Com fartura de água, o Brasil vivia em um confortável microcosmo em relação à boa parte do mundo, mas agora seus principais polos de desenvolvimento vivenciam problemas típicos de países semiáridos
A cultura da abundância resulta invariavelmente em desperdício. O desperdício, em colapso. E o colapso, quando somado à mudança climática, chega sem avisar. A região Centro-Sul, o maior polo do desenvolvimento econômico brasileiro, apesar de irrigada por uma das maiores redes de drenagem de água doce do mundo, está se transformando em uma ilha de estresse hídrico, algo que pouca gente podia imaginar até anos atrás. São Paulo, Paraná e Minas Gerais ainda não experimentam um movimento de êxodo industrial ou rural por questões hídricas, mas falta pouco. Já existe, por exemplo, disputa por água de boa qualidade em alguns segmentos, como o de bebidas, no interior de São Paulo.
“Eu não diria que os negócios estejam sendo afetados, mas água já faz parte dos itens que compõem o checklist da escolha da região onde as grandes empresas vão investir”, afirma Ricardo Rolim, diretor de relações socioambientais da Ambev. Se antes só se levava em conta a qualidade da mão de obra, os incentivos fiscais e a distância do polo consumidor, hoje a água também é item determinante do planejamento estratégico. “A bacia tem de dar segurança de que o negócio que se vai montar durará 100 anos”, observa Rolim.
Água em quantidade necessária, no momento certo e na qualidade adequada, é o principal vetor de desenvolvimento econômico. Por isso, Artur Paiva, integrante do Programa Água para a Vida do WWF-Brasil, alerta para o fato de que as pequenas e microempresas instaladas nas bacias dos rios Tietê, Paraná e Doce estão muito vulneráveis. “Nem sempre com acesso ao crédito, muitas não conseguem implementar sistemas de ecoeficiência, como o reúso, tampouco contam com um eventual plano de fuga”, adverte.
Coincidentemente, a situação do abastecimento brasileiro expressa a precisão do último Fórum Econômico Mundial (em janeiro, em Davos), cujo relatório classificou a crise da água como o terceiro maior risco global de alto impacto e alta probabilidade, perdendo apenas para crises fiscais e de emprego. “Devido à importância sistêmica da água para a atividade econômica global, eventuais falhas de um país em planejamento, gestão e utilização podem se propagar por todo o mundo”, alertou o relatório, sem supor que o Brasil também vestiria a carapuça.
Veja a seguir exemplos que afetam – para o bem e para o mal – a produtividade das nossas bacias hidrográficas.
ÁGUA DE REÚSO
Segundo Gesner de Oliveira, que comandou a Sabesp entre 2007 e 2010 e hoje é diretor da consultoria GO Associados, atividades como papel e celulose, siderurgia e mineração poderiam usar apenas água de reúso, já que seus processos produtivos não exigem um grau de pureza comparável ao da água para o consumo humano que sai das torneiras. Mas como explicar o fato de as indústrias brasileiras usarem em seus processos produtivos não mais do que 1% de água de reúso, enquanto na árida Israel conseguiu-se alavancar esse índice no abastecimento industrial a 80%?
O Aquapolo, um projeto da Sabesp em parceria com a Odebrecht, é a maior iniciativa brasileira de água de reúso para fins industriais, lançada em 2012, com capacidade para produzir até mil litros por segundo – a economia que proporciona equivale a um volume suficiente para abastecer uma cidade de 300 mil habitantes. A água de reúso vem sendo absorvida pelo Polo Petroquímico de Capuava, no ABC Paulista. A petroquímica Braskem, maior cliente dessa água, afirma ter deixado de utilizar 6,5 bilhões de litros de água potável por ano.
Entusiasmados com o bom resultado do Aquapolo, o Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, decidiu criar o projeto Água Viva no mesmo formato, uma parceria entre a própria Braskem e a Cetrel, empresa responsável pelo tratamento e disposição final dos efluentes e resíduos industriais na região. Com esse projeto, de R$ 20 milhões, a Braskem quer reduzir a demanda de água potável em 4 bilhões de litros por ano. A Votorantim Metais também está se engajando em projetos de reúso de água e divulgou a meta de recircular 100% da água utilizada nos processos de todas as suas unidades até 2020.
SANEAMENTO
Enquanto grandes empresas trazem para si responsabilidades para aliviar o estresse hídrico e uma parcela da população faz a sua parte fechando as torneiras, o País avança em ritmo lento em seu propósito de universalização do saneamento até 2030. Segundo estudo realizado pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), o crescimento médio anual do saneamento caiu de 4,6% ao ano nos anos 2000 para 4,1% ao ano na atual década. O Brasil é a 7ª economia mundial, mas o índice brasileiro em saneamento está abaixo do de alguns países do Norte da África e do Oriente Médio com renda per capita média inferior à do Brasil.
No que se refere a saneamento, a presidente do Cebds, Marina Grossi, crê que a maioria das empresas está muito voltada para dentro de seus próprios muros e ainda prevalece a ideia de que isso é tarefa do governo. “O não saneamento contamina as águas, e as empresas têm de buscá-las cada vez mais profundamente, o que aumenta os custos e escasseia o produto de qualidade”, afirma. Para ela, seria importante se as empresas passassem a incluir o saneamento das regiões do entorno de suas unidades em seus projetos de sustentabilidade.
IRRIGAÇÃO E ÁGUA VIRTUAL
Na média nacional, de toda a água doce consumida, aproximadamente 70% vão para a agricultura, 20% para a indústria e 10% para o uso urbano (esses números mudam em regiões urbanas muito adensadas como São Paulo). Há muito desperdício durante a irrigação por aspersão, sobretudo, por causa da evaporação. Mas também se vê muita eficiência nos campos brasileiros. Preocupada com o melhor aproveitamento da água na agricultura, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) vem trabalhando há anos no melhoramento e adaptação de espécies mais resistentes ao déficit hídrico.
Toda a água aproveitada nas lavouras e nas pastagens, seja proveniente de irrigação, seja de precipitação, é transformada em alimento. Para crescerem, os grãos de arroz, por exemplo, precisam absorver grandes quantidades de água, que se perdem nos processos de evapotranspiração. Mas, quando o grão é exportado, o custo dessa água está embutido no preço? “Não, o país importador não faz ideia de quanta água foi consumida na produção”, afirma Glauco Kimura de Freitas, coordenador do Programa Água para a Vida do WWF-Brasil.
O Brasil é o quarto maior exportador do mundo de água virtual [1] nos produtos e fica atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. Precificar essa água, segundo Freitas, seria uma mudança de paradigma mundial. E existe tecnologia para isso. Aliás, foi dessa metodologia, desenvolvida na Holanda nos anos 2000, que surgiu o conceito da pegada hídrica [2].
[1] Toda a água utilizada na produção de uma determinada mercadoria, seja do agronegócio, seja manufaturada, medida na cadeia de valor como um todo. Inclui também a água poluída no processo de produção.
[2] Indicador do volume de água doce usada no consumo e na produção em determinada região. Mais no site Pegada Hídrica.
DESPERDÍCIO
O cenário brasileiro de perdas de água e eficiência energética no setor de saneamento é bastante problemático. A média brasileira de perdas de água é de aproximadamente 40%. Em algumas empresas de saneamento, supera 60%. Esse dado é do estudo Manual sobre Contratos de Performance e Eficiência para Empresas de Saneamento, de 2013, resultado de uma parceria do governo espanhol, da GO Associados e do International Finance Corporation (IFC), órgão ligado ao Banco Mundial.
EMPRESAS E PRODUTIVIDADE
Para compensar a negligência das companhias de abastecimento em relação ao combate do desperdício, algumas empresas privadas aproveitaram a Semana Mundial da Água, em março, para divulgar seus cases de redução de consumo.
A Ambev está na liderança mundial em produtividade no uso da água para fabricação de cerveja. Em 2012 já gastava apenas 3,5 litros de água para produzir 1 litro da bebida, contra uma média mundial de 4,5 litros. Pelo menos dez de suas fábricas já trabalham com média de 3,2 litros de água. A referência mundial das cervejarias é atingir 4,2 litros de água por litro de cerveja até 2020.
Já a Coca-Cola adotou a estratégia dos 3R: Reduzir (dos atuais 1,91 para 1,5 por litro de água para 1 litro de refrigerante, incluindo a água usada na fabricação da embalagem); Repor (devolver à natureza 100% tratada a água usada em seu processo produtivo); e Reciclar (estar em conformidade com os parâmetros de tratamento de efluentes).
BANCOS
Em parceria com o WWF, o Banco do Brasil trabalha desde 2010 pela melhoria da qualidade das águas e ampliação da cobertura da vegetação natural em 14 microbacias hidrográficas representativas dos biomas brasileiros. O projeto Água Brasil, que pretende envolver agricultores das várias regiões, surgiu como opção de posicionamento no desenvolvimento sustentável, uma vez que o banco é o maior agente financeiro do agronegócio no País.
Também em parceria com o WWF, o projeto HSBC pela Água trabalha pela conservação e recuperação das bacias formadoras do bioma Pantanal. O projeto faz parte de um investimento global de US$ 100 milhões, entre 2012 e 2016, para proteger bacias hidrográficas importantes ao redor do mundo.
Leia mais:
O que podemos aprender com a atual crise de abastecimento, em “Nó em pingo d’água“
A difícil relação da população urbana com seus rios, em “Os lados do rio“
Em que pontos a gestão pública pode ter errado, em “A pedagogia da crise“
Como usar melhor o recurso natural mais precioso, em “Saídas possíveis“
Tecnologias simples e baratas que fazem a diferença em regiões áridas, em “Tecnologias ancestrais“