que 51 criaram a ONU, passou-se a contar com razoável governança global, por mais criticável que seja.
É verdade que três ou quatro décadas depois surgiram evidências de que a inédita prosperidade obtida, principalmente durante a Era de Ouro (1948-73), começara a solapar os próprios fundamentos biogeofísicos do desenvolvimento humano.
Todavia, os balanços científicos disponíveis sobre as fronteiras ecológicas globais estão longe de comprovar alguma crise da civilização ocidental. Mais: se não se tornar efetiva a governança da mudança climática, ficará mais provável um “choque de civilizações” do que uma isolada crise civilizatória do chamado Ocidente.
Tais dúvidas nem sequer estariam sendo formuladas se o ser humano fosse apenas egoísta. Se a humanidade chegou até a ponto de poder se colocar esse tipo de problema, foi porque seu pendor à cooperação evoluiu tanto ou mais que sua propensão egoísta. São raríssimas outras espécies com capacidade cooperativa que possa chegar a ser comparável à do gênero humano.
Avanços da primatologia, da psicologia e da neurociência vêm mostrando que o egoísmo dos humanos não impede que também sejam seres pré-programados para estender a mão a seus semelhantes. Depois de muito estudar chipanzés, bonobos, macacos-prego, golfinhos e elefantes, Frans de Waal passou a enfatizar que os humanos andam sobre duas pernas: uma social, outra egoísta. [1]
[1] Frans de Waal, A Era da Empatia: Lições da natureza para uma sociedade mais gentil. Companhia das Letras, 2010.
Além disso, não faltam indícios de que os humanos se comportem simultaneamente como cooperadores condicionais e castigadores altruístas. Isto é, são tão predispostos a cooperar com os outros quanto prontos a punir os que violarem as normas dessa cooperação, mesmo em circunstâncias nas quais tenham de assumir custos irrecuperáveis. Padrão batizado por alguns dos poucos cientistas sociais de linha evolucionária como “forte reciprocidade”. [2]
[2] Entre os principais analistas desse padrão comportamental destacam-se os economistas Herbert GINTIS, Samuel BOWLES e Ernst FEHR, o antropólogo Robert BOYD e o psicólogo Joseph HENRICH, autores do artigo “Strong reciprocity and the roots of human morality”, Soc Just Res, Springer 2008.
Em suma, apenas emerge a nova visão sobre a humanidade que apontará para a possível restauração de um relacionamento sustentável entre a sociedade e a natureza. E o mesmo ocorre com seus correspondentes valores.
*José Eli da Veiga é professor dos Programas de Pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP e (IRI/USO) do do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ)[:en]Se não se tornar efetiva a governança da mudança climática, ficará mais provável um “choque de civilizações” do que uma isolada crise civilizatória do chamado Ocidente
Há afirmações que costumam ser feitas como se fossem meras repetições de certezas, ou de razoáveis consensos, quando, ao contrário, são ideias sujeitas a contestações, ou com grande potencial de gerar controvérsias. Ninguém sairia perdendo se, em vez de peremptórias, tais afirmações fossem apresentadas como modestas preferências de respostas para certas dúvidas. Assim, ao menos se evitaria a difusão de equívocos.
Correspondem perfeitamente a tal contexto duas afirmações que com certeza já chegaram aos ouvidos dos leitores de PÁGINA22: “estamos em uma crise civilizatória”; “o ser humano é egoísta”. Até dá para entender as possíveis origens dessas avaliações, mas poderia ser desastroso supor que sejam inofensivas.
Quantas civilizações coexistem na atualidade? Não houve coincidência alguma entre os que mais aprofundaram estudos sobre o tema. Supondo que se chegasse a algum consenso de que elas são “sete ou oito”, dele necessariamente decorreria a seguinte interrogação: a qual delas está se referindo quem afirma que haja crise civilizatória?
O mais provável é que esteja pensando na que decorreu da grande expansão europeia, frequentemente chamada de Ocidente. Pois então: será mesmo razoável afirmar que essa civilização está em crise? A principal justificativa para tal dúvida vem de uma simples comparação com o período 1914-1945, a “Era da Catástrofe”.
Com certeza houve uma crise civilizatória quando se esteve sob a ameaça de vitória do nazismo, movimento duplamente engendrado pelas disputas geopolíticas europeias e pelos impactos sociais da pior recessão econômica do capitalismo. Mas nada de parecido ocorreu a partir de então, apesar da longa lista de outras tragédias bélicas e desastres sociais causados por terremotos econômicos. Desde que, entre julho de 1944 e junho de 1945, os acordos de Bretton Woods foram firmados por 44 nações e que 51 criaram a ONU, passou-se a contar com razoável governança global, por mais criticável que seja.
É verdade que três ou quatro décadas depois surgiram evidências de que a inédita prosperidade obtida, principalmente durante a Era de Ouro (1948-73), começara a solapar os próprios fundamentos biogeofísicos do desenvolvimento humano.
Todavia, os balanços científicos disponíveis sobre as fronteiras ecológicas globais estão longe de comprovar alguma crise da civilização ocidental. Mais: se não se tornar efetiva a governança da mudança climática, ficará mais provável um “choque de civilizações” do que uma isolada crise civilizatória do chamado Ocidente.
Tais dúvidas nem sequer estariam sendo formuladas se o ser humano fosse apenas egoísta. Se a humanidade chegou até a ponto de poder se colocar esse tipo de problema, foi porque seu pendor à cooperação evoluiu tanto ou mais que sua propensão egoísta. São raríssimas outras espécies com capacidade cooperativa que possa chegar a ser comparável à do gênero humano.
Avanços da primatologia, da psicologia e da neurociência vêm mostrando que o egoísmo dos humanos não impede que também sejam seres pré-programados para estender a mão a seus semelhantes. Depois de muito estudar chipanzés, bonobos, macacos-prego, golfinhos e elefantes, Frans de Waal passou a enfatizar que os humanos andam sobre duas pernas: uma social, outra egoísta. [1]
[1] Frans de Waal, A Era da Empatia: Lições da natureza para uma sociedade mais gentil. Companhia das Letras, 2010.
Além disso, não faltam indícios de que os humanos se comportem simultaneamente como cooperadores condicionais e castigadores altruístas. Isto é, são tão predispostos a cooperar com os outros quanto prontos a punir os que violarem as normas dessa cooperação, mesmo em circunstâncias nas quais tenham de assumir custos irrecuperáveis. Padrão batizado por alguns dos poucos cientistas sociais de linha evolucionária como “forte reciprocidade”. [2]
[2] Entre os principais analistas desse padrão comportamental destacam-se os economistas Herbert GINTIS, Samuel BOWLES e Ernst FEHR, o antropólogo Robert BOYD e o psicólogo Joseph HENRICH, autores do artigo “Strong reciprocity and the roots of human morality”, Soc Just Res, Springer 2008.
Em suma, apenas emerge a nova visão sobre a humanidade que apontará para a possível restauração de um relacionamento sustentável entre a sociedade e a natureza. E o mesmo ocorre com seus correspondentes valores.
*José Eli da Veiga é professor dos Programas de Pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP e (IRI/USO) do do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ)