Mais que destinar corretamente o lixo, o fundamental é a sua expressiva diminuição
A Política Nacional de Resíduos Sólidos ocupa o centro da 4ª Conferência Nacional do Meio Ambiente, que se realiza em Brasília de 24 a 27 de outubro (mais aqui). O que está em jogo vai muito além do indispensável fechamento dos lixões e de sua versão levemente melhorada (os aterros controlados), que ainda recebem 40% de todos os resíduos domiciliares do País. Mais importante que acabar com os lixões é mudar a própria relação da sociedade com os remanescentes daquilo que consome. O fundamental não é a destinação correta do lixo (embora isso seja importante, claro), mas sim a sua expressiva diminuição, ou seja, a transformação e a valorização daquilo que sobra do consumo para que sirva de base à formação de nova riqueza. A expressão “lixo zero” já se tornou lema da política de resíduos sólidos em algumas cidades, como San Francisco, e faz parte das metas de empresas globais, como a Walmart [2].
[2] Entenda o programa aqui
É preocupante o contraste entre as ambições da Política Nacional de Resíduos Sólidos e a lentidão com que ela se transforma em realidade. Apenas 16 estados brasileiros e menos de 10% dos municípios já elaboraram seus planos. É claro que há problemas legais e administrativos imensos para que a gestão do lixo busque, antes de tudo, a valorização dos materiais de que ele é composto. Esses problemas, entretanto, podem ser abordados de maneira coerente e harmônica se forem enfrentados quatro desafios, que deveriam formar o eixo da conferência de outubro.
Em primeiro lugar, é fundamental que as grandes marcas globais ajudem a aplicar no Brasil aquilo que já fazem nos países desenvolvidos: nos Estados Unidos, a Coca- Cola e a Nestlé Waters comprometeram-se recentemente a organizar e financiar o sistema de coleta e recuperação de seus resíduos na proporção daquilo que colocam no mercado, conforme relatório recente da organização As You Sow. O WWF firmou um acordo com a Coca-Cola que inclui a recuperação e a reciclagem de suas embalagens, mas com metas quantitativas somente para os países desenvolvidos.
A conferência pode ser uma ocasião para que o compromisso com a coleta e a recuperação seja assumido pelas grandes marcas globais que atuam no Brasil. Não se trata simplesmente de auxiliar o sistema de forma tópica e localizada: trata-se de assumir o princípio do poluidor pagador e responder financeiramente (e em alguns casos fisicamente) por coletar e destinar corretamente os resíduos. Como essa responsabilidade é onerosa, ela funciona também para sinalizar aos produtores a urgência de melhorar suas embalagens, utilizando menos materiais e desenhando os produtos de maneira a facilitar o reaproveitamento dos resíduos.
O segundo desafio, muito relacionado ao primeiro, está no reconhecimento do trabalho dos catadores de resíduos sólidos como prestadores de serviços ambientais. Esse reconhecimento não se confunde com a venda dos produtos que eles recolhem, pois nem sempre há mercados favoráveis para tais produtos. As catadoras indianas de resíduos sólidos oferecem instrutiva aula de economia neste vídeo: demonstram, de maneira persuasiva, que o trabalho de recolher as embalagens das ruas tem de ser pago e que esse pagamento deve vir de quem fabrica e oferece os produtos envolvidos por essas embalagens.
O terceiro avanço da conferência consistirá em retomar a discussão nacional sobre a taxa domiciliar do lixo. É óbvio que a sociedade paga pelo lixo domiciliar coletado. Mas a irresponsável demonização da taxa do lixo fez com que esse pagamento se escondesse no imposto territorial, o que inibe sua utilização com finalidades de política pública.
Por fim, é fundamental que essa responsabilidade do setor privado seja enquadrada legalmente com base em objetivos ambiciosos. Na União Europeia, por exemplo, o recolhimento de material eletrônico é organizado pelo setor privado, mas as metas são definidas pelo Estado: até 2005 o objetivo era recuperar 4 quilos per capita de resíduos eletrônicos, montante que foi elevado, posteriormente, tendo em vista o aumento do consumo, a 20 quilos anuais per capita até 2020, como mostra relatório recente da Agência Ambiental Europeia [6].
[6] Leia o relatório aqui
O Brasil não será uma sociedade saudável na maneira como gere os materiais que formam sua riqueza enquanto o setor privado não assumir a responsabilidade estratégica que lhe cabe. É disso que depende o próprio sucesso da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
*Ricardo Abramovay é professor titutlar do Departamento de Economia e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPQ e autor de “Muito Além da Economia Verde” (Planeta Sustentável/Abril). Twitter: @abramovay Blog: ricardoabramovay.com
Leia a outra coluna desta edição:
Regina Scharf em “Garoto-propaganda de um novo capitalismo“
[:en]Mais que destinar corretamente o lixo, o fundamental é a sua expressiva diminuição
A Política Nacional de Resíduos Sólidos ocupa o centro da 4ª Conferência Nacional do Meio Ambiente, que se realiza em Brasília de 24 a 27 de outubro (mais aqui). O que está em jogo vai muito além do indispensável fechamento dos lixões e de sua versão levemente melhorada (os aterros controlados), que ainda recebem 40% de todos os resíduos domiciliares do País. Mais importante que acabar com os lixões é mudar a própria relação da sociedade com os remanescentes daquilo que consome. O fundamental não é a destinação correta do lixo (embora isso seja importante, claro), mas sim a sua expressiva diminuição, ou seja, a transformação e a valorização daquilo que sobra do consumo para que sirva de base à formação de nova riqueza. A expressão “lixo zero” já se tornou lema da política de resíduos sólidos em algumas cidades, como San Francisco, e faz parte das metas de empresas globais, como a Walmart [2].
[2] Entenda o programa aqui
É preocupante o contraste entre as ambições da Política Nacional de Resíduos Sólidos e a lentidão com que ela se transforma em realidade. Apenas 16 estados brasileiros e menos de 10% dos municípios já elaboraram seus planos. É claro que há problemas legais e administrativos imensos para que a gestão do lixo busque, antes de tudo, a valorização dos materiais de que ele é composto. Esses problemas, entretanto, podem ser abordados de maneira coerente e harmônica se forem enfrentados quatro desafios, que deveriam formar o eixo da conferência de outubro.
Em primeiro lugar, é fundamental que as grandes marcas globais ajudem a aplicar no Brasil aquilo que já fazem nos países desenvolvidos: nos Estados Unidos, a Coca- Cola e a Nestlé Waters comprometeram-se recentemente a organizar e financiar o sistema de coleta e recuperação de seus resíduos na proporção daquilo que colocam no mercado, conforme relatório recente da organização As You Sow. O WWF firmou um acordo com a Coca-Cola que inclui a recuperação e a reciclagem de suas embalagens, mas com metas quantitativas somente para os países desenvolvidos.
A conferência pode ser uma ocasião para que o compromisso com a coleta e a recuperação seja assumido pelas grandes marcas globais que atuam no Brasil. Não se trata simplesmente de auxiliar o sistema de forma tópica e localizada: trata-se de assumir o princípio do poluidor pagador e responder financeiramente (e em alguns casos fisicamente) por coletar e destinar corretamente os resíduos. Como essa responsabilidade é onerosa, ela funciona também para sinalizar aos produtores a urgência de melhorar suas embalagens, utilizando menos materiais e desenhando os produtos de maneira a facilitar o reaproveitamento dos resíduos.
O segundo desafio, muito relacionado ao primeiro, está no reconhecimento do trabalho dos catadores de resíduos sólidos como prestadores de serviços ambientais. Esse reconhecimento não se confunde com a venda dos produtos que eles recolhem, pois nem sempre há mercados favoráveis para tais produtos. As catadoras indianas de resíduos sólidos oferecem instrutiva aula de economia neste vídeo: demonstram, de maneira persuasiva, que o trabalho de recolher as embalagens das ruas tem de ser pago e que esse pagamento deve vir de quem fabrica e oferece os produtos envolvidos por essas embalagens.
O terceiro avanço da conferência consistirá em retomar a discussão nacional sobre a taxa domiciliar do lixo. É óbvio que a sociedade paga pelo lixo domiciliar coletado. Mas a irresponsável demonização da taxa do lixo fez com que esse pagamento se escondesse no imposto territorial, o que inibe sua utilização com finalidades de política pública.
Por fim, é fundamental que essa responsabilidade do setor privado seja enquadrada legalmente com base em objetivos ambiciosos. Na União Europeia, por exemplo, o recolhimento de material eletrônico é organizado pelo setor privado, mas as metas são definidas pelo Estado: até 2005 o objetivo era recuperar 4 quilos per capita de resíduos eletrônicos, montante que foi elevado, posteriormente, tendo em vista o aumento do consumo, a 20 quilos anuais per capita até 2020, como mostra relatório recente da Agência Ambiental Europeia [6].
[6] Leia o relatório aqui
O Brasil não será uma sociedade saudável na maneira como gere os materiais que formam sua riqueza enquanto o setor privado não assumir a responsabilidade estratégica que lhe cabe. É disso que depende o próprio sucesso da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
*Ricardo Abramovay é professor titutlar do Departamento de Economia e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPQ e autor de “Muito Além da Economia Verde” (Planeta Sustentável/Abril). Twitter: @abramovay Blog: ricardoabramovay.com
Leia a outra coluna desta edição:
Regina Scharf em “Garoto-propaganda de um novo capitalismo“