Esta é uma história antiga, que mostra como a falta de ética e o desrespeito legal e humano de empresas e governos pode contribuir para países inteiros entrarem em colapso. Ouvi esta história pela primeira vez há algum tempo, conversando com uma amiga sobre minha pesquisa de mestrado, que abordava crises humanitárias nos anos 1990 e 2000, e uma dessas crises era a da Somália.
Em linhas gerais, a crise somali pode ser entendida como um misto de conflitos étnicos, fronteiras artificiais e luta por recursos naturais e por território, que reverbera num caos político e institucional. Desde o começo dos anos 1990 não existe um governo central digno desse nome: o país acabou se fragmentando de acordo com diversos clãs e etnias que lutam entre si pelo controle do governo nacional e, consequentemente, pelos seus recursos naturais.
Nos anos 1990, uma grave onda de fome, resultado tanto do conflito quanto de uma estiagem que afetou as lavouras do país, atingiu a Somália, colocando-a em destaque na mídia internacional e levando as Nações Unidas a intervirem para aplacar a crise humanitária e para acabar com o conflito.
Os Estados Unidos lideraram a operação e acabaram protagonizando combates sangrentos com as forças de um dos principais warlords da Somália, Mohammed Farrah Aidid. Um desses episódios foi a queda de um helicóptero Black Hawk em Mogadíscio, capital do país, durante uma operação para captura de lideranças do grupo de Aidid. Os soldados norte-americanos que estavam na aeronave acabaram cercados por combatentes de Aidid e o resultado foi dramático: imagens de soldados dos EUA sendo assassinados e humilhados nas ruas de Mogadíscio percorreram o mundo, forçando o governo Clinton a abandonar as operações na Somália. Com a saída dos EUA da missão da ONU, o país caiu novamente no esquecimento político internacional e continuou sendo arrasado pela guerra civil – um conflito que persiste até hoje.
Já na época da intervenção internacional se questionava como os clãs e seus warlords conseguiam se armar tão fortemente, já que a economia somali era quase inoperante. Nem mesmo fontes ilegais de recursos, como o narcotráfico, conseguiam explicar como esses grupos armados pagavam os seus vendedores de armas.
Uma resposta surgiu em 1997, quando o Greenpeace publicou uma matéria investigativa na revista italiana Famiglia Cristiana. Segundo a matéria, desde os anos 1980 empresas da Itália e Suíça eram responsáveis por transportar resíduos perigosos, inclusive lixo nuclear, da Europa para a Somália. Inicialmente, o acordo passava pelos grupos que ocupavam o governo central do país, que recebiam quantias altas de dinheiro para despejar esses resíduos na costa somali. Quando a guerra civil eclodiu de fato, em 1992, essas empresas europeias tiveram que negociar com cada warlord, que aproveitavam para negociar a aquisição de armas e munições para alimentar o conflito.
Indícios posteriores corroboraram com essa investigação: as ondas que atingiram a costa da Somália durante o grande tsumani no Oceano Índico em 2004 carregaram para as praias centenas de barris com material não identificado. Depois disso, ocorreram casos de intoxicação e envenenamento em moradores dessas regiões, além da contaminação de ecossistemas costeiros.
Investigações na Itália descobriram que mais de 35 milhões de toneladas de lixo tóxico foram exportadas para a Somália, em troca de valores que chegam a mais de US$ 6 bilhões. Em 2005, o PNUD também conduziu sua própria investigação, à luz dos episódios de contaminação decorrentes do tsunami, e concluiu que o despejo de resíduos não acontecia apenas na costa: grupos somalis também depositavam lixo tóxico no interior do país.
As Nações Unidas e o Banco Mundial conduziram um estudo no final dos anos 2000 recomendando a destinação de mais de US$ 42 milhões para localização e destinação apropriada desses resíduos tóxicos. Esse montante, pequeno se comparado com os ganhos que grupos armados somalis tiveram com essas operações, não contempla custos pelo sofrimento humano causado pelo lixo. Pouco se fez até hoje para localizar, identificar e dar a destinação apropriada e segura para esses resíduos. Pior, como as Nações Unidas reconhecem, o despejo continua a ser feito regularmente na costa do país, ameaçando comunidades e contaminando o mar e as praias da Somália.
Um efeito colateral curioso desse despejo tóxico foi a radicalização do conflito na Somália nos anos 2000. Comunidades de pescadores somalis acabaram perdendo seu ganha-pão com o despejo de resíduos perigosos na costa do país. Uma opção lógica para esses pescadores era ir para o alto-mar, mas eles tinham que competir com as grandes frotas pesqueiras do mundo, que dividem entre si a exploração da pesca no Oceano Índico.
Sem ter como competir com esses grupos, uma ideia radical surgiu: fazer acordos com os warlords para afastar as grandes frotas pesqueiras. Essa proposta permitiu aos warlords vislumbrar uma nova fonte de renda para alimentar o conflito na Somália: sequestro de grandes embarcações, em troca de milhões de dólares em resgate. Os sequestros se intensificaram no final dos anos 2000, quando uma força multinacional começou a patrulhar as águas internacionais próximas da costa da Somália para impedir os ataques de “piratas” somalis. Os sequestros de embarcações diminuíram bastante, mas ainda acontecem em pontos isolados da região; no final de 2013, os “piratas” ainda mantinham sob controle uma embarcação com 50 reféns.
Bruno Toledo, GVces