A fala e as singelas atitudes de Francisco surpreenderam também aqueles que ainda creem que o Rio de Janeiro é a capital da Argentina, ou vice-versa
O fato de o cardeal Jorge Mario Bergoglio ter dito, logo após sua escolha, que o conclave foi buscar um papa “no fim do mundo” provocou reações inesperadas.
As favoráveis, pelo fato de dar esperança aos países distantes do capitalismo central de uma mudança nos procedimentos da Santa Madre em relação às populações menos desenvolvidas. E, as contrárias, em razão do suposto apoio do papa Francisco ao regime instalado pelos militares na Argentina nos anos 1970.
A fala de Francisco surpreendeu também aqueles que ainda creem que o Rio de Janeiro é a capital da Argentina, ou vice-versa. Os que pensam assim estão defasados no tempo. Se bem que, para os argentinos, o tempo parece ter um andamento diferente. Sempre existirão os que juram que Carlos Gardel continua cantando cada vez melhor. Esse argentino – e aí ele terá a companhia de milhões de compatriotas – com certeza é daqueles que acham Maradona melhor do que Pelé.
O mundo ficou sabendo que o novo papa é torcedor apaixonado do San Lorenzo de Almagro. Em se tratando de futebol, sofremos, ambos, de uma doença incurável, a rivalidade. Como diz o Galvão, “ganhar é sempre bom, ganhar da Argentina é melhor”. Cobri a Copa do Mundo de 1978, no apogeu do regime militar. Testemunhei a euforia dos torcedores que lotavam o Monumental de Núñez. Eles haviam sobrevivido a um susto tremendo quando, a poucos segundos do fim do segundo tempo, o holandês Resenbrink chutou uma bola na trave que daria o título à famosa Laranja Mecânica.
Prorrogação. Derrotada a Holanda por 3 a 1, vi o orgulho nacional argentino vibrar no instante em que o ditador Jorge Rafael Videla entregava a taça ao capitão do time, o zagueiro Passarela. Ao meu lado, um argentino, com os olhos cheios de lágrimas, exultava: “Mira El Flaco… Mira El Flaco”. O flaco (magro) não era Passarela. Era o ditador Videla, naquele momento transformado em herói da pátria. Duvido que algum dos 74 mil argentinos que assistiam à cena ao vivo se lembrasse ali de questionar os crimes dos militares.
Eu constataria em seguida a força da rivalidade brasileiro-argentina. Disfarçado de inglês, graças a um chapeuzinho estilo Inspetor Clouzot e um sobretudo recém adquirido em Londres, entrei em um restaurante na Calle Florida e fui surpreendido por um grito recorrente em Buenos Aires naquela noite de euforia: “Salta… salta… salta, quién no salta és brasileño!” A partida final foi contra a Holanda. O Brasil já caíra nas semifinais. Nem chegamos a enfrentar a Argentina. Para eles isso era irrelevante. O adversário que acabara de ser humilhado era o Brasil. E lá fiquei eu, diante de um esplêndido bife chorizo, levantando e pulando cada vez que alguém berrava: “Salta, salta…”
A escolha do papa produziu observações irônicas. Um jornal inglês resumiu sua perplexidade indagando se tudo não seria culpa de uma nova “mão de Deus”. Aquela frase famosa com a qual Maradona explicou quem havia feito o célebre gol contra a Inglaterra, no Mundial do México. Por aqui, foram várias as referências ao futebol. A melhor delas uma charge onde o papa Francisco traz pelas mãos Maradona e Messi sob o titulo: “Os dois filhos de Francisco”.
Isso, é claro, não explica por que a Igreja Católica veio tão longe buscar seu primeiro papa não europeu. Mas serve para dar algumas pistas do que o Espírito Santo repassou aos cardeais reunidos no conclave, como os católicos acreditam. Na essência, a mensagem é a de que Igreja precisa mudar.
Foi o que Francisco começou a fazer assim que a fumaça branca apareceu. Ao apresentar-se como papa para a multidão que aguardava ansiosa na Praça São Pedro, ele inovou. Um funcionário do Vaticano ofereceu ao novo papa o manto vermelho que seu antecessor usava nas cerimônias importantes. “Não, obrigado, monsenhor”, respondeu Francisco, acrescentando em voz baixa: “O carnaval acabou”. Francisco dispensou também a cruz de ouro. Usou uma cruz muito simples, de prata, que trouxe de Buenos Aires. Outro momento significativo ocorreu quando o papa quebrou os lacres do apartamento papal para tomar posse de sua nova casa. Francisco observou o ambiente e teria dito: “Eu não preciso de todo esse espaço”.
Poucas horas depois, o papa dava uma escapada. Saiu do Vaticano em um carro comum para orar na basílica onde o fundador da ordem dos jesuítas, Ignácio de Loyola, rezou séculos atrás. Na volta, pediu ao motorista que parasse no hotel no centro de Roma onde se hospedara antes do conclave. Deixou-se fotografar na recepção, aguardando o gerente fazer as contas.
Embora muitos especialistas considerem cedo para uma avaliação desse tipo de conduta, Francisco tem dado sinais claros de que haverá mudanças profundas na estrutura do Vaticano. Não nos dogmas, que serão mantidos por enquanto, com o rigor que os jesuítas costumam se autoimpor. Mas na gestão dos assuntos internos mais críticos, como as denúncias que abalaram os negócios do Banco do Vaticano. E também nas rotinas da Igreja, que deixará de lado as demonstrações de opulência e ostentação.
Por uma ironia do destino, ou do Espírito Santo, essas mudanças por enquanto apenas insinuadas, mas previsíveis, na busca pela simplicidade perdida, serão realizadas por um argentino. Uma gente com fama de arrogante, pretensiosa, que se acha sempre mejor, más grande. Afinal, todo mundo sabe qual o método mais usado pelos hermanos para suicidar-se. É saltar do próprio ego…
* TÃO GOMES PINTO É JORNALISTA, FOI UM DOS FUNDADORES DO JORNAL DA TARDE E TRABALHOU NAS REVISTAS VEJA, ISTOÉ E MANCHETE[:en]A fala e as singelas atitudes de Francisco surpreenderam também aqueles que ainda creem que o Rio de Janeiro é a capital da Argentina, ou vice-versa
O fato de o cardeal Jorge Mario Bergoglio ter dito, logo após sua escolha, que o conclave foi buscar um papa “no fim do mundo” provocou reações inesperadas.
As favoráveis, pelo fato de dar esperança aos países distantes do capitalismo central de uma mudança nos procedimentos da Santa Madre em relação às populações menos desenvolvidas. E, as contrárias, em razão do suposto apoio do papa Francisco ao regime instalado pelos militares na Argentina nos anos 1970.
A fala de Francisco surpreendeu também aqueles que ainda creem que o Rio de Janeiro é a capital da Argentina, ou vice-versa. Os que pensam assim estão defasados no tempo. Se bem que, para os argentinos, o tempo parece ter um andamento diferente. Sempre existirão os que juram que Carlos Gardel continua cantando cada vez melhor. Esse argentino – e aí ele terá a companhia de milhões de compatriotas – com certeza é daqueles que acham Maradona melhor do que Pelé.
O mundo ficou sabendo que o novo papa é torcedor apaixonado do San Lorenzo de Almagro. Em se tratando de futebol, sofremos, ambos, de uma doença incurável, a rivalidade. Como diz o Galvão, “ganhar é sempre bom, ganhar da Argentina é melhor”. Cobri a Copa do Mundo de 1978, no apogeu do regime militar. Testemunhei a euforia dos torcedores que lotavam o Monumental de Núñez. Eles haviam sobrevivido a um susto tremendo quando, a poucos segundos do fim do segundo tempo, o holandês Resenbrink chutou uma bola na trave que daria o título à famosa Laranja Mecânica.
Prorrogação. Derrotada a Holanda por 3 a 1, vi o orgulho nacional argentino vibrar no instante em que o ditador Jorge Rafael Videla entregava a taça ao capitão do time, o zagueiro Passarela. Ao meu lado, um argentino, com os olhos cheios de lágrimas, exultava: “Mira El Flaco… Mira El Flaco”. O flaco (magro) não era Passarela. Era o ditador Videla, naquele momento transformado em herói da pátria. Duvido que algum dos 74 mil argentinos que assistiam à cena ao vivo se lembrasse ali de questionar os crimes dos militares.
Eu constataria em seguida a força da rivalidade brasileiro-argentina. Disfarçado de inglês, graças a um chapeuzinho estilo Inspetor Clouzot e um sobretudo recém adquirido em Londres, entrei em um restaurante na Calle Florida e fui surpreendido por um grito recorrente em Buenos Aires naquela noite de euforia: “Salta… salta… salta, quién no salta és brasileño!” A partida final foi contra a Holanda. O Brasil já caíra nas semifinais. Nem chegamos a enfrentar a Argentina. Para eles isso era irrelevante. O adversário que acabara de ser humilhado era o Brasil. E lá fiquei eu, diante de um esplêndido bife chorizo, levantando e pulando cada vez que alguém berrava: “Salta, salta…”
A escolha do papa produziu observações irônicas. Um jornal inglês resumiu sua perplexidade indagando se tudo não seria culpa de uma nova “mão de Deus”. Aquela frase famosa com a qual Maradona explicou quem havia feito o célebre gol contra a Inglaterra, no Mundial do México. Por aqui, foram várias as referências ao futebol. A melhor delas uma charge onde o papa Francisco traz pelas mãos Maradona e Messi sob o titulo: “Os dois filhos de Francisco”.
Isso, é claro, não explica por que a Igreja Católica veio tão longe buscar seu primeiro papa não europeu. Mas serve para dar algumas pistas do que o Espírito Santo repassou aos cardeais reunidos no conclave, como os católicos acreditam. Na essência, a mensagem é a de que Igreja precisa mudar.
Foi o que Francisco começou a fazer assim que a fumaça branca apareceu. Ao apresentar-se como papa para a multidão que aguardava ansiosa na Praça São Pedro, ele inovou. Um funcionário do Vaticano ofereceu ao novo papa o manto vermelho que seu antecessor usava nas cerimônias importantes. “Não, obrigado, monsenhor”, respondeu Francisco, acrescentando em voz baixa: “O carnaval acabou”. Francisco dispensou também a cruz de ouro. Usou uma cruz muito simples, de prata, que trouxe de Buenos Aires. Outro momento significativo ocorreu quando o papa quebrou os lacres do apartamento papal para tomar posse de sua nova casa. Francisco observou o ambiente e teria dito: “Eu não preciso de todo esse espaço”.
Poucas horas depois, o papa dava uma escapada. Saiu do Vaticano em um carro comum para orar na basílica onde o fundador da ordem dos jesuítas, Ignácio de Loyola, rezou séculos atrás. Na volta, pediu ao motorista que parasse no hotel no centro de Roma onde se hospedara antes do conclave. Deixou-se fotografar na recepção, aguardando o gerente fazer as contas.
Embora muitos especialistas considerem cedo para uma avaliação desse tipo de conduta, Francisco tem dado sinais claros de que haverá mudanças profundas na estrutura do Vaticano. Não nos dogmas, que serão mantidos por enquanto, com o rigor que os jesuítas costumam se autoimpor. Mas na gestão dos assuntos internos mais críticos, como as denúncias que abalaram os negócios do Banco do Vaticano. E também nas rotinas da Igreja, que deixará de lado as demonstrações de opulência e ostentação.
Por uma ironia do destino, ou do Espírito Santo, essas mudanças por enquanto apenas insinuadas, mas previsíveis, na busca pela simplicidade perdida, serão realizadas por um argentino. Uma gente com fama de arrogante, pretensiosa, que se acha sempre mejor, más grande. Afinal, todo mundo sabe qual o método mais usado pelos hermanos para suicidar-se. É saltar do próprio ego…
* TÃO GOMES PINTO É JORNALISTA, FOI UM DOS FUNDADORES DO JORNAL DA TARDE E TRABALHOU NAS REVISTAS VEJA, ISTOÉ E MANCHETE