A mudança climática altera nossas vidas de maneira avassaladora – e não estamos falado de detalhes
Quando um belo dia de sol deixa de ser chamado de “tempo bom”, nós temos um problema. Reparem como a velha expressão para designar dias radiantes de céu azul sumiu do palavreado da meteorologia, ultimamente.
Escrevo este texto buscando uma brisa na noite e ansiando, junto com boa parte da população, para que uma frente fria finalmente chegue ao Sudeste e se espalhe pelo País, após os dias do mais inclemente verão desde que as medições começaram a ser feitas, ou seja, de que se tem história.
A moça do tempo vem à TV comemorar o frio que vem lá do Sul, e o segue de perto como se tivesse um GPS. Cada movimento de nuvem é anotado minuciosamente. Nenhuma gotícula pode ser perdida nesse trajeto.
Aqui no meu quintal também cheguei a posicionar roupas no varal de modo que gotejassem sobre plantas que nunca viram um verão como este. Esturricadas em plena estação pseudochuvosa, disputam qualquer presságio de umidade que surja no ar. Um espirro que seja é imediatamente sugado. Ou uma lágrima.
Porque tudo isso, no fundo, é muito triste. Ver esse mundo assim, tão estragado. Ainda mais as plantas, que nem podem correr, se abrigar, buscar lugares menos inóspitos. Justo elas, que nos dão tudo sem dizer um ai, a começar do ar que a gente respira. E a bicharada, coitada, sem entender nada. E as pessoas no ponto de ônibus disputando a exígua sombra de um poste – e daqueles postes magrelos, ainda por cima. A cidade como porta do inferno, o Semiárido em plena região de Mata Atlântica, nome de uma floresta exuberante porque é rica em água.
Mas eis que tem aqui o povo sofrendo com a escassez d’água combinada ao calorão insuportável. Eis que as represas estão minguando. Eis que o planejamento energético não contou com essa cartada da mudança climática. E o risco de racionamento dispara, o cenário projeta apagões mais frequentes, a conta de luz volta a aumentar. Eis que diversas safras de alimentos são quebradas. Não há irrigação que dê jeito, as sementes cozinham antes que possam germinar, as altas temperaturas torram espigas, verduras, frutos. Inflação.
Água, comida, energia, bolso – não é de detalhes que estamos falando. Semanas atípicas como essas últimas dão uma amostra do fim do mundo como o conhecemos. São poucos dias, mas o suficiente para passar o recado do pesadelo que isso aqui deve virar com o agravamento da mudança climática. Um período mais longo sob condições extremas como as vividas nessas semanas e estaremos longe de voltar a usar a expressão “tempo bom”.
Tempo bom quem sabe era o do Holoceno, iniciado há cerca de 11,5 mil anos, quando o fim de uma severa era glacial criou um clima e um ambiente aprazíveis para a vida na Terra florescer. O devir histórico definirá mais precisamente o período em que o Holoceno foi sucedido pelo Antropoceno – era geológica atual, que traz as marcas profundas da ação humana sobre a natureza, como o efeito estufa decorrente da mudança do uso do solo e das atividades baseadas no uso de energia fóssil.
No passado recentíssimo, coisa de poucas décadas até os dias de hoje, pudemos constatar uma frequência maior de eventos extremos – seca, chuva, frio, calor. Quanto mais a mudança do clima se agrava, mais eventos extremos vamos sofrer em menor espaço de tempo, e com maior intensidade também.
A questão é, além de reduzir as emissões de carbono, adaptar-se às novas condições que fazem do mundo, a começar de nossos quintais, ficar assim tão irreconhecível.
Texto originalmente publicado no Blog da Amália Safatle, no Terra Magazine