Poucos períodos da nossa história deixaram tantas “cicatrizes” no país como a ditadura civil-militar iniciada em 1964, há exatos 50 anos. Para muitos, essas cicatrizes são pessoais, impregnadas em sua pele, carne e/ou alma. Para outros, elas estão naqueles em que não estão mais presente entre nós – os desaparecidos (como Stuart Angel Jones e muitos dos guerrilheiros do Araguaia) e os “suicidas” (como Vladimir Herzog), por exemplo. Para a política e a economia brasileira, mesmo com as diversas reformas econômicas e a Constituição de 1988, a ditadura ainda se faz presente pelas condições político-econômicas que ainda persistem. Assim, mesmo que esse período esteja começando a fazer a transição da memória das pessoas para os livros de História, os governos dos generais-presidentes não são, nem de longe, episódios superados: muito do que a gente vive advém das opções políticas, econômicas e sociais feitas no período de exceção democrática.
Aproveitando esse momento especial de memória dos 50 anos da queda de Goulart e do início do regime militar, gostaria de lembrar aqui três cicatrizes físicas que persistem em lugares completamente diferentes: a BR-230, a famigerada Rodovia Transamazônica; o Elevado Presidente Costa e Silva, o polêmico Minhocão; e as usinas nucleares instaladas na região de Angra dos Reis/RJ. Cada uma dessas cicatrizes mostra, ao seu modo, como os tecnocratas e os militares que administraram o país por duas décadas não tinham uma noção realista nem um projeto viável de longo prazo. Cada uma delas nos traz à mente o quanto as opções e decisões políticas de um governo podem influenciar o debate político e a realidade social por décadas. Elas somente poderiam ter saído do papel num cenário em que a discussão política estava interditada, em que o contraditório não existia.
Em extensão, a mais famosa cicatriz é a Transamazônica. Suas obras foram iniciadas em 1969, por ordens do então presidente Emílio Garrastazu Médici, com o propósito de ligar o Nordeste ao Norte do país. Essa ideia mascarava um objetivo bastante importante para os governantes militares: redirecionar a migração nordestina do Sudeste para o Norte, alimentado assim a ocupação humana da fronteira amazônica, estratégica para o governo federal. A ocupação seria feita a partir do modelo de agrovilas, num projeto que ligava originalmente João Pessoa (PB) a Benjamin Constant (AM), quase na fronteira do Brasil com o Peru.
Porém, a Transamazônica não cumpriu nenhuma das suas promessas – o que deveria integrar a Amazônia ao resto do país acabou virando um dos símbolos do fracasso estratégico do regime militar. O projeto não levava em consideração as condições do ambiente amazônico, repetindo os mesmos erros cometidos no começo do século XX pelos construtores da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Malária e outras doenças tropicais eram muito comuns nos canteiros de obras isolados no decorrer da rodovia. As obras também não dialogavam com as necessidades de comunidades que já existiam na região: como todo grande empreendimento na Amazônia no século XX, os moradores locais pouco se beneficiaram com os investimentos feitos, já que as decisões eram tomadas em Brasília sem nenhum diálogo preliminar. Pelo contrário, a estrada trouxe especulação fundiária, agravando conflitos por terra e facilitando o avanço do desmatamento na região amazônica.
Os custos da obra foram muito maiores que o dimensionado, impedindo a sua finalização, especialmente no trecho amazônico: sem asfalto, a estrada fica totalmente inviabilizada em dias chuvosos. No final das contas, recursos econômicos e humanos foram desperdiçados pelo governo, e a Transamazônica ainda permanece sendo o exemplo mais notável da falta de planejamento do regime militar.
Em termos de impacto urbano, o Elevado Costa e Silva é a cicatriz mais notável do período ditatorial. Construído entre 1970 e 1971 pelo então prefeito biônico de São Paulo, Paulo Maluf, o Elevado aproveitava um projeto da gestão Faria Lima para construir uma via elevada sobre a Avenida São João, uma das vias mais tradicionais e congestionadas da capital paulista. Construído em tempo recorde (apenas 11 meses), o Elevado ganhou o nome do marechal Artur da Costa e Silva, um dos principais artífices do golpe militar e antecessor de Médici na presidência – além de responsável direto pelo Ato Institucional nº 5, talvez o documento mais infame da história do Brasil.
Obra-prima da tecnocracia fria e pesadelo de qualquer arquiteto e urbanista, o Minhocão alimenta críticas ácidas até hoje. Quem mora em São Paulo ou já esteve na região central sabe o quanto o famigerado Minhocão contribuiu para a decadência local. Mesmo sendo uma via arterial importante para o centro de SP, o Minhocão está a apenas cinco metros de distância das janelas de apartamentos residenciais e comerciais ao longo da Avenida São João. Nos horários de pico, a vista é uma das piores possíveis: carros e mais carros, um festival de poluição sonora e atmosférica. Coberta pelo elevado, a Avenida São João tornou-se ponto de prostituição, subemprego e violência.
Desde os anos 1990, a prefeitura tenta implementar medidas que vão desde a interdição da via em horários e dias específicos até o seu uso recreativo durante os finais de semana. A gestão Kassab apresentou algumas propostas para transformar o Minhocão num tipo de parque elevado, ao estilo do High Line de Nova York. Porém, as barreiras são muitas: numa cidade que ainda se orienta pelo modal automotivo, eliminar uma via movimentada não é tarefa simples, muito menos barata. Enquanto isso, o Minhocão continua firme, irritando os paulistanos e assombrando os administradores municipais.
Finalmente, outra cicatriz deixada pelos generais-presidentes foi a construção das usinas nucleares de Angra. Como a Transamazônica, as usinas de Angra 1 e 2 foram um poço de recursos financeiros gastos sem nenhum critério ou planejamento específico. Como o Minhocão, elas representam a completa ausência de diálogo político, sendo fruto simples da decisão de um grupo fechado de pessoas.
O programa nuclear brasileiro começou de fato no final dos anos 1960 e começo dos 1970, curiosamente na mesma época em que começava a surgir nos Estados Unidos e na Europa um movimento civil de crítica ao modelo energético nuclear. Em 1971, o governo Médici concluiu a compra do primeiro reator junto aos Estados Unidos, mas foram as crises internacionais do petróleo que levaram o país a apostar energicamente no programa nuclear. Quatro anos depois, Ernesto Geisel conduziu e fechou um acordo nuclear com a antiga Alemanha Ocidental (por ironia, um dos primeiros países a assistir uma oposição civil mais resistente à energia nuclear) para a compra de outros dez reatores, além da transferência de tecnologia alemã para o Brasil.
Novamente, a falta de planejamento realista tornou a execução do programa nuclear um dos grandes fiascos do regime militar. A primeira usina nuclear, Angra I, com o reator comprado em 1971, somente entrou em funcionamento 15 anos depois, já durante o governo José Sarney. Angra II, a segunda usina do programa nacional, construída com tecnologia alemã, foi concluída apenas em 2002, no final do governo Fernando Henrique Cardoso. A terceira usina anunciada pelo programa nuclear somente começou a sair do papel no final dos anos 2000, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva.
Altos custos financeiros, demora prolongada na execução dos projetos, e produção energética ainda aquém do esperado são apenas alguns dos problemas associados à operação dessas usinas. Questões de segurança, como o manuseio futuro dos resíduos dos reatores (o famoso lixo nuclear) e a proteção da população civil em caso de vazamento, ainda preocupam especialistas, políticos e sociedade civil, especialmente após o acidente nuclear de Fukushima (Japão) em 2011.
Essas três cicatrizes dizem muito sobre a natureza daquele período político e se relacionam diretamente com as outras cicatrizes deixadas pelos monstros dos porões da ditadura. Nascido sob a luz da Guerra Fria, dos preconceitos do empresariado paulista e carioca e dos pendores intervencionistas das Forças Armadas, o regime civil-militar instalado em 1964 não admitia o contraditório. Qualquer tipo de oposição era sufocado, tanto no sentido figurado quanto no literal. Na mesma medida em que as liberdades civis eram cassadas, os “inimigos” do Estado brasileiro eram caçados na cidade, no interior, no meio da floresta, no exterior, nas letras de música, nas redações de jornais e revistas, na televisão…
Sem oposição, aqueles que subiram a rampa do Planalto procuraram formas de se manter no poder, e na visão tecnocrata que assumiu o país naquela época, manter-se no poder dependia diretamente do crescimento da economia brasileira.
O desenvolvimento econômico a todo custo substituiu a legitimidade democrática no sustento político do regime; assim, o desenvolvimentismo não apenas estava na agenda política dos generais-presidentes: ele era a ordem do dia, todos os dias. Como em toda corporação militar, uma ordem precisa ser cumprida – e num contexto de conflito (ainda que imaginário, já que os opositores armados eram ínfimos quando comparados com as forças do regime), ela deve ser cumprida de qualquer forma.
Assim, rios de dinheiro foram torrados em obras faraônicas e projetos ambiciosos sem se preocupar com o retorno realista desses investimentos e sem qualquer diálogo com a população. O tempo mostrou o quanto o projeto político-econômico do regime estava fadado invariavelmente ao fracasso. Olhando para o presente, a dúvida que fica em mim é se aprendemos algo com tudo isso…
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Poucos períodos da nossa história deixaram tantas “cicatrizes” no país como a ditadura civil-militar iniciada em 1964, há exatos 50 anos. Para muitos, essas cicatrizes são pessoais, impregnadas em sua pele, carne e/ou alma. Para outros, elas estão naqueles em que não estão mais presente entre nós – os desaparecidos (como Stuart Angel Jones e muitos dos guerrilheiros do Araguaia) e os “suicidas” (como Vladimir Herzog), por exemplo. Para a política e a economia brasileira, mesmo com as diversas reformas econômicas e a Constituição de 1988, a ditadura ainda se faz presente pelas condições político-econômicas que ainda persistem. Assim, mesmo que esse período esteja começando a fazer a transição da memória das pessoas para os livros de História, os governos dos generais-presidentes não são, nem de longe, episódios superados: muito do que a gente vive advém das opções políticas, econômicas e sociais feitas no período de exceção democrática.
Aproveitando esse momento especial de memória dos 50 anos da queda de Goulart e do início do regime militar, gostaria de lembrar aqui três cicatrizes físicas que persistem em lugares completamente diferentes: a BR-230, a famigerada Rodovia Transamazônica; o Elevado Presidente Costa e Silva, o polêmico Minhocão; e as usinas nucleares instaladas na região de Angra dos Reis/RJ. Cada uma dessas cicatrizes mostra, ao seu modo, como os tecnocratas e os militares que administraram o país por duas décadas não tinham uma noção realista nem um projeto viável de longo prazo. Cada uma delas nos traz à mente o quanto as opções e decisões políticas de um governo podem influenciar o debate político e a realidade social por décadas. Elas somente poderiam ter saído do papel num cenário em que a discussão política estava interditada, em que o contraditório não existia.
Em extensão, a mais famosa cicatriz é a Transamazônica. Suas obras foram iniciadas em 1969, por ordens do então presidente Emílio Garrastazu Médici, com o propósito de ligar o Nordeste ao Norte do país. Essa ideia mascarava um objetivo bastante importante para os governantes militares: redirecionar a migração nordestina do Sudeste para o Norte, alimentado assim a ocupação humana da fronteira amazônica, estratégica para o governo federal. A ocupação seria feita a partir do modelo de agrovilas, num projeto que ligava originalmente João Pessoa (PB) a Benjamin Constant (AM), quase na fronteira do Brasil com o Peru.
Porém, a Transamazônica não cumpriu nenhuma das suas promessas – o que deveria integrar a Amazônia ao resto do país acabou virando um dos símbolos do fracasso estratégico do regime militar. O projeto não levava em consideração as condições do ambiente amazônico, repetindo os mesmos erros cometidos no começo do século XX pelos construtores da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Malária e outras doenças tropicais eram muito comuns nos canteiros de obras isolados no decorrer da rodovia. As obras também não dialogavam com as necessidades de comunidades que já existiam na região: como todo grande empreendimento na Amazônia no século XX, os moradores locais pouco se beneficiaram com os investimentos feitos, já que as decisões eram tomadas em Brasília sem nenhum diálogo preliminar. Pelo contrário, a estrada trouxe especulação fundiária, agravando conflitos por terra e facilitando o avanço do desmatamento na região amazônica.
Os custos da obra foram muito maiores que o dimensionado, impedindo a sua finalização, especialmente no trecho amazônico: sem asfalto, a estrada fica totalmente inviabilizada em dias chuvosos. No final das contas, recursos econômicos e humanos foram desperdiçados pelo governo, e a Transamazônica ainda permanece sendo o exemplo mais notável da falta de planejamento do regime militar.
Em termos de impacto urbano, o Elevado Costa e Silva é a cicatriz mais notável do período ditatorial. Construído entre 1970 e 1971 pelo então prefeito biônico de São Paulo, Paulo Maluf, o Elevado aproveitava um projeto da gestão Faria Lima para construir uma via elevada sobre a Avenida São João, uma das vias mais tradicionais e congestionadas da capital paulista. Construído em tempo recorde (apenas 11 meses), o Elevado ganhou o nome do marechal Artur da Costa e Silva, um dos principais artífices do golpe militar e antecessor de Médici na presidência – além de responsável direto pelo Ato Institucional nº 5, talvez o documento mais infame da história do Brasil.
Obra-prima da tecnocracia fria e pesadelo de qualquer arquiteto e urbanista, o Minhocão alimenta críticas ácidas até hoje. Quem mora em São Paulo ou já esteve na região central sabe o quanto o famigerado Minhocão contribuiu para a decadência local. Mesmo sendo uma via arterial importante para o centro de SP, o Minhocão está a apenas cinco metros de distância das janelas de apartamentos residenciais e comerciais ao longo da Avenida São João. Nos horários de pico, a vista é uma das piores possíveis: carros e mais carros, um festival de poluição sonora e atmosférica. Coberta pelo elevado, a Avenida São João tornou-se ponto de prostituição, subemprego e violência.
Desde os anos 1990, a prefeitura tenta implementar medidas que vão desde a interdição da via em horários e dias específicos até o seu uso recreativo durante os finais de semana. A gestão Kassab apresentou algumas propostas para transformar o Minhocão num tipo de parque elevado, ao estilo do High Line de Nova York. Porém, as barreiras são muitas: numa cidade que ainda se orienta pelo modal automotivo, eliminar uma via movimentada não é tarefa simples, muito menos barata. Enquanto isso, o Minhocão continua firme, irritando os paulistanos e assombrando os administradores municipais.
Finalmente, outra cicatriz deixada pelos generais-presidentes foi a construção das usinas nucleares de Angra. Como a Transamazônica, as usinas de Angra 1 e 2 foram um poço de recursos financeiros gastos sem nenhum critério ou planejamento específico. Como o Minhocão, elas representam a completa ausência de diálogo político, sendo fruto simples da decisão de um grupo fechado de pessoas.
O programa nuclear brasileiro começou de fato no final dos anos 1960 e começo dos 1970, curiosamente na mesma época em que começava a surgir nos Estados Unidos e na Europa um movimento civil de crítica ao modelo energético nuclear. Em 1971, o governo Médici concluiu a compra do primeiro reator junto aos Estados Unidos, mas foram as crises internacionais do petróleo que levaram o país a apostar energicamente no programa nuclear. Quatro anos depois, Ernesto Geisel conduziu e fechou um acordo nuclear com a antiga Alemanha Ocidental (por ironia, um dos primeiros países a assistir uma oposição civil mais resistente à energia nuclear) para a compra de outros dez reatores, além da transferência de tecnologia alemã para o Brasil.
Novamente, a falta de planejamento realista tornou a execução do programa nuclear um dos grandes fiascos do regime militar. A primeira usina nuclear, Angra I, com o reator comprado em 1971, somente entrou em funcionamento 15 anos depois, já durante o governo José Sarney. Angra II, a segunda usina do programa nacional, construída com tecnologia alemã, foi concluída apenas em 2002, no final do governo Fernando Henrique Cardoso. A terceira usina anunciada pelo programa nuclear somente começou a sair do papel no final dos anos 2000, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva.
Altos custos financeiros, demora prolongada na execução dos projetos, e produção energética ainda aquém do esperado são apenas alguns dos problemas associados à operação dessas usinas. Questões de segurança, como o manuseio futuro dos resíduos dos reatores (o famoso lixo nuclear) e a proteção da população civil em caso de vazamento, ainda preocupam especialistas, políticos e sociedade civil, especialmente após o acidente nuclear de Fukushima (Japão) em 2011.
Essas três cicatrizes dizem muito sobre a natureza daquele período político e se relacionam diretamente com as outras cicatrizes deixadas pelos monstros dos porões da ditadura. Nascido sob a luz da Guerra Fria, dos preconceitos do empresariado paulista e carioca e dos pendores intervencionistas das Forças Armadas, o regime civil-militar instalado em 1964 não admitia o contraditório. Qualquer tipo de oposição era sufocado, tanto no sentido figurado quanto no literal. Na mesma medida em que as liberdades civis eram cassadas, os “inimigos” do Estado brasileiro eram caçados na cidade, no interior, no meio da floresta, no exterior, nas letras de música, nas redações de jornais e revistas, na televisão…
Sem oposição, aqueles que subiram a rampa do Planalto procuraram formas de se manter no poder, e na visão tecnocrata que assumiu o país naquela época, manter-se no poder dependia diretamente do crescimento da economia brasileira.
O desenvolvimento econômico a todo custo substituiu a legitimidade democrática no sustento político do regime; assim, o desenvolvimentismo não apenas estava na agenda política dos generais-presidentes: ele era a ordem do dia, todos os dias. Como em toda corporação militar, uma ordem precisa ser cumprida – e num contexto de conflito (ainda que imaginário, já que os opositores armados eram ínfimos quando comparados com as forças do regime), ela deve ser cumprida de qualquer forma.
Assim, rios de dinheiro foram torrados em obras faraônicas e projetos ambiciosos sem se preocupar com o retorno realista desses investimentos e sem qualquer diálogo com a população. O tempo mostrou o quanto o projeto político-econômico do regime estava fadado invariavelmente ao fracasso. Olhando para o presente, a dúvida que fica em mim é se aprendemos algo com tudo isso…
Bruno Toledo