Escolher investir no transporte público em detrimento do individual parece simples, mas é uma decisão política que demanda ousadia e visão estratégica
A imobilidade que assola as cidades brasileiras é um nó que aparentemente todo gestor deseja desatar. Entretanto, as suas soluções aparentemente mais radicais parecem vespeiros que afugentam aqueles que não querem abalar sua popularidade.
No evento promovido ontem pela Rede Nossa São Paulo e Frente Nacional de Prefeitos (FNP), “Alternativas de Financiamento do Transporte Público”, gestores, academia e sociedade civil juntaram-se para apresentar as ideias para financiar o transporte público de qualidade. Todas as alternativas parecem convergir para um consenso: a possibilidade de maior investimento e melhor gestão do serviço público de transporte depende de uma inversão de prioridades.
A lógica do “carrocentrismo”, com obras viárias faraônicas para melhorar o conforto de uma minoria que tem condições de bancar o transporte individual, já se mostrou esgotada. E é também a responsável pela deterioração do transporte público coletivo. O prefeito de São Paulo e vice-presidente da FNP, Fernando Haddad, mencionou o ciclo vicioso formado pelo aumento da quantidade de carros circulando em uma cidade e o encarecimento do transporte: “a verdade é que quanto pior o transporte público, mais caro ele é”. O excesso de carros diminui a velocidade média do ônibus e, consequentemente, aumenta o gasto de combustível desse modal. Com a piora do atendimento do transporte coletivo, cada vez mais usuários migram para o individual, alimentando o excesso de automóveis.
Os motoristas encontram nos próprios subsídios governamentais outro bom motivo para abandonar o transporte público. Oded Grajew, líder da Rede Nossa São Paulo, lembra que os subsídios ao transporte individual chegam a 32 bilhões de reais por ano, incluindo desonerações do IPI e do PIS, por exemplo. (Leia o relatório do Ipea “A Mobilidade Urbana no Brasil“, com dados completos sobre subsídios, custos e uso do transporte público no país.)
Sérgio Leitão, do Greenpeace[1], aponta a contradição da busca de soluções para o transporte público no âmbito municipal, enquanto o governo federal aumenta os incentivos à indústria automobilística e ao transporte individual. Segundo ele, o usuário do transporte público é onerado duplamente: pela tarifa, e pelos custos da lentidão do ônibus, causado pelo excesso de automóveis, incentivados pela desoneração fiscal dos mesmos. E lembra também os custos ambientais dessa lógica, que afetam a todos: “O setor de transporte já é o segundo maior emissor de gases de efeito estufa no Brasil”.
[1] Conheça a campanha de Mobilidade Urbana do Greenpeace
Os prejuízos não param por aí. O tempo perdido nos deslocamentos significa perdas em produtividade, saúde e qualidade de vida. Um relatório do vice-presidente da FGV, Marcos Cintra, traduz essas perdas do ponto de vista econômico – a cidade de São Paulo deixou de produzir, só em 2008, 33,5 bilhões de reais por conta dos congestionamentos infindáveis.
O peso da desigualdade
Apesar de afetar a cidade como um todo, os custos do financiamento do transporte público têm maior impacto, proporcionalmente, sobre as camadas mais vulneráveis da população. O pesquisador do Ipea, Carlos Henrique de Carvalho, demonstra em nota técnica que, nas nove maiores regiões metropolitanas brasileiras, o gasto proporcional à renda com o transporte público diminui quanto maior a renda das famílias (a partir das faixas médias de renda). Isso mostra uma importante distorção: o custo do transporte público pesa mais no bolso de quem mais precisa dele e tem menos condições de bancá-lo, gerando inclusive uma situação de imobilidade entre as camadas mais baixas da população.
Essa distorção confronta a lógica do “carrocentrismo” com o direito à cidade e ao transporte público de qualidade. A priorização do transporte individual mostra-se como uma escolha política que beneficia o topo da pirâmide, apesar de ela também sentir o impacto da imobilidade de dentro de seus automóveis.
Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV, traz resultados preliminares de pesquisa que mostra a possibilidade de subsídio de R$1,20 na tarifa do ônibus se houvesse o aumento de 50 centavos no preço do litro da gasolina [2]. Nesse caso, o motorista pagaria o custo de ter condições de usar o carro e, assim, financiaria o transporte público que deixou de usar por optar pelo modal individual.
[2] Isso demandaria a aprovação da municipalização da CIDE, imposto que incide sobre a importação e comercialização de petróleo e seus derivados, e o direcionamento da receita da taxa para os fundos municipais de financiamento do transporte público
No entanto, inverter essa lógica envolve custos políticos claros. Financiar o transporte público a partir do aumento da tributação sobre bens, mitigando os efeitos da concentração de renda e desestimulando o usufruto de bens particulares faz sentido no plano econômico, mas exige coragem e vontade política. Afinal, o eleitor mediano, que hoje é beneficiado pelo incentivo à aquisição de automóveis, poderia não compreender o ônus a pagar por sua escolha.
Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo e deputada federal, conhece esses custos. Em 1991, ela lançou a proposta de criação de tarifa zero para o transporte público, com custos cobertos pelo IPTU com alíquotas progressivas. Porém, foi bloqueada na Câmara dos Vereadores. Vinte anos após a derrota política, Erundina retoma o tema, acrescentando a necessidade de usar outros dispositivos para melhorar a gestão do transporte público, como o Plano Diretor [3] e a recém-aprovada Lei de Mobilidade Urbana. “A questão do transporte público é mais do que tarifa”, afirma a deputada. Ela defende a mudança das relações contratuais, que permitam um melhor controle público e social dos serviços prestados pelas empresas de transporte.
[3] Através do Plano Diretor, é possível delimitar a ocupação das áreas da cidade e decidir a distribuição de equipamentos públicos a partir de uma análise da infraestrutura da cidade, entre outras ações. As mudanças no Plano Diretor devem ser decididas em conjunto com a sociedade civil
Em 2011, a deputada federal lançou o Projeto de Emenda Constitucional 90, solicitando o acréscimo, no artigo 6º da Constituição Federal, do transporte como direito social. O que permitiria ao cidadão exigir do poder público o atendimento a esse direito, negado em muitas cidades pelas distorções da desigualdade social.
O subsídio privado, apesar de incomodar as classes mais abastadas – que sempre se queixaram por não ver o retorno dos seus impostos em serviços públicos, mesmo que nem sempre usufruam deles –, tem benefícios difusos. O desafio das autoridades é provar que vale a pena, em termos econômicos e de qualidade de vida, que o cidadão que utiliza transporte individual pague mais pelo seu aparente conforto e, assim, subsidie a qualidade do transporte público. Mais um motivo para a inclusão da sociedade civil no debate sobre transportes ser tão urgente e importante.
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