Antes a Terra era um vasto espaço selvagem a conquistar; hoje enxergamos seus limites e reconhecemos a sua finitude
Em sua 80 a edição, a revista PÁGINA22 nos convida para uma reflexão sobre extremos: “8 ou 80?” Escrevo este artigo no mês em que completo 50 anos, e reflito sobre o que, a meu ver, foi uma das transformações mais extremas desse curto meio século: nossa passagem de cowboys a astronautas. Mudança de paradigma só comparável à descoberta de que a Terra é redonda, ou de que o Sol não é o centro do Universo. Explico.
Quando nasci, em 1963, existiam no mundo 3,1 bilhões de seres humanos que, juntos, consumiam 80% do que a Terra era capaz de prover. Vivíamos, portanto, dentro dos limites planetários com certa folga. A população do mundo era predominantemente rural. Telefonemas interurbanos eram raros e custosos, que dirá dos internacionais.
Fazia seis anos que fora lançado o Sputnik, primeiro satélite artificial, que ficou 22 dias em órbita, transmitido um simples “bip” de rádio.Havia pouco mais de dois anos, Yuri Gagarin – primeiro ser humano no espaço – nos revelara que a Terra é azul. Ainda faltavam quase seis anos até que a Apollo 11 nos levasse à Lua.
O mundo era ainda grande e cheio de mistérios: existiam territórios inexplorados e amplos espaços selvagens onde nossa imaginação podia se espalhar e livremente sonhar com aventuras e descobertas. Vivíamos os últimos anos do paradigma do cowboy: homens e mulheres diante de vastos sertões por desbravar.
Hoje, passadas apenas cinco décadas, somos 7,2 bilhões. Além de praticamente dobrar nossa população, dobramos duas vezes a produção e consumimos uma vez e meia o que o planeta pode nos dar. Vivemos gerando um déficit que, ano após ano, corrói o capital natural que há milhares de gerações sustenta nossa espécie e tantas outras. Isso, apesar da desigualdade extrema que ainda mantém na pobreza ou no seu limiar quase metade da humanidade. Se todos consumissem no padrão dos países ricos, o déficit seria oito vezes maior, equivalendo a quatro planetas por ano.
Porém, tão ou mais significativo que extrapolar os limites produtivos do planeta foi o fato de nos apropriarmos dele por inteiro. A despeito de não termos (ainda bem!) pleno domínio da natureza, é preciso reconhecer que algo radical mudou a partir do momento em que passamos a contar com comunicação e vigilância instantâneas sobre praticamente toda superfície terrestre. Nem tudo está dominado, mas está tudo sob as lentes e sensores da rede global de comunicações. Espaços selvagens e vazios são luxos com os quais poucos podem contar. A maioria da população vive em cidades, e mesmo quem ainda está fora delas vive sob sua influência próxima e direta.
Sentimos, vemos e medimos os efeitos dos circuitos globais: do lixo que circula pelo mar aos pesticidas entranhados na cadeia alimentar. Do buraco na camada de ozônio à concentração de carbono na atmosfera. Do comércio e do terror internacional à pasteurização de culturas e inflação de extremismos religiosos. Apesar de ainda nos seus primórdios, a sociedade global já antecipa o que é viver em um ambiente veloz, líquido e hiperconectado. A “espaçonave Terra” não é mais uma abstração, mas a realidade vivida por nós, seus tripulantes.
Nascidos cowboys, acreditávamos que havia um “lado de fora”, um “ainda não lugar” para onde poderíamos ir, escapando das pressões e opressões do establishment. Um não lugar para onde iria tudo o que “jogamos fora”, o que não queremos mais. Hoje, astronautas, sabemos que não existe tal lugar. Com exceção da energia que vem do Sol e do espaço, praticamente nada mais entra ou sai de nosso planeta. O máximo que podemos fazer é remanejar as coisas dentro de nossa nave.
No curto espaço de uma geração, tivemos de reconstruir nossos paradigmas sobre limites e possibilidades em uma escala e profundidade nunca antes realizadas: desde o pensamento econômico hegemônico, que ignora a existência de limites para o crescimento e induz comportamentos incompatíveis com a vida de astronauta, até a concepção de áreas naturais, que se tornaram exceções, e não são mais o universo predominante, dentro do qual se inseriam as áreas urbanizadas ou desbravadas. Desde o conceito de países soberanos (como é possível que partes da mesma espaçonave tenham comandos tão desarticulados?) até a noção de cidadania, em face das importantes diferenças entre os direitos e deveres de cidadãos do mundo ou de um país.
Somos testemunhas e artífices de uma transição sem precedentes. Não foi antes e não será depois: foi agora, nessas poucas e recentes décadas, que passamos de cowboys a astronautas. Cabe a nós – aqui e agora – aprender a lidar com isso, construindo as bases para o novo e promissor momento que estamos ajudando a nascer.
*COORDENADOR DO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL DO GVCES (ARON.BELINKY@FGV.BR)
Leia mais:
““Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata seu neto Juliano”, por Eduardo Shor em “Dona Isadora“
“O contingente de obesos e vítimas do sobrepeso supera e cresce muito mais que o de famintos. As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta”, por Ricardo Abramovay em “Com açúcar, sem afeto“
[:en]Antes a Terra era um vasto espaço selvagem a conquistar; hoje enxergamos seus limites e reconhecemos a sua finitude
Em sua 80 a edição, a revista PÁGINA22 nos convida para uma reflexão sobre extremos: “8 ou 80?” Escrevo este artigo no mês em que completo 50 anos, e reflito sobre o que, a meu ver, foi uma das transformações mais extremas desse curto meio século: nossa passagem de cowboys a astronautas. Mudança de paradigma só comparável à descoberta de que a Terra é redonda, ou de que o Sol não é o centro do Universo. Explico.
Quando nasci, em 1963, existiam no mundo 3,1 bilhões de seres humanos que, juntos, consumiam 80% do que a Terra era capaz de prover. Vivíamos, portanto, dentro dos limites planetários com certa folga. A população do mundo era predominantemente rural. Telefonemas interurbanos eram raros e custosos, que dirá dos internacionais.
Fazia seis anos que fora lançado o Sputnik, primeiro satélite artificial, que ficou 22 dias em órbita, transmitido um simples “bip” de rádio.Havia pouco mais de dois anos, Yuri Gagarin – primeiro ser humano no espaço – nos revelara que a Terra é azul. Ainda faltavam quase seis anos até que a Apollo 11 nos levasse à Lua.
O mundo era ainda grande e cheio de mistérios: existiam territórios inexplorados e amplos espaços selvagens onde nossa imaginação podia se espalhar e livremente sonhar com aventuras e descobertas. Vivíamos os últimos anos do paradigma do cowboy: homens e mulheres diante de vastos sertões por desbravar.
Hoje, passadas apenas cinco décadas, somos 7,2 bilhões. Além de praticamente dobrar nossa população, dobramos duas vezes a produção e consumimos uma vez e meia o que o planeta pode nos dar. Vivemos gerando um déficit que, ano após ano, corrói o capital natural que há milhares de gerações sustenta nossa espécie e tantas outras. Isso, apesar da desigualdade extrema que ainda mantém na pobreza ou no seu limiar quase metade da humanidade. Se todos consumissem no padrão dos países ricos, o déficit seria oito vezes maior, equivalendo a quatro planetas por ano.
Porém, tão ou mais significativo que extrapolar os limites produtivos do planeta foi o fato de nos apropriarmos dele por inteiro. A despeito de não termos (ainda bem!) pleno domínio da natureza, é preciso reconhecer que algo radical mudou a partir do momento em que passamos a contar com comunicação e vigilância instantâneas sobre praticamente toda superfície terrestre. Nem tudo está dominado, mas está tudo sob as lentes e sensores da rede global de comunicações. Espaços selvagens e vazios são luxos com os quais poucos podem contar. A maioria da população vive em cidades, e mesmo quem ainda está fora delas vive sob sua influência próxima e direta.
Sentimos, vemos e medimos os efeitos dos circuitos globais: do lixo que circula pelo mar aos pesticidas entranhados na cadeia alimentar. Do buraco na camada de ozônio à concentração de carbono na atmosfera. Do comércio e do terror internacional à pasteurização de culturas e inflação de extremismos religiosos. Apesar de ainda nos seus primórdios, a sociedade global já antecipa o que é viver em um ambiente veloz, líquido e hiperconectado. A “espaçonave Terra” não é mais uma abstração, mas a realidade vivida por nós, seus tripulantes.
Nascidos cowboys, acreditávamos que havia um “lado de fora”, um “ainda não lugar” para onde poderíamos ir, escapando das pressões e opressões do establishment. Um não lugar para onde iria tudo o que “jogamos fora”, o que não queremos mais. Hoje, astronautas, sabemos que não existe tal lugar. Com exceção da energia que vem do Sol e do espaço, praticamente nada mais entra ou sai de nosso planeta. O máximo que podemos fazer é remanejar as coisas dentro de nossa nave.
No curto espaço de uma geração, tivemos de reconstruir nossos paradigmas sobre limites e possibilidades em uma escala e profundidade nunca antes realizadas: desde o pensamento econômico hegemônico, que ignora a existência de limites para o crescimento e induz comportamentos incompatíveis com a vida de astronauta, até a concepção de áreas naturais, que se tornaram exceções, e não são mais o universo predominante, dentro do qual se inseriam as áreas urbanizadas ou desbravadas. Desde o conceito de países soberanos (como é possível que partes da mesma espaçonave tenham comandos tão desarticulados?) até a noção de cidadania, em face das importantes diferenças entre os direitos e deveres de cidadãos do mundo ou de um país.
Somos testemunhas e artífices de uma transição sem precedentes. Não foi antes e não será depois: foi agora, nessas poucas e recentes décadas, que passamos de cowboys a astronautas. Cabe a nós – aqui e agora – aprender a lidar com isso, construindo as bases para o novo e promissor momento que estamos ajudando a nascer.
*COORDENADOR DO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO LOCAL DO GVCES (ARON.BELINKY@FGV.BR)
Leia mais:
““Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata seu neto Juliano”, por Eduardo Shor em “Dona Isadora“
“O contingente de obesos e vítimas do sobrepeso supera e cresce muito mais que o de famintos. As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta”, por Ricardo Abramovay em “Com açúcar, sem afeto“