Ana Lucia Miranda – cientista social e diretora da área qualitativa da empresa OMA, que realiza pesquisas de opinião e mercado junto aos diversos estratos sociais
Ao se buscar uma definição do termo periferia, que critérios devem ser usados? Socioeconômicos? Território-espaciais? Culturais? O que diferencia “periferia” de “centro”?
Tudo depende de que recorte você fizer. Se fizer um recorte estritamente cultural, vale dizer que existem manifestações culturais que nascem na chamada periferia, que expressam uma realidade da periferia e são da maior importância especialmente quando associadas à juventude. Claro que o mais conhecido é o movimento hip-hop, que nasce na periferia falando das questões que a afetam e que ganha projeção na cidade como um todo. Isso acontece aqui e em outros países do mundo. É um movimento que ganhou muita expressividade, mas há muitas outras expressões.
O samba seria uma delas?
Não dá para falar da mesma forma porque o samba tem uma origem não necessariamente periférica, pois nasce quando o País é que é periferia. O samba faz parte do momento de um país, então que não razoável fazer uma distinção nesse sentido (periferia/centro), mas talvez apenas entre elite e subalternos. É uma expressão dos subalternos, ligada ao que veio depois da escravidão. Então é um outro caldo que você tem que mexer de uma outra maneira. Agora, você tem manifestações de arte, tem o grafite. Existem muitos trabalhos importantes da academia de Sociologia e Ciência Política que lidam com manifestações culturais da periferia. Mas não é o único recorte, há várias maneiras de abordar esse tema. Você pode usar um cruzamento geográfico e social. Na cidade de São Paulo, de que posso falar um pouco melhor, você pode pegar o mapa e dividir as zonas das cidade, as zonas intermediárias, os centros periféricos e a periferia propriamente dita.
Por esse critério as fronteiras são bem nítidas?
São mais nítidas porque existe aí uma questão de diminuição de renda e uma diminuição da disponibilidade de serviços urbanos, onde se encontrarão mais problemas de esgoto, de asfalto. A infraestrutura urbana que vai se escasseando conforme você adentra as partes extremas na cidade – mas não nos centros periféricos.
O que são os centros periféricos?
São as regiões que de certa forma estão mais próximas do Centro e foram se desenvolvendo mais. Por exemplo, pegue um bairro como São Miguel Paulista, que é um monstro, e lá tem uma infraestrutura urbana que não é igual à do “fundo” de São Miguel Paulista. Então não existe “a” periferia . Existem centros periféricos, periferias em desenvolvimento e extremas periferias. Em uma cidade como São Paulo, a multiplicidade de realidades é muito grande. E as classificações socioeconômicas são um drama mexicano. Mas, ao se cruzar região e renda, é capaz que se chegue a alguma coisa. O critério “condições de moradia” dará algum elemento nesse sentido. Outros critérios que durante muitos anos se usaram para ver quem era quem na cidade hoje são completamente inócuos. Não se pode usar mais critérios de bens de consumo, por exemplo.
Por que não?
Porque você vai encontrar televisões de 42 polegadas, tablets, celulares, carros em Pinheiros ou no Itaim Paulista, da mesma marca, mesmo tamanho. Também não é lá grande coisa o critério de escolaridade, porque você tem um número imenso de jovens morando mal em zonas muito distantes do Centro que fazem universidade. “Ensino superior” é um critério a ver como se coloca. Então esses são estudos que o País está devendo a si mesmo, nesse momento de grandes mudanças que vivemos nos últimos 15 anos. Faltam critérios mais definidos para classificar nossa própria população e saber de quem, na verdade, estamos falando, e de onde.
Até para que o País possa definir suas políticas públicas?
Exatamente. Agora, não há dúvidas de que o número de atendimento de infraestrutura e da presença de políticas públicas é um critério bastante válido para definição do que é mais ou do que é menos periférico na cidade. Não sei se dá para juntar tudo como periferia, como falei, mas os equipamentos urbanos disponíveis e as condições de moradia são critérios importantes, porque de certa forma determinam a desigualdade urbana. Não me refiro à desigualdade social, que é uma outra discussão, mas sim à urbana, que está aí para a gente ver.
Quem vive em um cortiço no Centro entra no critério da condição de moradia?
Sim, mas essa pessoa tem acesso a mais equipamentos urbanos do que quem vive no Cantinho do Céu. Quem conhece o Cantinho do Céu sabe o que é bom pra tosse. Uma coisa é morar a 40 minutos do trabalho, outra é demorar 2 horas e 40, faz bastante diferença na qualidade de vida. A extrema periferia de São Paulo não é brincadeira. Justamente porque essa cidade é monumental. Quando você pensa: “Nossa, fui até São Miguel, tava lá na periferia da Zona Leste!”, você nem começou a entrar de verdade na periferia. Quando eu trabalhava em multinacional, dizia para meus clientes: “Não queria dar essa notícia pra vocês, mas existe vida do outro lado da Marginal”, porque a tendência de quem está na região central é achar que periferia é tudo o que está fora da área nobre.
Qual a razão de não termos tantos estudos a respeito dessa discussão?
É que de modo geral esses fenômenos são muito recentes no Brasil. Como você sabe, do ponto de vista histórico, 15, 20 anos, não são nada. E, até este momento, essa discussão pouco faria sentido no Brasil à medida que nós não tínhamos sequer entrado em um processo de crescimento. Só a partir do crescimento é que essas pessoas se tornaram visíveis. Isso faz com que existam poucas referências. E só farão estudos pioneiros as pessoas que têm coragem de fazer estudos pioneiros (risos). É muito mais difícil.
Por outro lado é mais fácil de apresentar algo original.
Mas você corre um grande risco de dizer bobagem. Você fica muito de peito aberto. A outra coisa é que os estudiosos têm mais receio de dizer algo sobre uma coisa em ebulição, que se encontra em processo de transformação.
Essa transformação tem a ver com o maior acesso à educação e ao que se chama de nova classe média?
Essa conversa de “nova classe média” me deixa um pouco nervosa. Uma coisa é clara: a partir do momento em que houve aumento da renda, maior acesso a bens de consumo, acesso a informação – ainda que de péssima qualidade, via internet e telejornais no Brasil – esse conjunto de fatores levam as pessoas a galgar degraus. Tudo isso cria uma sociedade em ebulição, uma sociedade que está em busca do mais, aprendendo a querer mais. E isso só possível porque teve todo esse processo de crescimento. É uma sociedade que está em processo de formação da cidadania.
Por que no recorte cultural há uma quantidade maior de estudos sobre as manifestações da periferia?
Porque a questão cultural sempre fascina mais, ela é livre dessa discussão que estamos fazendo aqui, não tem tanta cumbuca para colocar a mão. Você vê a manifestação cultural, ela existe, quer dizer alguma coisa, ela é mais palpável, mais fácil de ser debatida. E tem pessoas na periferia que cumprem o papel de lideranças culturais, o que contribui muito pra isso também.
Esse processo de formação de cidadania que a senhora cita tem algo a ver com as manifestação vistas em junho do ano passado?
Não. As manifestações são fundamentalmente da juventude de classe média.
Mas não houve uma boa participação de pessoas de escolas públicas, por exemplo?
Teve um determinado momento em que houve esse engajamento por questões específicas, mas não vejo as manifestações como um momento de expressão da juventude da periferia. Fingir que foi isso interessa a muitos órgãos de imprensa.
Por quê?
Porque a muitos deles interessa contestar o governo, são veículos que têm interesse em fazer esse jogo.
Se não foi via manifestações, essa juventude da periferia se expressa de que maneira?
Tem os movimentos culturais que citei, que não são apolíticos. A presença dessas pessoas nas universidades é uma maneira de se expressar, o contato cada vez maior com o centro é uma maneira de se expressar. Toda essa atenção existe porque a chamada área nobre da cidade – entenda como uma área grande, não é só o Jardim América – teme a periferia. E a periferia não teme a área nobre. É como se as pessoas da área nobre dissessem: “Meus Deus, eles estão chegando!” e aí há um certo pânico.
Como nos rolezinhos?
Os rolezinhos nada mais são do que: “Eu também faço parte disso, vai te catar!.” É uma brincadeira, uma maneira de se expressar. As relações que as pessoas sobre o “significado político dos rolezinhos”, “a vinculação dos jovens da periferia com a violência das manifestações” não têm nada a ver.
O Brasil ainda é um país de periferia diante dos eixos de poder?
Esse é um olhar que também precisa ser completamente revisto. Veja como os países ricos, como EUA e os da Europa, estão enfrentando crises brutais. Todos os conceitos que se tinha de geopolítica têm de ser revistos e acredito que assim estejam sendo pelos estudiosos.