Baixa transparência dificulta o acesso a informações sobre a rastreabilidade da carne bovina nos líderes do varejo no Brasil
Entre saborear um filé-mignon e defender a conservação da Floresta Amazônica, existem tantas nuances que, dependendo do grau de exigência do consumidor consciente, as duas opções podem ser incompatíveis.
O sistema de rastreamento da carne bovina foi criado exatamente para atenuar o dilema dos que não querem abrir mão da proteína animal, tampouco contribuir para transformar em pastagem a maior floresta tropical do mundo ou estimular o trabalho escravo. Nesse sentido, o papel do varejo nos sistemas de rastreabilidade de alimentos tem se mostrado cada vez mais decisivo para forçar os outros elos da cadeia a seguirem padrões de sustentabilidade socioambiental.
No caso da carne bovina, a tarefa é das mais árduas, uma vez que se trata de uma cadeia de negócios bastante complexa, com várias fases de produção em diferentes fazendas – cria, recria e engorda – e milhares de frigoríficos com estrutura precária para controlar a qualidade do gado comprado dos pecuaristas. A reportagem de PÁGINA22 procurou as três maiores redes varejistas do País – Walmart, Carrefour e Grupo Pão de Açúcar (GPA) – para conhecer seus programas de rastreamento da carne bovina.
O trabalho não foi facilitado pelo Carrefour, pioneiro nesse tipo de controle, nem pelo Grupo Pão de Açúcar. Ambos adotam modelo pouco transparente de relacionamento com a imprensa ao só admitirem perguntas por e-mail, sem a possibilidade de entrevistas pessoais ou por telefone. As respostas também passam pelo filtro dos assessores que formatam o conteúdo, transformando-o em textos autoelogiosos, que ignoram questões fundamentais, como a participação da carne rastreada no total comercializado. Na contramão do Carrefour e GPA, a gerente de sustentabilidade do Walmart, Tatiana Donato Trevisan, concedeu entrevista por telefone.
A reportagem também conversou sobre o tema com um veterano nas iniciativas para tornar mais sustentável a pecuária brasileira, Roberto Smeraldi, fundador e diretor da Oscip Amigos da Terra – Amazônia Brasileira. Segundo ele, a cadeia da carne bovina no Brasil historicamente possui baixa transparência, articulação e organização. “Muitos pecuaristas não têm sequer planilhas de custos, não sabem ao certo se seu negócio é rentável e não medem seu rebanho nem o quanto possuem de terra”, afirma.
Por isso, ele crê que a rastreabilidade integral da carne bovina comercializada por uma rede varejista possa até chegar aos frigoríficos, mas incluir as fazendas no sistema é um desafio pedregoso. Diferentemente da produção suína e avícola, os bovinos são mais difíceis de rastrear, visto que, entre outras razões, mudam de fazenda em função da fase de desenvolvimento do animal.
Para facilitar o entendimento e a comparação das respostas fornecidas pelos três hipermercados consultados, optamos por mostrar como cada um versa sobre três requisitos cruciais para avaliar a qualidade de um programa de rastreamento: abrangência geográfica do sistema, confiabilidade das informações coletadas e transparência nas relações com o consumidor e as partes interessadas (stakeholders, como universidades, entidades ambientalistas e de consumidores, associações profissionais e ONGs em geral), por meio de consultas, mesas-redondas e seminários.
WALMART
Dois projetos foram lançados em abril de 2013 pelo Programa de Pecuária Sustentável do Walmart Brasil: um que assegura aos consumidores maior garantia sobre a origem da carne bovina comprada no supermercado por meio de um sistema de monitoramento por satélite; outro que apoia os pecuaristas da Amazônia na criação de gado em parceria com a The Nature Conservancy (TNC). O monitoramento e a gestão de risco da carne bovina do Walmart integra, em um mesmo sistema, dados de georreferenciamento que mapeiam desmatamento, Terras Indígenas, Unidades de Conservação, informações das listas públicas de áreas embargadas pelo Ibama e trabalho escravo. Com isso, a equipe comercial consegue suspender a compra de carne, antes de receber o produto do frigorífico, caso identifique risco ambiental ou social na fazenda que forneceu o gado para abate.
Abrangência – O programa de rastreamento iniciado em abril começou pelo bioma amazônico e deve contemplar 100% dos fornecedores do Walmart na região até 2015. A empresa não informa o total de fornecedores parceiros (frigoríficos e fazendas) nem a participação do bioma amazônico no total de carne bovina comercializada. Sem esse dado, fica difícil saber o peso da Amazônia nas vendas de carne bovina do Walmart. A empresa limita-se a declarar que seu abastecimento é oriundo de centenas de plantas frigoríficas e milhares de fazendas. Os outros biomas só entrarão no programa após 2015.
Confiabilidade – A empresa não contratou certificadora para atestar como terceira parte a veracidade e confiabilidade de seu sistema de monitoramento, sendo ela própria a responsável pelos controles do programa.
Transparência – O Walmart não disponibiliza na internet dados sobre seus fornecedores. As informações sobre os dois projetos em curso estão em um release divulgado no início de abril de 2013, que tem seu conteúdo reproduzido em seu website. Além da TNC, mantém conversas com Greenpeace e WWF e participa do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS).
CARREFOUR
O Carrefour foi o primeiro hipermercado do mundo a criar um programa de garantia de origem, em 1992. Com o sucesso na França, o projeto foi ampliado e implementado no Brasil em 1999.
Abrangência – Apenas a carne bovina com o selo Garantia de Origem Carrefour é 100% rastreável, mas a empresa não informa a origem geográfica do produto nem sua participação no total comercializado. Segundo sua assessoria de imprensa, o produto atende a uma lista de mais de 80 especificações em 13 categorias, tais como manejo sustentável de pastagem, alimentação, sanidade e bem-estar animal e gestão de resíduos e poluentes, além de bem-estar e respeito aos direitos trabalhistas.
Confiabilidade – A assessoria afirma que o programa de Garantia de Origem realiza auditoria anual nos fornecedores com empresa independente, mas esclarece que o selo de Garantia de Origem não é uma certificação independente. A qualidade da produção é controlada por meio de análises microbiológicas realizadas semestralmente.
Transparência – A carne bovina comercializada com o selo Garantia de Origem possui um código de barras QR (do inglês quick response), que permite ao consumidor acessar informações dos produtos ainda na gôndola pela tela de um celular inteligente com tecnologia Android ou iPhone. Os dados também podem ser consultados no site Garantia de Origem. A reportagem buscou informações da origem de um produto no site por meio do QR e atestou que o mecanismo funciona de fato. Mas o percurso no site para chegar até lá não é nada fácil. Também não houve esclarecimento a respeito do relacionamento do Carrefour com partes interessadas (stakeholders).
GRUPO PÃO DE AÇÚCAR – GPA
O Programa Qualidade desde a Origem (QDO) do grupo foi lançado em 2008. Em uma primeira fase, incluiu o setor de frutas, legumes, verduras. Em seguida, as carnes. As da marca Taeq (própria da rede) sempre foram rastreadas, desde que começaram a ser vendidas, em 2007.
Abrangência – No fim de março de 2013, o GPA firmou compromisso com seus fornecedores para que o QDO alcançasse 100% da carne bovina comercializada nas redes Pão de Açúcar e Extra. Em janeiro, 99% da carne já era rastreada, com previsão de chegar a 100% até junho. Contudo, quase um ano após o anúncio, a informação ainda não constava no site do programa até o fechamento desta edição. Também não há no site informação sobre a distribuição das fazendas e frigoríficos fornecedores de carne bovina nos diversos biomas brasileiros.
Confiabilidade – Não há informações sobre a existência de selos certificadores do programa de rastreabilidade do grupo. De qualquer maneira, o site do programa mostra que houve um aumento considerável nas auditorias de fornecedores, que evoluíram de 73 em 2008 para 543 em 2011 – mas não separa o segmento de frutas, legumes e verduras (FLV) do de carnes. De acordo com a assessoria de imprensa do GPA, uma única empresa audita os fornecedores. O GPA, entretanto, não divulga a proporção de carne rastreada que passa por auditorias.
Transparência – Segundo a empresa, o consumidor pode consultar a origem da carne acessando o site qdo.com.br, onde digita um código que vem na embalagem, ou por meio de aplicativo de celular que lê o código QR. Mas o site dá instruções apenas para a consulta das carnes Taeq. A reportagem tentou, sem sucesso, verificar a origem da carne bovina embalada em bandejas à venda em uma das principais lojas do Pão de Açúcar em São Paulo. Veja detalhes do teste no complemento desta reportagem. Não houve resposta sobre o tema do relacionamento com stakeholders.[:en]Baixa transparência dificulta o acesso a informações sobre a rastreabilidade da carne bovina nos líderes do varejo no Brasil
Entre saborear um filé-mignon e defender a conservação da Floresta Amazônica, existem tantas nuances que, dependendo do grau de exigência do consumidor consciente, as duas opções podem ser incompatíveis.
O sistema de rastreamento da carne bovina foi criado exatamente para atenuar o dilema dos que não querem abrir mão da proteína animal, tampouco contribuir para transformar em pastagem a maior floresta tropical do mundo ou estimular o trabalho escravo. Nesse sentido, o papel do varejo nos sistemas de rastreabilidade de alimentos tem se mostrado cada vez mais decisivo para forçar os outros elos da cadeia a seguirem padrões de sustentabilidade socioambiental.
No caso da carne bovina, a tarefa é das mais árduas, uma vez que se trata de uma cadeia de negócios bastante complexa, com várias fases de produção em diferentes fazendas – cria, recria e engorda – e milhares de frigoríficos com estrutura precária para controlar a qualidade do gado comprado dos pecuaristas. A reportagem de PÁGINA22 procurou as três maiores redes varejistas do País – Walmart, Carrefour e Grupo Pão de Açúcar (GPA) – para conhecer seus programas de rastreamento da carne bovina.
O trabalho não foi facilitado pelo Carrefour, pioneiro nesse tipo de controle, nem pelo Grupo Pão de Açúcar. Ambos adotam modelo pouco transparente de relacionamento com a imprensa ao só admitirem perguntas por e-mail, sem a possibilidade de entrevistas pessoais ou por telefone. As respostas também passam pelo filtro dos assessores que formatam o conteúdo, transformando-o em textos autoelogiosos, que ignoram questões fundamentais, como a participação da carne rastreada no total comercializado. Na contramão do Carrefour e GPA, a gerente de sustentabilidade do Walmart, Tatiana Donato Trevisan, concedeu entrevista por telefone.
A reportagem também conversou sobre o tema com um veterano nas iniciativas para tornar mais sustentável a pecuária brasileira, Roberto Smeraldi, fundador e diretor da Oscip Amigos da Terra – Amazônia Brasileira. Segundo ele, a cadeia da carne bovina no Brasil historicamente possui baixa transparência, articulação e organização. “Muitos pecuaristas não têm sequer planilhas de custos, não sabem ao certo se seu negócio é rentável e não medem seu rebanho nem o quanto possuem de terra”, afirma.
Por isso, ele crê que a rastreabilidade integral da carne bovina comercializada por uma rede varejista possa até chegar aos frigoríficos, mas incluir as fazendas no sistema é um desafio pedregoso. Diferentemente da produção suína e avícola, os bovinos são mais difíceis de rastrear, visto que, entre outras razões, mudam de fazenda em função da fase de desenvolvimento do animal.
Para facilitar o entendimento e a comparação das respostas fornecidas pelos três hipermercados consultados, optamos por mostrar como cada um versa sobre três requisitos cruciais para avaliar a qualidade de um programa de rastreamento: abrangência geográfica do sistema, confiabilidade das informações coletadas e transparência nas relações com o consumidor e as partes interessadas (stakeholders, como universidades, entidades ambientalistas e de consumidores, associações profissionais e ONGs em geral), por meio de consultas, mesas-redondas e seminários.
WALMART
Dois projetos foram lançados em abril de 2013 pelo Programa de Pecuária Sustentável do Walmart Brasil: um que assegura aos consumidores maior garantia sobre a origem da carne bovina comprada no supermercado por meio de um sistema de monitoramento por satélite; outro que apoia os pecuaristas da Amazônia na criação de gado em parceria com a The Nature Conservancy (TNC). O monitoramento e a gestão de risco da carne bovina do Walmart integra, em um mesmo sistema, dados de georreferenciamento que mapeiam desmatamento, Terras Indígenas, Unidades de Conservação, informações das listas públicas de áreas embargadas pelo Ibama e trabalho escravo. Com isso, a equipe comercial consegue suspender a compra de carne, antes de receber o produto do frigorífico, caso identifique risco ambiental ou social na fazenda que forneceu o gado para abate.
Abrangência – O programa de rastreamento iniciado em abril começou pelo bioma amazônico e deve contemplar 100% dos fornecedores do Walmart na região até 2015. A empresa não informa o total de fornecedores parceiros (frigoríficos e fazendas) nem a participação do bioma amazônico no total de carne bovina comercializada. Sem esse dado, fica difícil saber o peso da Amazônia nas vendas de carne bovina do Walmart. A empresa limita-se a declarar que seu abastecimento é oriundo de centenas de plantas frigoríficas e milhares de fazendas. Os outros biomas só entrarão no programa após 2015.
Confiabilidade – A empresa não contratou certificadora para atestar como terceira parte a veracidade e confiabilidade de seu sistema de monitoramento, sendo ela própria a responsável pelos controles do programa.
Transparência – O Walmart não disponibiliza na internet dados sobre seus fornecedores. As informações sobre os dois projetos em curso estão em um release divulgado no início de abril de 2013, que tem seu conteúdo reproduzido em seu website. Além da TNC, mantém conversas com Greenpeace e WWF e participa do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS).
CARREFOUR
O Carrefour foi o primeiro hipermercado do mundo a criar um programa de garantia de origem, em 1992. Com o sucesso na França, o projeto foi ampliado e implementado no Brasil em 1999.
Abrangência – Apenas a carne bovina com o selo Garantia de Origem Carrefour é 100% rastreável, mas a empresa não informa a origem geográfica do produto nem sua participação no total comercializado. Segundo sua assessoria de imprensa, o produto atende a uma lista de mais de 80 especificações em 13 categorias, tais como manejo sustentável de pastagem, alimentação, sanidade e bem-estar animal e gestão de resíduos e poluentes, além de bem-estar e respeito aos direitos trabalhistas.
Confiabilidade – A assessoria afirma que o programa de Garantia de Origem realiza auditoria anual nos fornecedores com empresa independente, mas esclarece que o selo de Garantia de Origem não é uma certificação independente. A qualidade da produção é controlada por meio de análises microbiológicas realizadas semestralmente.
Transparência – A carne bovina comercializada com o selo Garantia de Origem possui um código de barras QR (do inglês quick response), que permite ao consumidor acessar informações dos produtos ainda na gôndola pela tela de um celular inteligente com tecnologia Android ou iPhone. Os dados também podem ser consultados no site Garantia de Origem. A reportagem buscou informações da origem de um produto no site por meio do QR e atestou que o mecanismo funciona de fato. Mas o percurso no site para chegar até lá não é nada fácil. Também não houve esclarecimento a respeito do relacionamento do Carrefour com partes interessadas (stakeholders).
GRUPO PÃO DE AÇÚCAR – GPA
O Programa Qualidade desde a Origem (QDO) do grupo foi lançado em 2008. Em uma primeira fase, incluiu o setor de frutas, legumes, verduras. Em seguida, as carnes. As da marca Taeq (própria da rede) sempre foram rastreadas, desde que começaram a ser vendidas, em 2007.
Abrangência – No fim de março de 2013, o GPA firmou compromisso com seus fornecedores para que o QDO alcançasse 100% da carne bovina comercializada nas redes Pão de Açúcar e Extra. Em janeiro, 99% da carne já era rastreada, com previsão de chegar a 100% até junho. Contudo, quase um ano após o anúncio, a informação ainda não constava no site do programa até o fechamento desta edição. Também não há no site informação sobre a distribuição das fazendas e frigoríficos fornecedores de carne bovina nos diversos biomas brasileiros.
Confiabilidade – Não há informações sobre a existência de selos certificadores do programa de rastreabilidade do grupo. De qualquer maneira, o site do programa mostra que houve um aumento considerável nas auditorias de fornecedores, que evoluíram de 73 em 2008 para 543 em 2011 – mas não separa o segmento de frutas, legumes e verduras (FLV) do de carnes. De acordo com a assessoria de imprensa do GPA, uma única empresa audita os fornecedores. O GPA, entretanto, não divulga a proporção de carne rastreada que passa por auditorias.
Transparência – Segundo a empresa, o consumidor pode consultar a origem da carne acessando o site qdo.com.br, onde digita um código que vem na embalagem, ou por meio de aplicativo de celular que lê o código QR. Mas o site dá instruções apenas para a consulta das carnes Taeq. A reportagem tentou, sem sucesso, verificar a origem da carne bovina embalada em bandejas à venda em uma das principais lojas do Pão de Açúcar em São Paulo. Veja detalhes do teste no complemento desta reportagem. Não houve resposta sobre o tema do relacionamento com stakeholders.