“A cultura da periferia está cada vez mais ditando regras, talvez pela própria autenticidade com que é concebida, sem pudor estético, sem a patrulha do bom gosto”
Filho de músico e dono de estúdio, Daniel Sanches Takara, conhecido como Daniel Ganjaman, é o homem por trás do sucesso de Criolo, nova sensação da música que saiu do Grajaú para o mundo, e cuja fanpage no Facebook tem mais de 1 milhão de curtidas. Produtor experiente, músico e técnico de som, Ganjaman já trabalhou com nomes que incluem Jorge Benjor, Ivo Meirelles, Mombojó, Tulipa Ruiz, BNegão, Clube do Balanço, Ratos de Porão, Otto, entre outros. Neste papo com a Página22, ele falou sobre o som da periferia, sobre políticas públicas e os rumos do mercado da música depois da internet.
Existe a tal cultura ou estética da periferia no mundo globalizado em que vivemos hoje? Podemos ainda diferenciar cultura de periferia e cultura de elite? E, se sim, o que caracteriza a cultura de periferia: os temas, o local de origem dos artistas, o público para quem eles falam?
Acho dentro dessa bagunça toda que você acaba de relatar, é complicado mesmo definir, é muito difícil afirmar que exista uma cultura 100% de periferia, até porque ela extrapola essas barreiras e isso faz com que a coisa se torne globalizada. A gente tem exemplos bem claros, desde a entrada do samba na alta sociedade, por intermédio de interlocutores que fizeram essa ponte, a bossa nova, e etc. O samba sempre foi essa resistência, o pagode fez muito sucesso nas décadas de 80 e 90. É uma cultura autêntica de periferia.
Pois é, mas nunca foi rotulada como cultura de periferia.
Na verdade esse “não rótulo” é parte de um preconceito que hoje em dia está menos velado. Porque se você falar que não existe cultura de periferia… Se estabelecer como ponto de referência todas as ações que estão acontecendo, tanto manifestações como rolezinhos, fica muito claro o aspecto diferente de como as pessoas culturalmente se comportam e como isso causa estranheza tanto de um lado quanto do outro. Logicamente a estranheza vem muito mais do centro para a periferia do que o contrário.
Agora, com os blocos de carnaval e tal, o paradoxo continua: você vê a “playboyzada”, entre aspas, ou os meninos de classe média, curtindo na rua, eles estão fazendo exatamente o que fazem os da periferia: bebendo, fumando maconha. Mas na periferia são discriminadas. Os meninos de classe média estão sob um outro olhar. O cara que tá no baile funk no meio da rua, aí é um absurdo. No fundo é a mesma coisa. Só o que muda é o CEP. E o CEP é um determinante fundamental.
O que a gente vê é que a cultura da periferia está cada vez mais ditando regras, talvez pela própria autenticidade com que é concebida, sem pudor estético, sem a patrulha do bom gosto, o que faz com que aquilo que vem da periferia seja realmente autêntico. Essa autenticidade tem uma volta, que é a própria sociedade absorvendo aquilo.
E algo autêntico é sempre algo bom, esteticamente?
Não necessariamente, mas certamente é algo mais criativo, mais novo, que tem um frescor. Pegue o histórico do movimento hip hop no Brasil. A forma como a coisa aconteceu foi sempre com base numa precariedade estrutural muito grande. Surgiu na rua, nas estações de metrô… O hip hop, mesmo nos EUA, começou muito precário: com um DJ num toca discos, repetindo uma parte do disco onde não tinha voz, para que um MC fosse lá e cantasse em cima. Só que no Brasil, essa fase da precariedade foi mais longa porque ela reproduz a própria precariedade do País. Mas dessa precariedade surgiu algo muito novo, que eu classifico como rap Nacional, que tem uma força que nenhum estilo musical do mundo tem, por conta dessa coisa crua. Você ouve grupos de rap dos anos 90, que tiveram de lidar muito com essa precariedade, e tem uma força ali que não dá para comparar com o que tem de mais forte no Rap norte-americano, em termos de força de expressão.
Então você está me dizendo que a perda da precariedade implica em perda de força de expressão também? Agora que os Racionais são produzidos pela Paula Lavigne eles são menos expressivos?
Não necessariamente, e os Racionais não são exatamente produzidos pela Paula Lavigne. Ela é uma parceira. Eles continuam sendo um grupo independente que tem a Boggie Nights com produtora linha de frente, mas é claro que hoje em dia eles dependem de muito mais estruturas e até de uma abertura de canais de comunicação com outras vertentes musicais.
Até a virada dos anos 2000 a postura dos Racionais sempre foi muito ferrenha com relação à mídia, eles sempre foram muito duros em relação a não ter nenhum tipo de envolvimento com a mídia de massas. E hoje em dia eles têm muito mais penetração na mídia.
E o que mudou?
Acho que isso tem muito a ver com a parte pessoal de cada um deles: no sentido de saber o quanto isso pode trazer de positivo para o trabalho e para a sociedade mesmo, já que a mensagem sendo propagada pela mídia chega a muito mais gente.
Na minha opinião tem um papel inverso que é muito importante: é o fato de terem crescido de forma totalmente independente e hoje serem pauta dos grandes veículos.
Como a Banda Calypso?
Sim, muito parecido: foi um fenômeno independente e quando a imprensa viu o sucesso disse: “a gente não pode passar ao largo disso, já que pautamos o que é grande”. Vejo muito mais como um mérito do que como algo do tipo “eles estão se vendendo”.
Vejo esse paralelo acontecendo com o Emicida, com o Criolo.
Mas o Criolo com o Nó na Orelha é uma versão mais “paz e amor”, não é?
Você acha?
Acho que esse trabalho é uma coisa mais refinada, os arranjos, os metais…
É perigoso afirmar isso.
Mas você mesmo afirmou que o rap era precário.
Sim, e essa precariedade, repito, deu origem a uma expressividade incrível… Bem, refinado pode até ser… E ter arranjos mais trabalhados. Sim, muita gente me coloca como uma pessoa que teve essa função no Rap, de trazer arranjos mais trabalhados.
Você é tido como o cara que apresentou o Criolo para um outro público, o das “meninas da Vila Madalena”, que hoje é boa parte do público do Criolo.
Sim, como é boa parte do público do Emicida, como é boa parte do público dos Racionais, e do Só Pra Contrariar… Que houve uma diferenciação estética no trabalho do Criolo isso é fato, mas isso partiu dele, ele querendo mostrar um outro lado do seu trabalho. Mas foi ele que chegou com aquelas músicas. Na minha opinião, isso faz parte de um processo natural…
Tem um embate aí entre os mais e os menos sectários, né? Até mesmo sobre essa questão do redirecionamento da carreira do Criolo, a gente vê na internet que tem gente que critica.
É, isso é uma discussão enorme, e acabou vindo um pouco à tona com a questão da Lei do Romário[1], que regulamenta o hip hop como profissão. Tem gente a favor, muita gente contra, e está gerando polêmica. Nesse ponto a gente percebe as diferenças entre aqueles que são contra o contato mais estreito com a mídia, ou a performance em casas de público com mais poder aquisitivo e os que defendem que o papel do Rap também seria estar presente em todos os lugares, que a ideologia ela seja carregada adiante, e não uma forma de segregar, de sectarismo. Acho que os dois lados têm seus pontos e acho que é muito importante que os artistas tenham bom senso para lidar com isso.
O Criolo por exemplo, tem coisas que ele não faz mesmo, e quando vem uma solicitação nem chega nele. Ele não faz publicidade, dessas super publicidades, do tipo ele endossando um produto, e qualquer ação patrocinada por bebida alcoólica, remédio, cigarros, ele também não faz. Então, pedido de camarote de cervejaria no carnaval, por exemplo, nem chega nele.
[1]Projeto de Lei 6756/2013, que propõe regulamentar as profissões e atividades da cultura hip hop. Se aprovado, atividades realizadas como DJ, MC, Rapper, Beat Box, Dança de Rua e Grafite serão reconhecidas pelo Ministério do Trabalho e poderão ser registradas na carteira de trabalho. O projeto ainda estabelece carga horária de trinta horas semanais, as horas excedidas serão remuneradas com acréscimo de 100% sobre o valor da hora normal.
Tem uma postura dele.
Exatamente, uma postura que garante a longevidade do trabalho, garante uma coerência. O Criolo trabalhou com crianças e adolescentes em situação de risco, viu muita coisa acontecendo, viu muito moleque se perder. Então isso é uma questão de algo que ele vivenciou muito de perto, e é uma coisa que ele não vai abrir mão. Eu sinto muito orgulho. Ele veio do Rap, veio do Hip Hop, então a postura é essa.
Você é a favor ou contra a Lei do Romário?
Sou a favor do diálogo, acho que do jeito que está, está mal feito. É complicado, você está trabalhando com uma expressão artística que tem um ar de contestação muito grande, e aí você está querendo estatizar essa cultura. Se eu colocar que a pessoa precisa de um curso de profissionalização para ser Rapper, para ser um MC, então aquela autenticidade da qual eu falei no início fica ameaçada, você vai transformar num padrão, vai tirar o que tem de novo. Mas acho que o Romário é um político super comprometido com o que faz, e isso é valioso. Então, por si, deve ser muito valorizado, e acho que a intenção por trás da legislação é séria. Mas tem de ser discutido, como pode ajudar sem prejudicar.
Você utiliza mecanismos como Leis de incentivo, editais como o Proac, ou outros? O que pensa dos mecanismos voltados para a música? Que papel eles têm ou vem desempenhando nessa ascensão da cultura da periferia nos meios de comunicação de massa?
Já trabalhei com incentivo, como músico, não como produtor. Não sou contra sua utilização, mas sou contra o funcionamento. Acho que os critérios são muito subjetivos, e que o problema é que os editais contemplam o resultado. Acho que deveriam contemplar os meios da coisa ser feita. Deveriam dar mecanismos para a coisa acontecer e não simplesmente entregar de mão beijada para 10 em cada 1000 artistas o dinheiro ou o aval para a consecução de seus projetos. Qual é o critério para os 10 que foram escolhidos?
O problema não é só os critérios, é o depois. Você, um artista desconhecido, consegue passar seu projetinho na Rouanet, mas vai concorrer com artistas conhecidíssimos na hora de captar.
Pois é… Eu faço parte de um grupo em que estamos discutindo políticas públicas, discutindo opções para apresentar para a Secretaria de Cultura, e até o Ministério. Tem muita gente séria de todos os setores querendo debater, porque durante muito tempo isso foi visto com muito preconceito, fruto de desleixo e preguiça, por parte da classe musical em especial. Você vê que a música não tem uma Lei do Fomento, como tem o teatro, por exemplo. O mercado da música desde que existe como mercado, algo que dá lucro, objeto de investimento, está em decadência. Na minha opinião isso sempre foi uma bolha, que uma hora ia explodir. Porque você está falando de música, de arte, e não pode colocar a máquina – o mercado – tão à frente de algo que tem um viés tão humano. E isso foi o que aconteceu. A indústria se engoliu. Ela foi criando mecanismos para se propagar, e esse mesmo mecanismo engoliu o dinheiro que estava sendo gerado.
Engoliu porque ruiu o esquema de direitos autorais tal como o concebíamos antes da internet, não é?
É, mas não é só isso. A música passou a ter um papel muito mais virtual do que físico. A facilidade de circulação de arquivos fez com que ela não tivesse mais valor de mercado. A música, como algo de valor, para ser vendido, não representa mais o que representava.
Se a música não tem valor, então o que tem valor? A atitude?
Não é que a música não tenha valor, ela tem, mas não o mesmo que tinha lá atrás. Essa coisa da galinha dos ovos de ouro não existe mais. Na minha opinião, era um mercado irreal…
Mas o mercado das artes é assim, não é?
Mas o mercado das artes é extremamente restrito. Você compra um original… Salvo algumas exceções, que viram clássicos e vão parar nos objetos, feito o Romero Brito. Mas a música, a forma como a coisa foi explorada, estava fadada ao fracasso. Todo mundo estava vendo e ninguém se preocupou em transformar esse mercado em algo sustentável. E o problema hoje em dia é esse. As pessoas estão vivendo de subsídio, vivendo de algo que não existe.
Então qual é o modelo?
É um meio termo: ninguém precisa ganhar rios de dinheiro e ninguém tem de passar fome. Por isso contesto o funcionamento das leis. Por exemplo: se um edital como o Proac propõe, como máximo por projeto, o valor de 150 mil reais, você vai ver que todos os que concorrem e ganham gastam R$ 150 mil. Desde o projeto do violão e voz até a orquestra. Então isso é um absurdo. Não tem como controlar. A gente vive um momento de transição, e nesse sentido o Estado e as políticas públicas têm um papel fundamental para ajudar a forjar esse meio termo, que não é nem o mecenato estatal nem a ditadura do mercado. Por exemplo: uma coisa que a gente está aventando é sugerir que casas que tenham programação cultural sejam isentas de IPTU.
O que acha da Virada Cultural?
Acho que é um evento bacana, mas se eu pudesse dividir esses não sei quantos milhões, dividir em 12 e fazer uma por mês, ou em seis e fazer a cada dois meses, como muito mais controle, segurança e possibilidade das pessoas realmente digerirem o que está acontecendo, porque é um desperdício muito grande. Também acho que ela pode ser mais espalhada, aproveitar lugares e espaços que já são aproveitados para apresentações.
Como você escolhe com quem vai trabalhar? Quais são os projetos e os artistas que te interessam?
A primeira coisa que eu penso, antes de qualquer tipo de avaliação artística, é qual poderia ser a minha colaboração com o trabalho. O que vai mudar se eu colaborar com aquilo? Tem artistas maravilhosos, que eu gosto, mas ouço e digo: “não tenho para dar”. Já fiz isso muitas vezes. Tenho de ser honesto comigo e com o artista. A segunda análise é a parte artística. Se eu acho que tem relevância artística o suficiente para que eu esteja envolvido. Às vezes, o artista que musicalmente pode até não dizer tudo aquilo, mas a sua colaboração vai ajudar tanto o trabalho do cara, no sentido de transformar aquilo em algo mais interessante, que você se sente comprometido. Se eu vou colocar a minha identidade artística, sonora, tem de fazer sentido, de ter coerência. E isso tem a ver com arrumar meios do artista chegar onde quer chegar.
Antigamente fazer sucesso era vender disco. O cara ia no Chacrinha, ganhava o disco de Ouro, de Platina, e tal. Na sua opinião, o que é fazer sucesso, hoje, no mundo da música, seja o artista de periferia ou não?
O que é considerado sucesso hoje em dia, especialmente no contexto da periferia, é a quantidade de visualizações no Youtube, a quantidade de downloads que a música tem, a quantidade de seguidores que o artista tem no face. Principalmente na periferia, acho que isso é muito importante.
Por que?
Porque o Youtube virou uma ferramenta para ouvir música. Foi criado para visualização de vídeos, mas virou uma ferramenta de ouvir música. Muitas vezes não tem nem o vídeo lá. Só uma imagem estática e o áudio.
E uma publicidade, né? Isso quase sempre tem.
É, depois que a coisa tem um determinado número de views.
Eu fui ouvir o Nó na Orelha no Youtube e lá estava a publicidade do Dove.
Nós não temos nenhum controle… Você passa contratualmente para eles as ferramentas de visualização. Dentro dessas ferramentas eles monetizam a coisa ali, e incluem publicidade.