Entre caminhos e descaminhos nas últimas décadas, o movimento da sustentabilidade avança pelas bordas rumo ao núcleo, em busca de maior poder de influência. Na linha do tempo contada nesta reportagem, acompanhe sua crescente institucionalização no contexto político, por meio de leis, organizações e partidos
No campo político, os efervescentes anos 1960 testemunharam a Guerra do Vietnã, a Revolução Cubana no poder, a construção do Muro de Berlim, a Guerra Fria, a corrida espacial, o início do processo de descolonização na Ásia e na África.
Nas ruas, enquanto isso, os filhos dos sobreviventes da Segunda Guerra inauguravam a contracultura ao promover a revolução sexual, o movimento feminista, o Maio de 68, o flower power, Woodstock…
Em meio a essa “sopa eclética” [1] , vitaminada por uma prosperidade material sem precedentes advinda do milagre econômico do pós-guerra, eclode a noção de finitude dos recursos naturais do planeta. É o embrião de um movimento global que nasce com propósitos ambientais, recebe valiosos subsídios da comunidade científica, atravessa grandes eventos internacionais sob os auspícios das Nações Unidas, abraça causas sociais, interfere em processos produtivos, propõe mudanças de paradigma aos sistemas político e econômico vigentes e transforma-se, enfim, na corrente que hoje se conhece por sustentabilidade.
[1] Termo cunhado pelo cientista político baiano Carlos Nelson Coutinho para definir as tendências intelectuais da época e usado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm, no livro Como Mudar o Mundo
Experimentaram-se derrotas e refluxos ao longo desses cerca de 40 anos, mas também viram-se muitas bandeiras importantes sendo incorporadas às políticas institucionais de vários países. No Brasil, a iniciativa em curso de criação de um novo partido político, a Rede Sustentabilidade, que traz como uma de suas propostas a inserção na agenda institucional de um modelo de desenvolvimento sustentável, pode ser compreendida como o mais recente capítulo dessa trajetória cheia de altos e baixos.
Enquanto o mundo absorvia os impactos do emblemático relatório Limites do Crescimento, produzido por cientistas do MIT (sigla em inglês para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts) para o Clube de Roma, e dos embates ocorridos em 1972 na primeira conferência ambiental das Nações Unidas, realizada em Estocolmo, entre países desenvolvidos e não desenvolvidos sobre o direito ao crescimento econômico, várias áreas do saber envolviam-se com o tema, entre elas as do Direito e da política.
Assim, começaram a se desenhar os primeiros marcos regulatórios, incorporando questões ambientais à esfera institucional, e surgiram também os primeiros partidos políticos, como o Partido Verde, fundado em 1980 na Alemanha, e que inspirou a organização de partidos similares pelo mundo. A Red-Green Coalition governou a Alemanha por dois mandatos (1998-2005) sob a liderança do chanceler Gerhard Schröder, do Partido Social-Democrata (SPD), tendo os Verdes como os chamados junior partners.
Conseguiram aprovar um programa de desativação dos reatores nucleares, que será completado em 2022, influenciaram a União Europeia a adotar um enfoque mais ambiental para sua política agrícola e mantiveram o governo alemão fora da operação de invasão do Iraque, embora continuando a oferecer suporte indireto à ação dos Estados Unidos, que mantêm bases militares na Alemanha. Hoje, contam com 62 deputados no Bundestag, a maior representação parlamentar já obtida por um partido verde (em termos relativos).
“A Alemanha é hoje uma sociedade avançadíssima em termos de sustentabilidade, assim como os países escandinavos, por influência da família de partidos verdes”, analisa o cientista político Eduardo Viola, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), sem esquecer de atribuir mérito ao fato de a Alemanha ter um dos sistemas políticos mais modernos e transparentes do mundo.
A preocupação ambiental nos anos 1970 girava em torno das catástrofes, como a poluição marinha provocada por derramamentos de petróleo e acidentes nucleares. Logo após a conferência de Estocolmo, surgiram as primeiras leis de caráter preventivo e restritivo, definindo um modelo para servir às políticas públicas ambientais que foi chamado de “comando e controle”. O poder público passou a licenciar e fiscalizar atividades de risco por meio de padrões determinados em lei. Os que não respeitassem os padrões de funcionamento eram autuados.
Segundo o professor titular de Direito Ambiental da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Fernando Rei, o tempo mostrou que o modelo apresentava pelo menos um grande problema. Aqueles que não cumpriam os padrões preferiam a autuação ao investimento em novas tecnologias antipoluidoras, pois repassavam o custo da sanção ao consumidor. Além disso, a sanção dava um certo respaldo ao direito de poluir. Algo na linha: bem, já que estou pagando, continuo poluindo.
É dessa época o primeiro marco legal a tratar o meio ambiente como um direito próprio e autônomo, a Lei no 6.938/81, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Embora baseada no modelo de comando e controle, a PNMA era avançada para a época, pois, segundo Rei, já se abria à visão do modelo de “gestão ambiental”, que pressupõe a medição de resultados empresariais não apenas de ordem econômica, mas também social e ambiental, o chamado triple bottom line. Ao considerar os riscos e as oportunidades atrelados à gestão socioambiental, o TBL torna-se uma poderosa arma de reforço para as políticas de comando e controle.
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
Enquanto no plano econômico os anos 1980 foram taxados de “a década perdida”[2], no movimento ambiental e no cenário político-partidário a década foi marcada por várias realizações importantes, a começar pela redemocratização do Brasil. A nova democracia brasileira, pós-ditadura militar, funciona na base do presidencialismo de coalizão, ou seja, os partidos oferecem a base parlamentar que falta ao governo em troca de participação (cargos) no Executivo, assegurando a governabilidade do País.
[2] A década perdida caracterizou-se pelo baixo crescimento, desemprego, explosão da dívida externa provocada pelo aumento extraordinário da taxa de juro americana e inflação fora de controle
Emergiu nesse contexto, ainda no período derradeiro do regime militar, o Partido dos Trabalhadores (PT) – que nasceu em fevereiro de 1980 a partir de uma confluência de forças políticas ligadas ao novo sindicalismo, aos movimentos sociais, à Igreja e a partidos e grupos de esquerda clandestinos. Além de rejeitar a fórmula do presidencialismo de coalizão, identificando-a com o fisiologismo, o partido se estruturou “de baixo para cima”, por meio de núcleos de base, introduziu na cena política institucional novos atores sociais (trabalhadores, ativistas sociais e da Igreja) e propôs uma revolução democrática pacífica por dentro do sistema.
Alguns anos depois, em 1986, era fundado no Brasil o Partido Verde, que deu um importante passo além da sua missão político-partidária de defesa da pauta ambiental dentro do Congresso Nacional às vésperas do início dos trabalhos do Congresso Constituinte. Os líderes fundadores [4] do partido ajudaram a articular uma ponte entre o sindicalista e ecologista Chico Mendes e algumas das mais proeminentes entidades ambientalistas da Europa e dos Estados Unidos, entre as quais o Environmental Defense Fund (EDF), uma das mais importantes organizações não governamentais americanas.
[3] Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Herbert Daniel e Lucélia Santos
O mundo começava, então, a tomar conhecimento do perigoso conflito agrário entre os defensores de um modelo de desenvolvimento da Amazônia baseado no uso sustentável da floresta e os que insistiam na derrubada da mata para implantação de uma pecuária extensiva.
Para Chico Mendes, a luta terminou em 1988, enquanto o País ainda comemorava a nova e progressista Constituição Federal do Brasil. Além de reconstituir as liberdades democráticas, garantir de forma abrangente os direitos sociais dos brasileiros e fortalecer o papel do Ministério Público como instrumento fundamental na defesa dos direitos difusos e coletivos (meio ambiente, indígenas e consumidores, entre outros), a Carta incorporou o admirável capítulo VI [4], que trata do meio ambiente e que se tornou referência mundial.
[4] Prevê o artigo 225, do Capítulo VI, da Constituição Federal: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”
DEZ A ZERO
“A Constituição de 88 foi tão pioneira que tratou naquela época de temas que só emergiriam anos mais tarde, como o conceito de biodiversidade”, lembra o advogado e ambientalista Fabio Feldmann, que, em seu primeiro de três mandatos consecutivos como deputado federal pelo PMDB (1986-1988) e o PSDB (1988-1998), liderou uma articulação entre parlamentares progressistas para a inclusão na Constituição de um capítulo inteiro dedicado ao meio ambiente.
“Em termos ambientais, a Constituição de 88 dá de 10 a zero em todas as outras, exceto talvez na da Alemanha, que é praticamente um ‘código florestal’”, opina o diretor de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani, que desde aquela época acompanha de perto os trabalhos da Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso Nacional. A Frente é aberta aos deputados federais e senadores interessados em participar de articulações em prol da proteção ambiental.
No Congresso Constituinte, a Frente Parlamentar Ambientalista cabia numa Kombi, lembra Mantovani. Era composta por nove membros. “Felizmente, entre os nove havia ‘feras’ como Fabio Feldmann.” Hoje, segundo Mantovani, “a Frente Parlamentar conta com quase 300 membros, muitos deles especializados em temas como educação ambiental, Pantanal ou Cerrado”, comemora ele, apesar da recente derrota para a bancada ruralista no caso do Código Florestal. “Ganhamos aqui, perdemos ali, mas continuamos na luta”, diz. “É parte do jogo político.”
No âmbito global, o relatório Nosso Futuro Comum, publicado pela Comissão Brundtland em 1987, com sua definição para desenvolvimento sustentável [5], corria mundo. Nesse período, percebeu-se que era hora de convocar uma nova conferência ambiental. Não se falava mais em poluição local, mas de uma poluição que ultrapassava as fronteiras. Clamava-se por uma responsabilidade comum dos países. Por várias razões geopolíticas, é senso comum que será difícil repetir o êxito da Rio 92.
O Muro de Berlim caíra, abrindo a oportunidade de atrair as novas economias do Leste Europeu para a agenda da sustentabilidade. Despontavam os primeiros indícios de países que teriam um rápido crescimento econômico – caso dos Tigres Asiáticos. Havia também a percepção de que a agenda não era mais exclusivamente ambiental: “A preservação da integridade dos recursos naturais do planeta só teria sentido se esse esforço sinalizasse também o fim das injustiças sociais”, lembra o professor de Direito Ambiental da Faap.
[5] “O desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”
A DUCHA FRIA DO CÓDIGO
Após esses avanços, um refluxo atingiu o movimento global da sustentabilidade neste novo milênio, que, segundo Feldmann, foi agravado pela crise econômica mundial iniciada em 2008. No Brasil, o símbolo maior desse esmorecimento do movimento ambientalista foi a aprovação no ano passado de um Novo Código Florestal altamente favorável ao agronegócio, que anistiou o desmatamento ilegal em topos de morro e margens de rios, em um flagrante desrespeito aos proprietários rurais cumpridores da lei.
Naquele momento, a robusta Frente Parlamentar Ambientalista fragmentou-se. A forma como tem sido conduzida a implementação de projetos de construção de usinas hidrelétricas, entre elas a de Belo Monte, também tem estado em desacordo com algumas das práticas mais elementares de gestão da sustentabilidade.
Ainda assim, o arcabouço em prol do meio ambiente conseguiu agregar importantes marcos legais nos últimos anos. Para o vereador paulistano Nabil Bonduki (PT), arquiteto e professor de Planejamento Urbano da FAU-USP, nesse período foi fundamental para o movimento a Lei de Crimes Ambientais [6], promulgada no finalzinho dos anos 1990, e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), de 2010.
[6] A Lei no 9.605 foi publicada em fevereiro de 1998 e inovou ao apontar que a responsabilidade das pessoas jurídicas não excluía a das pessoas físicas, autoras e coautoras da infração
Esta última, como bem observou o vereador, teve o grande mérito de ir muito além da reciclagem do lixo: “Os consumidores, que até então eram meros espectadores do movimento pela sustentabilidade, transformaram-se também em atores importantes ao começar a separar o lixo de suas casas para dar aos recicláveis uma destinação mais apropriada”.
Outras conquistas não menos importantes foram as a Lei da Mata Atlântica, a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc).
QUAL BANDEIRA?
Um caminho para retomar uma trajetória mais positiva na agenda da sustentabilidade poderia ser a união da Rede Sustentabilidade – caso se torne de fato uma estrutura institucionalizada, na forma de um partido legalizado – às forças simpatizantes das causas ambientais dentro do sistema político-partidário tradicional e pulverizado que temos, que leva às coalizões. No entanto, essa é uma possibilidade incerta.
Segundo Eduardo Viola, ao ingressar na política institucional, a Rede trabalhará, sim, na coordenação de várias bandeiras da sustentabilidade, porém, dará mais ênfase à agenda da ética e da transparência a fim de recuperar a credibilidade da política entre os brasileiros. “No Brasil, a política tradicional rejeita as novas gerações que estão orientadas para o bem comum e selecionam apenas as pessoas que querem a política para realizar negócios pessoais em rede de amigos e de poder”, diagnostica Viola. “Não podemos deixar de atuar nessa questão”, reitera.
Para Fabio Feldmann, a chegada do novo partido deveria pressupor uma retomada vigorosa do movimento. “Os partidos que estão hoje no poder, ou o disputando, não possuem qualquer agenda para a sustentabilidade”, afirma. Por isso, em sua opinião, a Rede deveria centrar seus esforços nessa bandeira e não na ética da política. “Acho que o novo partido político terá grande capacidade de atrair pessoas que não necessariamente se entusiasmam pela política, mas que querem trabalhar pelo movimento ambientalista lato sensu, isto é, pelas mudanças climáticas, biodiversidade, direito indígena etc.”
Mario Mantovani, que desde a Constituinte atua na Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso Nacional, mesmo sem nunca ter se filiado a um partido político, crê que a Rede Sustentabilidade terá um valor inestimável para o movimento ambientalista, independentemente de aceitar ou não participar das coalizões partidárias típicas do sistema político brasileiro.
Otimista e dono de uma visão bem pragmática da política partidária, o dirigente da SOS Mata Atlântica diz que, mesmo com deputados de todos os matizes – inclusive o do toma-lá-da-cá –, o Brasil conseguiu construir um arcabouço ambiental fantástico. “Tudo isso atuando dentro de um Congresso que faz política ao mesmo tempo com oligarquias, intelectuais sérios, caras do BBB, o esportista em evidência e até com palhaço”. E arremata: “Somos um caldeirão”.
Ou, quem sabe dissesse Carlos Nelson Coutinho: somos uma sopa eclética.[:en]Entre caminhos e descaminhos nas últimas décadas, o movimento da sustentabilidade avança pelas bordas rumo ao núcleo, em busca de maior poder de influência. Na linha do tempo contada nesta reportagem, acompanhe sua crescente institucionalização no contexto político, por meio de leis, organizações e partidos
No campo político, os efervescentes anos 1960 testemunharam a Guerra do Vietnã, a Revolução Cubana no poder, a construção do Muro de Berlim, a Guerra Fria, a corrida espacial, o início do processo de descolonização na Ásia e na África.
Nas ruas, enquanto isso, os filhos dos sobreviventes da Segunda Guerra inauguravam a contracultura ao promover a revolução sexual, o movimento feminista, o Maio de 68, o flower power, Woodstock…
Em meio a essa “sopa eclética” [1] , vitaminada por uma prosperidade material sem precedentes advinda do milagre econômico do pós-guerra, eclode a noção de finitude dos recursos naturais do planeta. É o embrião de um movimento global que nasce com propósitos ambientais, recebe valiosos subsídios da comunidade científica, atravessa grandes eventos internacionais sob os auspícios das Nações Unidas, abraça causas sociais, interfere em processos produtivos, propõe mudanças de paradigma aos sistemas político e econômico vigentes e transforma-se, enfim, na corrente que hoje se conhece por sustentabilidade.
[1] Termo cunhado pelo cientista político baiano Carlos Nelson Coutinho para definir as tendências intelectuais da época e usado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm, no livro Como Mudar o Mundo
Experimentaram-se derrotas e refluxos ao longo desses cerca de 40 anos, mas também viram-se muitas bandeiras importantes sendo incorporadas às políticas institucionais de vários países. No Brasil, a iniciativa em curso de criação de um novo partido político, a Rede Sustentabilidade, que traz como uma de suas propostas a inserção na agenda institucional de um modelo de desenvolvimento sustentável, pode ser compreendida como o mais recente capítulo dessa trajetória cheia de altos e baixos.
Enquanto o mundo absorvia os impactos do emblemático relatório Limites do Crescimento, produzido por cientistas do MIT (sigla em inglês para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts) para o Clube de Roma, e dos embates ocorridos em 1972 na primeira conferência ambiental das Nações Unidas, realizada em Estocolmo, entre países desenvolvidos e não desenvolvidos sobre o direito ao crescimento econômico, várias áreas do saber envolviam-se com o tema, entre elas as do Direito e da política.
Assim, começaram a se desenhar os primeiros marcos regulatórios, incorporando questões ambientais à esfera institucional, e surgiram também os primeiros partidos políticos, como o Partido Verde, fundado em 1980 na Alemanha, e que inspirou a organização de partidos similares pelo mundo. A Red-Green Coalition governou a Alemanha por dois mandatos (1998-2005) sob a liderança do chanceler Gerhard Schröder, do Partido Social-Democrata (SPD), tendo os Verdes como os chamados junior partners.
Conseguiram aprovar um programa de desativação dos reatores nucleares, que será completado em 2022, influenciaram a União Europeia a adotar um enfoque mais ambiental para sua política agrícola e mantiveram o governo alemão fora da operação de invasão do Iraque, embora continuando a oferecer suporte indireto à ação dos Estados Unidos, que mantêm bases militares na Alemanha. Hoje, contam com 62 deputados no Bundestag, a maior representação parlamentar já obtida por um partido verde (em termos relativos).
“A Alemanha é hoje uma sociedade avançadíssima em termos de sustentabilidade, assim como os países escandinavos, por influência da família de partidos verdes”, analisa o cientista político Eduardo Viola, professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), sem esquecer de atribuir mérito ao fato de a Alemanha ter um dos sistemas políticos mais modernos e transparentes do mundo.
A preocupação ambiental nos anos 1970 girava em torno das catástrofes, como a poluição marinha provocada por derramamentos de petróleo e acidentes nucleares. Logo após a conferência de Estocolmo, surgiram as primeiras leis de caráter preventivo e restritivo, definindo um modelo para servir às políticas públicas ambientais que foi chamado de “comando e controle”. O poder público passou a licenciar e fiscalizar atividades de risco por meio de padrões determinados em lei. Os que não respeitassem os padrões de funcionamento eram autuados.
Segundo o professor titular de Direito Ambiental da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Fernando Rei, o tempo mostrou que o modelo apresentava pelo menos um grande problema. Aqueles que não cumpriam os padrões preferiam a autuação ao investimento em novas tecnologias antipoluidoras, pois repassavam o custo da sanção ao consumidor. Além disso, a sanção dava um certo respaldo ao direito de poluir. Algo na linha: bem, já que estou pagando, continuo poluindo.
É dessa época o primeiro marco legal a tratar o meio ambiente como um direito próprio e autônomo, a Lei no 6.938/81, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Embora baseada no modelo de comando e controle, a PNMA era avançada para a época, pois, segundo Rei, já se abria à visão do modelo de “gestão ambiental”, que pressupõe a medição de resultados empresariais não apenas de ordem econômica, mas também social e ambiental, o chamado triple bottom line. Ao considerar os riscos e as oportunidades atrelados à gestão socioambiental, o TBL torna-se uma poderosa arma de reforço para as políticas de comando e controle.
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
Enquanto no plano econômico os anos 1980 foram taxados de “a década perdida”[2], no movimento ambiental e no cenário político-partidário a década foi marcada por várias realizações importantes, a começar pela redemocratização do Brasil. A nova democracia brasileira, pós-ditadura militar, funciona na base do presidencialismo de coalizão, ou seja, os partidos oferecem a base parlamentar que falta ao governo em troca de participação (cargos) no Executivo, assegurando a governabilidade do País.
[2] A década perdida caracterizou-se pelo baixo crescimento, desemprego, explosão da dívida externa provocada pelo aumento extraordinário da taxa de juro americana e inflação fora de controle
Emergiu nesse contexto, ainda no período derradeiro do regime militar, o Partido dos Trabalhadores (PT) – que nasceu em fevereiro de 1980 a partir de uma confluência de forças políticas ligadas ao novo sindicalismo, aos movimentos sociais, à Igreja e a partidos e grupos de esquerda clandestinos. Além de rejeitar a fórmula do presidencialismo de coalizão, identificando-a com o fisiologismo, o partido se estruturou “de baixo para cima”, por meio de núcleos de base, introduziu na cena política institucional novos atores sociais (trabalhadores, ativistas sociais e da Igreja) e propôs uma revolução democrática pacífica por dentro do sistema.
Alguns anos depois, em 1986, era fundado no Brasil o Partido Verde, que deu um importante passo além da sua missão político-partidária de defesa da pauta ambiental dentro do Congresso Nacional às vésperas do início dos trabalhos do Congresso Constituinte. Os líderes fundadores [4] do partido ajudaram a articular uma ponte entre o sindicalista e ecologista Chico Mendes e algumas das mais proeminentes entidades ambientalistas da Europa e dos Estados Unidos, entre as quais o Environmental Defense Fund (EDF), uma das mais importantes organizações não governamentais americanas.
[3] Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Herbert Daniel e Lucélia Santos
O mundo começava, então, a tomar conhecimento do perigoso conflito agrário entre os defensores de um modelo de desenvolvimento da Amazônia baseado no uso sustentável da floresta e os que insistiam na derrubada da mata para implantação de uma pecuária extensiva.
Para Chico Mendes, a luta terminou em 1988, enquanto o País ainda comemorava a nova e progressista Constituição Federal do Brasil. Além de reconstituir as liberdades democráticas, garantir de forma abrangente os direitos sociais dos brasileiros e fortalecer o papel do Ministério Público como instrumento fundamental na defesa dos direitos difusos e coletivos (meio ambiente, indígenas e consumidores, entre outros), a Carta incorporou o admirável capítulo VI [4], que trata do meio ambiente e que se tornou referência mundial.
[4] Prevê o artigo 225, do Capítulo VI, da Constituição Federal: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”
DEZ A ZERO
“A Constituição de 88 foi tão pioneira que tratou naquela época de temas que só emergiriam anos mais tarde, como o conceito de biodiversidade”, lembra o advogado e ambientalista Fabio Feldmann, que, em seu primeiro de três mandatos consecutivos como deputado federal pelo PMDB (1986-1988) e o PSDB (1988-1998), liderou uma articulação entre parlamentares progressistas para a inclusão na Constituição de um capítulo inteiro dedicado ao meio ambiente.
“Em termos ambientais, a Constituição de 88 dá de 10 a zero em todas as outras, exceto talvez na da Alemanha, que é praticamente um ‘código florestal’”, opina o diretor de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani, que desde aquela época acompanha de perto os trabalhos da Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso Nacional. A Frente é aberta aos deputados federais e senadores interessados em participar de articulações em prol da proteção ambiental.
No Congresso Constituinte, a Frente Parlamentar Ambientalista cabia numa Kombi, lembra Mantovani. Era composta por nove membros. “Felizmente, entre os nove havia ‘feras’ como Fabio Feldmann.” Hoje, segundo Mantovani, “a Frente Parlamentar conta com quase 300 membros, muitos deles especializados em temas como educação ambiental, Pantanal ou Cerrado”, comemora ele, apesar da recente derrota para a bancada ruralista no caso do Código Florestal. “Ganhamos aqui, perdemos ali, mas continuamos na luta”, diz. “É parte do jogo político.”
No âmbito global, o relatório Nosso Futuro Comum, publicado pela Comissão Brundtland em 1987, com sua definição para desenvolvimento sustentável [5], corria mundo. Nesse período, percebeu-se que era hora de convocar uma nova conferência ambiental. Não se falava mais em poluição local, mas de uma poluição que ultrapassava as fronteiras. Clamava-se por uma responsabilidade comum dos países. Por várias razões geopolíticas, é senso comum que será difícil repetir o êxito da Rio 92.
O Muro de Berlim caíra, abrindo a oportunidade de atrair as novas economias do Leste Europeu para a agenda da sustentabilidade. Despontavam os primeiros indícios de países que teriam um rápido crescimento econômico – caso dos Tigres Asiáticos. Havia também a percepção de que a agenda não era mais exclusivamente ambiental: “A preservação da integridade dos recursos naturais do planeta só teria sentido se esse esforço sinalizasse também o fim das injustiças sociais”, lembra o professor de Direito Ambiental da Faap.
[5] “O desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”
A DUCHA FRIA DO CÓDIGO
Após esses avanços, um refluxo atingiu o movimento global da sustentabilidade neste novo milênio, que, segundo Feldmann, foi agravado pela crise econômica mundial iniciada em 2008. No Brasil, o símbolo maior desse esmorecimento do movimento ambientalista foi a aprovação no ano passado de um Novo Código Florestal altamente favorável ao agronegócio, que anistiou o desmatamento ilegal em topos de morro e margens de rios, em um flagrante desrespeito aos proprietários rurais cumpridores da lei.
Naquele momento, a robusta Frente Parlamentar Ambientalista fragmentou-se. A forma como tem sido conduzida a implementação de projetos de construção de usinas hidrelétricas, entre elas a de Belo Monte, também tem estado em desacordo com algumas das práticas mais elementares de gestão da sustentabilidade.
Ainda assim, o arcabouço em prol do meio ambiente conseguiu agregar importantes marcos legais nos últimos anos. Para o vereador paulistano Nabil Bonduki (PT), arquiteto e professor de Planejamento Urbano da FAU-USP, nesse período foi fundamental para o movimento a Lei de Crimes Ambientais [6], promulgada no finalzinho dos anos 1990, e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), de 2010.
[6] A Lei no 9.605 foi publicada em fevereiro de 1998 e inovou ao apontar que a responsabilidade das pessoas jurídicas não excluía a das pessoas físicas, autoras e coautoras da infração
Esta última, como bem observou o vereador, teve o grande mérito de ir muito além da reciclagem do lixo: “Os consumidores, que até então eram meros espectadores do movimento pela sustentabilidade, transformaram-se também em atores importantes ao começar a separar o lixo de suas casas para dar aos recicláveis uma destinação mais apropriada”.
Outras conquistas não menos importantes foram as a Lei da Mata Atlântica, a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc).
QUAL BANDEIRA?
Um caminho para retomar uma trajetória mais positiva na agenda da sustentabilidade poderia ser a união da Rede Sustentabilidade – caso se torne de fato uma estrutura institucionalizada, na forma de um partido legalizado – às forças simpatizantes das causas ambientais dentro do sistema político-partidário tradicional e pulverizado que temos, que leva às coalizões. No entanto, essa é uma possibilidade incerta.
Segundo Eduardo Viola, ao ingressar na política institucional, a Rede trabalhará, sim, na coordenação de várias bandeiras da sustentabilidade, porém, dará mais ênfase à agenda da ética e da transparência a fim de recuperar a credibilidade da política entre os brasileiros. “No Brasil, a política tradicional rejeita as novas gerações que estão orientadas para o bem comum e selecionam apenas as pessoas que querem a política para realizar negócios pessoais em rede de amigos e de poder”, diagnostica Viola. “Não podemos deixar de atuar nessa questão”, reitera.
Para Fabio Feldmann, a chegada do novo partido deveria pressupor uma retomada vigorosa do movimento. “Os partidos que estão hoje no poder, ou o disputando, não possuem qualquer agenda para a sustentabilidade”, afirma. Por isso, em sua opinião, a Rede deveria centrar seus esforços nessa bandeira e não na ética da política. “Acho que o novo partido político terá grande capacidade de atrair pessoas que não necessariamente se entusiasmam pela política, mas que querem trabalhar pelo movimento ambientalista lato sensu, isto é, pelas mudanças climáticas, biodiversidade, direito indígena etc.”
Mario Mantovani, que desde a Constituinte atua na Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso Nacional, mesmo sem nunca ter se filiado a um partido político, crê que a Rede Sustentabilidade terá um valor inestimável para o movimento ambientalista, independentemente de aceitar ou não participar das coalizões partidárias típicas do sistema político brasileiro.
Otimista e dono de uma visão bem pragmática da política partidária, o dirigente da SOS Mata Atlântica diz que, mesmo com deputados de todos os matizes – inclusive o do toma-lá-da-cá –, o Brasil conseguiu construir um arcabouço ambiental fantástico. “Tudo isso atuando dentro de um Congresso que faz política ao mesmo tempo com oligarquias, intelectuais sérios, caras do BBB, o esportista em evidência e até com palhaço”. E arremata: “Somos um caldeirão”.
Ou, quem sabe dissesse Carlos Nelson Coutinho: somos uma sopa eclética.