Quem te vê quebrando o asfalto para as obras na rua nem percebe que é o teu cotidiano que engarrafa e asfixia
Meu querido Zé, permite chamar dessa forma. É para acomodar no peito o teu espírito farto e teu semblante langoroso. Porque assim eu chamava a meu marido quando chegava fatigado, o justo carpinteiro de Nazaré. Porque assim é mais carinhoso o falar. Rogo-te o perdão, por não amenizar esse desespero que te enervas.Perdão por não ser possível aceitar a tua lágrima, a tua súplica.
Tu me olhas daí de baixo com os olhos fracos, pedindo graças. Vi a hora em que subiste os degraus da igreja de joelhos doloridos. Tu te apequenas nesse alto prédio ornamentado com ouro, não te apequenas? Espanta-te diante do gesso meticulosamente esculpido pelo artista em cada pilastra, não te espantas? Assusta-te com meu olhar de misericórdia que mira o infinito em silêncio, não te assustas?
Tu que o tempo todo recordas a finitude das coisas e a escassez das pequenas posses. Que moras em um beco escuro e vês os filhos jogando bola no chorume. Que não aprendeste a ler, nem a escrever. Perdão por não descer deste púlpito imponente para te dar a mão.
Conheço os teus sacrifícios. Sei das madrugadas que levantas para tentares uma vaga para a criança na escola. Das madrugadas que passaste acordado vendo tua mãe agonizar no chão do hospital em Guaianases, sem socorro do plantonista. Da britadeira que usas sobre o asfalto da Marginal e que fere os teus ouvidos e os dos outros operários.
Sei da tua infância na favela do Canindé e do que sentiste quando, para dar passagem à avenida, a casa da mãe foi demolida. É fácil a vida desmoronar e ninguém fazer nada. Quando a nossa casa desmorona, também desmorona um tanto daquilo que somos, que guardamos, sonhamos, sustentamos. E as pessoas lá fora continuam sem fazer nada.
AVIÃO DE ASA QUEBRADA
Lembro as vezes em que cataste brinquedo entre o ferro-velho e fingias que o avião de asa quebrada era para cruzar a cidade inteira; o caminhão com pneus faltando, para trazer comida e distribuir na favela. Os super-heróis sem cabeça levariam os velhos ao posto de saúde, as crianças para tomar vacina.
Hoje não moras naquela antiga casa demolida, embora sonhes com as casas do Jardim América. Tu pensas “casas que devem ter tudo, além das árvores no jardim. Filhos de mãos dadas com os pais, comida na geladeira, homens acordando às oito, nove da manhã”. Sei que tomas o ônibus às quatro para chegar à obra a tempo de bater o ponto. Acordas antes de o sol nascer e pegas o frio da lua e das estrelas morrendo.
Ouve-me, por favor. Eu imploro. Volta, como o médico pede ao paciente que não tem mais cura. Volta para a casa que tens agora, pois não vale a pena sofreres longe dos teus. Volta porque não tenho milagres para te conceder. Por isso, peço perdão, Zé.
Reúne teus trapos, teus velhos sapatos de borracha e teus sonhos humildes. Não terás mais do que isso.
Quem te vê aqui sem saber que esta bela roupa tomaste emprestada com o Robson nem imagina o quanto precisas de apoio. Quem te vê quebrando o asfalto para as obras na rua nem percebe que é o teu cotidiano que engarrafa e asfixia. Pelo amor de Deus, perdão. Pelo que a tua vida foi, é e sempre será.
Não tenhas mais este trabalho. Este trabalho de vir até aqui pedir com esperança. Carrega a minha imagem no bolso. Afixa a minha imagem nas paredes úmidas de concreto aparente da tua casa. Terás menos esforço. Mas não esperes o milagre. Não é que Deus ajude apenas os outros. É que milagres são para os predestinados. Perdão, Zé.
Por favor, não creias com tanta força. Esquece essa vontade para não te tornar esquizofrênico. Escuta-me, por favor. É para evitar as feridas, sossegar a alma. Peço-te com todas as forças. Infelizmente, não terás alívio, não terás menos peso, nem cura. Perdão, meu querido Zé, perdão.
*Jornalista e autor do livro Amor do Mundo[:en]Quem te vê quebrando o asfalto para as obras na rua nem percebe que é o teu cotidiano que engarrafa e asfixia
Meu querido Zé, permite chamar dessa forma. É para acomodar no peito o teu espírito farto e teu semblante langoroso. Porque assim eu chamava a meu marido quando chegava fatigado, o justo carpinteiro de Nazaré. Porque assim é mais carinhoso o falar. Rogo-te o perdão, por não amenizar esse desespero que te enervas.Perdão por não ser possível aceitar a tua lágrima, a tua súplica.
Tu me olhas daí de baixo com os olhos fracos, pedindo graças. Vi a hora em que subiste os degraus da igreja de joelhos doloridos. Tu te apequenas nesse alto prédio ornamentado com ouro, não te apequenas? Espanta-te diante do gesso meticulosamente esculpido pelo artista em cada pilastra, não te espantas? Assusta-te com meu olhar de misericórdia que mira o infinito em silêncio, não te assustas?
Tu que o tempo todo recordas a finitude das coisas e a escassez das pequenas posses. Que moras em um beco escuro e vês os filhos jogando bola no chorume. Que não aprendeste a ler, nem a escrever. Perdão por não descer deste púlpito imponente para te dar a mão.
Conheço os teus sacrifícios. Sei das madrugadas que levantas para tentares uma vaga para a criança na escola. Das madrugadas que passaste acordado vendo tua mãe agonizar no chão do hospital em Guaianases, sem socorro do plantonista. Da britadeira que usas sobre o asfalto da Marginal e que fere os teus ouvidos e os dos outros operários.
Sei da tua infância na favela do Canindé e do que sentiste quando, para dar passagem à avenida, a casa da mãe foi demolida. É fácil a vida desmoronar e ninguém fazer nada. Quando a nossa casa desmorona, também desmorona um tanto daquilo que somos, que guardamos, sonhamos, sustentamos. E as pessoas lá fora continuam sem fazer nada.
AVIÃO DE ASA QUEBRADA
Lembro as vezes em que cataste brinquedo entre o ferro-velho e fingias que o avião de asa quebrada era para cruzar a cidade inteira; o caminhão com pneus faltando, para trazer comida e distribuir na favela. Os super-heróis sem cabeça levariam os velhos ao posto de saúde, as crianças para tomar vacina.
Hoje não moras naquela antiga casa demolida, embora sonhes com as casas do Jardim América. Tu pensas “casas que devem ter tudo, além das árvores no jardim. Filhos de mãos dadas com os pais, comida na geladeira, homens acordando às oito, nove da manhã”. Sei que tomas o ônibus às quatro para chegar à obra a tempo de bater o ponto. Acordas antes de o sol nascer e pegas o frio da lua e das estrelas morrendo.
Ouve-me, por favor. Eu imploro. Volta, como o médico pede ao paciente que não tem mais cura. Volta para a casa que tens agora, pois não vale a pena sofreres longe dos teus. Volta porque não tenho milagres para te conceder. Por isso, peço perdão, Zé.
Reúne teus trapos, teus velhos sapatos de borracha e teus sonhos humildes. Não terás mais do que isso.
Quem te vê aqui sem saber que esta bela roupa tomaste emprestada com o Robson nem imagina o quanto precisas de apoio. Quem te vê quebrando o asfalto para as obras na rua nem percebe que é o teu cotidiano que engarrafa e asfixia. Pelo amor de Deus, perdão. Pelo que a tua vida foi, é e sempre será.
Não tenhas mais este trabalho. Este trabalho de vir até aqui pedir com esperança. Carrega a minha imagem no bolso. Afixa a minha imagem nas paredes úmidas de concreto aparente da tua casa. Terás menos esforço. Mas não esperes o milagre. Não é que Deus ajude apenas os outros. É que milagres são para os predestinados. Perdão, Zé.
Por favor, não creias com tanta força. Esquece essa vontade para não te tornar esquizofrênico. Escuta-me, por favor. É para evitar as feridas, sossegar a alma. Peço-te com todas as forças. Infelizmente, não terás alívio, não terás menos peso, nem cura. Perdão, meu querido Zé, perdão.
*Jornalista e autor do livro Amor do Mundo