Participação popular na definição do orçamento público e reforma tributária são fundamentais para atender às demandas das ruas
Os protestos que tomaram as ruas do País nos últimos meses reivindicavam maior qualidade nos serviços públicos, como saúde, educação e transporte. Também deram voz a um clamor por maior participação popular na política, por mais democracia – a sensação geral nas manifestações era a de que as decisões dos governantes e parlamentares brasileiros muitas vezes estão distantes da vontade da população.
Entretanto, há um fator que muitas vezes é esquecido no calor dos protestos, embora esteja presente nessas duas frentes de demandas – o orçamento público. Se o povo quer maior participação nas decisões do País, é estratégico atuar nas decisões sobre como será gasto o dinheiro.
É na definição do orçamento que o governo indica quais serão as prioridades de sua gestão para o próximo período. Portanto, para que as demandas expostas nas últimas manifestações sejam atendidas, elas precisam ser contempladas pelo orçamento. Em outras palavras, dinheiro é necessário.
Diversas cidades brasileiras têm hoje um sistema que busca decidir de forma mais democrática como será gasto o dinheiro público – é o chamado orçamento participativo. Segundo a Rede Nacional de Orçamento Participativo (Rede OP), cerca de 350 municípios usam esse sistema no País. Pelo modelo, parte do orçamento é decidida a partir de reuniões com a população, nas quais são levantadas as necessidades de cada região da cidade.
“É uma experiência que já foi copiada no mundo inteiro. Ainda é preciso avançar muito, mas é um mecanismo aberto à participação e nesse sentido é um modelo de democracia muito interessante”, afirma Márcia Ribeiro Dias, cientista política do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC do Rio Grande do Sul. Pensando nisso, as recentes manifestações trazem um bom momento para que o País volte os olhos a essas experiências, a fim de garantir mais participação popular nas decisões.
O primeiro município a aderir ao orçamento participativo foi Porto Alegre. A experiência por lá foi implantada na gestão de Olívio Dutra (PT), em 1989, e já dura 24 anos. A iniciativa resistiu às mudanças de governo. A cidade passou por outras quatro gestões petistas, esteve nas mãos do PPS e do PMDB e hoje é governada por José Fortunati, do PDT (ex-petista histórico).
Porém, para Sergio Baierle, membro do conselho diretor da ONG Cidade, entidade que acompanhou o processo desde o início, o orçamento participativo foi enfraquecendo. “Nossa avaliação é de que houve um retrocesso. A ideia foi se perdendo à medida que se consolidou a opção do governo por coalizões entre vários partidos”, afirma.
Segundo Baierle, a porcentagem da verba pública submetida ao orçamento participativo diminuiu na capital gaúcha – na década de 1990, chegava a 40% da capacidade de investimento do município; hoje ele estima que o montante esteja em torno de 10%. Baierle também reclama que as reuniões locais com a população perderam força e o acompanhamento dos resultados ficou mais difícil.
A questão das alianças políticas é vista como um problema não só em Porto Alegre. De acordo com Kátia Lima, coordenadora da Rede OP, para que ocorram mais avanços, é preciso haver uma reforma política. “Quando você tem um governo de muitos partidos, de muita coalizão, há uma disputa interna de visões de mundo diferentes, e nessa briga o orçamento participativo acaba sendo prejudicado”, afirma.
Outro desafio é garantir maior participação da população. Uma alternativa tem sido recorrer às novas tecnologias, que permitem uma atuação virtual. Kátia cita o exemplo de Canoas (RS), que criou a Ágora Virtual, site da prefeitura que promove debates on-line. Em Guarulhos (SP), estuda-se criar uma página no Facebook para discutir a cidade. Há ainda experiências em que os cidadãos são contatados via SMS.
Se o planejamento democrático dos investimentos é crucial para assegurar o atendimento das demandas populares, o mesmo vale para a outra ponta do processo: a arrecadação. Nossa tributação hoje é baseada nos impostos sobre produtos e serviços, o que onera muito mais a parcela da população que ganha menos. Impostos sobre patrimônio, que afetariam os mais ricos, têm pouca expressão no sistema tributário brasileiro. Sequer saiu do papel, por exemplo, o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal – artigo153, inciso VII, que depende de uma lei complementar para ser implementado.
Além disso, grande parte do que é arrecadado com impostos é usada para pagar a dívida pública. Em 2012, o gasto com a dívida abocanhou 44% do orçamento geral da União executado – R$ 1,712 bilhão, segundo a associação Auditoria Cidadã da Dívida (mais informações sobre o assunto no site).
Outro ponto importante é a taxa de juros, que foi reduzida no atual governo, mas ainda assim é uma das mais altas do mundo. “São problemas que afetam a democracia e o acesso a direitos. O Brasil tem 20 mil famílias que jogam na bolsa e compram títulos do governo. Esse pessoal é quem lucra com os juros altos e com a dívida pública. São recursos que poderiam ser usados para pagar melhores políticas públicas, que o povo está pedindo com as manifestações”, afirma a Eliana Graça, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Eliana cita exemplos como o do Equador, que concluiu ser indevida boa parte de sua dívida, após auditá-la. Seria necessário replicar o processo também no Brasil, porém, iniciativas como essa ou a da reforma tributária enfrentam enorme resistência. “Há um problema da questão política. O nível de concentração do poder no Brasil é tão grande quanto o de concentração de renda, e esses lobbies não permitem que uma reforma aconteça”, diz Eliana. Resta, então, à população pressionar por mudanças reais neste sistema.
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