A visita a um abatedouro de Chicago inspirou Henry Ford a revolucionar a indústria automobilística com a introdução da linha de montagem. Na carne empacotada em ritmo constante, escreveu Ford em sua autobiografia, era possível vislumbrar um processo produtivo mais eficiente, em que o trabalho fosse simplificado. O relato ilustra um paralelismo entre a maneira como o ser humano organiza seu processo produtivo e a forma como lida com os animais. Mas o paralelo não começa com a industrialização. Das sociedades caçadoras do Paleolítico aos organismos geneticamente modificados, o vínculo do homem com a fauna evoluiu pari passu com a organização de sua própria vida.
“No século XVIII, juntamente com a industrialização, acontece uma grande mudança de atitude em relação ao mundo natural, particularmente aos animais”, afirma o antropólogo Caetano Sordi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O desenvolvimento da indústria provoca a redução dos espaços naturais, a intensificação da produção animal e a expansão da agricultura, segundo o antropólogo, que cita o livro O Homem e o Mundo Natural, do historiador britânico Keith Thomas. O movimento de direitos animais começa a surgir como reação a esses fenômenos.
“A violência que incide sobre os corpos animais provoca uma reação ética quase instantânea”, diz Sordi, de modo que não é coincidência o movimento pelos direitos animais ser contemporâneo do feminismo e do socialismo, na era vitoriana. “Naquele momento, surgiram as analogias entre a pecuária intensiva e as condições de trabalho”, conclui.
“Passa-se de um modo artesanal de produção, que envolvia uma relação subjetiva com os animais, para uma relação cada vez mais de objeto, recurso, mercadoria.” Esse longo desenvolvimento histórico desemboca no momento de inspiração vivido por Henry Ford.
NARRATIVAS MITOLÓGICAS
Uma enorme proximidade entre humanos e não humanos é quase constante na História. Nas pinturas rupestres da Caverna de Chauvet [1], na França, feitas há 35 mil anos, a figura humana quase não aparece: são representados bisões, leões, antílopes e mamutes (foto).
[1] Mais no filme A Caverna dos Sonhos Esquecidos, de Werner Herzog
Na divisão dos clãs de sociedades totêmicas, espécies da fauna emprestam seus nomes à maioria das famílias. Nas grandes narrativas mitológicas do mundo, a transformação de homens em animais e vice-versa é um acontecimento quase corriqueiro, intermediada por deuses que tampouco demonstram restrições em assumir formas animais. A arrogância da bordadeira Aracné, que se considerava superior à deusa Atena, é punida com a transformação em aranha. Zeus assume a forma de touro para raptar a bela Europa. O caçador Acteão, transfigurado em cervo, é caçado por seus próprios cães depois de ver a nudez da deusa Artemis. Nas fábulas de Esopo e mesmo de La Fontaine, a voz dos animais expressa verdades atemporais, que não variam com a contingência da história humana.
“Com o desenvolver da civilização, o homem começa a se ver como exterior ao circuito da predação”, diz Sordi. “É como se estivéssemos no topo da cadeia alimentar. Um predador universal.” No pensamento ocidental, a concepção arraigada do homem é como alguém que usa a natureza, mas não faz realmente parte dela. Ao contrário, sociedades caçadoras, como muitas na Amazônia, que recorrem aos animais como fonte de proteínas, são predadores de macacos e capivaras, mas reconhecem que são também presas para onças e jaguatiricas.
“O resultado é uma ética da caça, em que o caçador às vezes tem de ficar alguns dias isolado depois de matar um animal, ou em que uma tribo toma para criar os filhotes da espécie caçada”, relata o antropólogo. Para muitos estudiosos, esse gesto remete a uma retribuição simbólica e espiritual dos homens aos animais. Outros consideram que se trata de um meio de incorporar a potência do espírito do animal do qual se alimenta.
Hoje, o movimento por direitos de animais muitas vezes se confunde com uma defesa da renúncia de se alimentar de carne, mas mesmo essa ideia pode ser fruto do modo de produção contemporâneo. “Há uma ideia disseminada de que, quanto mais reconheço o animal como sujeito, menos me sinto à vontade em consumi-lo. Ou seja, consumimos as vacas, ovelhas e porcos porque conseguimos objetivá-los e retirar qualquer tipo de empatia”, diz Sordi. “Mas houve, até no Ocidente, por muito tempo, a ideia do animal como sujeito, e isso não era um imperativo moral que impedia o consumo daquele animal. Aquilo impunha moderação, respeito e ética.”
“No meu entender, alimentar-se de outros animais não é algo nocivo em si. Depende da forma como são criados e de como esse recurso é apropriado pela sociedade”, diz o antropólogo. “Temos de olhar o tipo de relação que se estabelece com o animal que será consumido. E me parece que o principal problema é o sistema industrial, não só nos efeitos sobre os animais, mas sobre os próprios humanos que trabalham com a produção de carne”, conclui. Notificações por insalubridade no trabalho são comuns no setor de frigoríficos (leia mais sobre alimentação em “O pão nosso”).
PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA
O sociólogo Henrique Duval, da Unicamp, explicita a ruptura radical na relação entre homem e animal quando passa da produção local para a lógica da produção em massa. Estudioso de assentamentos rurais de São Paulo, Duval observou uma profunda diferença na ação de assentados quando produzem frangos para grandes frigoríficos ou para si próprios.
“Quando se cria um frango no quintal doméstico, ele tem, além de determinadas funções no sistema agrícola, outra significação para a pessoa que consumirá a carne, bem diferente daquele frango que é produzido para uma indústria beneficiar e vender em grande escala”, afirma. O frango doméstico muitas vezes tem nome, vive em razoável liberdade, pode ciscar à vontade, alimenta-se de insetos e milho verdadeiro, cria seus filhotes, convive com outros animais e seres humanos. Antes de ser abatido, vive cerca de seis meses. “Mas o mais importante é que ele vive de verdade”, diz o pesquisador, citando o caso de uma família que deixou de usar um tanque porque uma galinha tinha escolhido aquele como seu lugar de predileção.
Já o frango do frigorífico tem um ciclo de vida de cerca de 45 dias antes do abate e não se pode dizer que vive de verdade. Passa os dias comendo ração, fica confinado e submetido a uma climatização controlada. Ao fim, é morto em série, degolado ou eletrocutado. “A liberdade do frango é privada no viver e no se alimentar. Ele come o tempo todo para engordar, para ser abatido no tempo certo, com o menor custo possível para a indústria”, diz Duval. “Também é uma privação de liberdade para o homem, que não pode ter outras aves no seu sítio, está submetido a rigorosos controles de qualidade e, no fim, dificilmente consegue lucro.”
ESTATUTO JURÍDICO
Em abril, o Parlamento francês modificou a definição jurídica dos animais no Código Civil daquele país. De “bens móveis”, os animais passaram a “seres dotados de sensibilidade”. Para Sordi, a mudança é especialmente notável, por ocorrer em um país de tradição jurídica romana. “Na tradição anglo-saxã, fortemente inspirada no utilitarismo, é mais fácil passar a encarar o animal como um ser que tem interesse em não sofrer”, afirma o antropólogo.
Sordi explica que a tradição jurídica romano- germânica divide o mundo entre pessoas e coisas, de modo que algo, para ser classificado, tem de entrar em uma dessas categorias. Os animais sempre entraram na categoria de coisas, ainda que “semoventes” [2]. Também é assim no Brasil. Já na origem dessa tradição, encontra-se uma hierarquia de formas jurídicas que aproximam os animais de produção (por oposição a fauna selvagem) aos escravos. Enquanto estes últimos eram instrumentos de gênero vocal, isto é, que falam, os animais eram considerados “instrumentos semivocais”: eles quase falavam.
[2] Na lei, os animais são bens semoventes, isto é, nem móveis nem imóveis. Podem ser objetos de transação, mas, tendo vida própria, também podem ausentar-se e morrer
Para Jean Segata, antropólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a resolução francesa é um “grande feito em termos de ética animal”, no contexto de debates animalistas que vêm ganhando corpo desde os anos 1960. Por um lado, Segata estima que a decisão possa ser um primeiro passo de algo maior: “respeito à vida, e não apenas a certas formas sensíveis”. Como consequência, seria possível imaginar, no futuro, “uma outra dinâmica relacional com os viventes do planeta”. Mas o antropólogo mantém-se cauteloso, porque a proteção dos animais se refere, por um lado, àqueles mais próximos dos humanos (animais de criação); por outro, aos mais distantes: animais em extinção. “Preocupam-me os liminares, que vivem naqueles campos de concentração, chamados de granjas de confinamento, por exemplo”, diz.
Segata é um estudioso de animais domésticos, que atravessam um processo de “humanização”, nas palavras do pesquisador. “Não se trata só de supostamente compartilhar alguns atributos morais, como tristeza e alegria, ou mesmo coisas ‘culturais’, como roupas, casa e comida”, diz. “Quando se usam tecnologias biomédicas para diagnóstico e tratamento de certos males, com funcionamentos similares, temos uma equivalência biológica: aproximados pela animalidade.” Entre os fenômenos recentes estudados por Segata estão diagnósticos de depressão em cães e exames de colesterol em gatos (leia mais sobre pets em “O mercado da afeição”).
A domesticação afetiva é um fenômeno recente, diz o pesquisador, que pode ser vinculado à urbanização e à Revolução Industrial. “A domesticação até o século XIX estava ligada à ideia de utilidade: alimento, tração, guarda”, explica, citando cães, gatos, galinhas, vacas, cavalos. “Até chegarmos àqueles de estimação, temos mais um caminho, em geral associado ao desenvolvimento das metrópoles”, completa. Assim como a relação com os animais para consumo e alimentação acompanha a evolução do sistema produtivo, a relação com bichos de estimação também é influenciada pelos modos de vida dos humanos.
SOMOS TODOS MACACOS?
Em Deux Leçons Sur l’animal et l’homme (ou Duas Lições Sobre o Animal e o Homem), o filósofo Gilbert Simondon traça um panorama histórico desses dois conceitos no pensamento ocidental. Simondon delimita as diferentes questões que aparecem: primeiro, se existe uma continuidade ou uma diferença essencial entre homem e animal; em seguida, se for identificada essa diferença, cabe perguntar se ela implica um isolamento do homem em relação à natureza, à qual pertencem os animais.Por outro lado, Simondon mostra que, para alguns filósofos que sustentaram existir tal diferença, há aqueles para os quais a superioridade humana é uma falácia: Giordano Bruno e Montaigne, por exemplo, chegam a defender a superioridade do animal. Na filosofia antiga, havia aqueles que consideravam o homem superior, porque seria um animal melhorado; já em Platão, no diálogo Timeu, o animal era uma degradação do homem. Por fim, houve filósofos que, afirmando a homogeneidade entre homem e animal, estimaram que o animal deveria ser estudado a partir de suas diferenças em relação ao homem. Mas a perspectiva que triunfou foi a oposta, o homem sendo estudado a partir da base de animalidade.
Os dois autores mais representativos do papel do animal na filosofia ocidental são Aristóteles e René Descartes. Em Sobre a Alma, Aristóteles descreve uma hierarquia de seres vivos relacionada à complexidade de suas funções vitais: nutrição, reprodução, sensação, movimento, intelecto. Já Descartes, com sua ruptura radical entre a substância física e o pensamento, abriu o caminho para que a vida animal fosse pensada como algo puramente mecânico. Aos seguidores de Descartes é atribuído o pensamento arraigado no Ocidente de que o animal é um ser desprovido de interioridade.
[:en]
A visita a um abatedouro de Chicago inspirou Henry Ford a revolucionar a indústria automobilística com a introdução da linha de montagem. Na carne empacotada em ritmo constante, escreveu Ford em sua autobiografia, era possível vislumbrar um processo produtivo mais eficiente, em que o trabalho fosse simplificado. O relato ilustra um paralelismo entre a maneira como o ser humano organiza seu processo produtivo e a forma como lida com os animais. Mas o paralelo não começa com a industrialização. Das sociedades caçadoras do Paleolítico aos organismos geneticamente modificados, o vínculo do homem com a fauna evoluiu pari passu com a organização de sua própria vida.
“No século XVIII, juntamente com a industrialização, acontece uma grande mudança de atitude em relação ao mundo natural, particularmente aos animais”, afirma o antropólogo Caetano Sordi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O desenvolvimento da indústria provoca a redução dos espaços naturais, a intensificação da produção animal e a expansão da agricultura, segundo o antropólogo, que cita o livro O Homem e o Mundo Natural, do historiador britânico Keith Thomas. O movimento de direitos animais começa a surgir como reação a esses fenômenos.
“A violência que incide sobre os corpos animais provoca uma reação ética quase instantânea”, diz Sordi, de modo que não é coincidência o movimento pelos direitos animais ser contemporâneo do feminismo e do socialismo, na era vitoriana. “Naquele momento, surgiram as analogias entre a pecuária intensiva e as condições de trabalho”, conclui.
“Passa-se de um modo artesanal de produção, que envolvia uma relação subjetiva com os animais, para uma relação cada vez mais de objeto, recurso, mercadoria.” Esse longo desenvolvimento histórico desemboca no momento de inspiração vivido por Henry Ford.
NARRATIVAS MITOLÓGICAS
Uma enorme proximidade entre humanos e não humanos é quase constante na História. Nas pinturas rupestres da Caverna de Chauvet [1], na França, feitas há 35 mil anos, a figura humana quase não aparece: são representados bisões, leões, antílopes e mamutes (foto).
[1] Mais no filme A Caverna dos Sonhos Esquecidos, de Werner Herzog
Na divisão dos clãs de sociedades totêmicas, espécies da fauna emprestam seus nomes à maioria das famílias. Nas grandes narrativas mitológicas do mundo, a transformação de homens em animais e vice-versa é um acontecimento quase corriqueiro, intermediada por deuses que tampouco demonstram restrições em assumir formas animais. A arrogância da bordadeira Aracné, que se considerava superior à deusa Atena, é punida com a transformação em aranha. Zeus assume a forma de touro para raptar a bela Europa. O caçador Acteão, transfigurado em cervo, é caçado por seus próprios cães depois de ver a nudez da deusa Artemis. Nas fábulas de Esopo e mesmo de La Fontaine, a voz dos animais expressa verdades atemporais, que não variam com a contingência da história humana.
“Com o desenvolver da civilização, o homem começa a se ver como exterior ao circuito da predação”, diz Sordi. “É como se estivéssemos no topo da cadeia alimentar. Um predador universal.” No pensamento ocidental, a concepção arraigada do homem é como alguém que usa a natureza, mas não faz realmente parte dela. Ao contrário, sociedades caçadoras, como muitas na Amazônia, que recorrem aos animais como fonte de proteínas, são predadores de macacos e capivaras, mas reconhecem que são também presas para onças e jaguatiricas.
“O resultado é uma ética da caça, em que o caçador às vezes tem de ficar alguns dias isolado depois de matar um animal, ou em que uma tribo toma para criar os filhotes da espécie caçada”, relata o antropólogo. Para muitos estudiosos, esse gesto remete a uma retribuição simbólica e espiritual dos homens aos animais. Outros consideram que se trata de um meio de incorporar a potência do espírito do animal do qual se alimenta.
Hoje, o movimento por direitos de animais muitas vezes se confunde com uma defesa da renúncia de se alimentar de carne, mas mesmo essa ideia pode ser fruto do modo de produção contemporâneo. “Há uma ideia disseminada de que, quanto mais reconheço o animal como sujeito, menos me sinto à vontade em consumi-lo. Ou seja, consumimos as vacas, ovelhas e porcos porque conseguimos objetivá-los e retirar qualquer tipo de empatia”, diz Sordi. “Mas houve, até no Ocidente, por muito tempo, a ideia do animal como sujeito, e isso não era um imperativo moral que impedia o consumo daquele animal. Aquilo impunha moderação, respeito e ética.”
“No meu entender, alimentar-se de outros animais não é algo nocivo em si. Depende da forma como são criados e de como esse recurso é apropriado pela sociedade”, diz o antropólogo. “Temos de olhar o tipo de relação que se estabelece com o animal que será consumido. E me parece que o principal problema é o sistema industrial, não só nos efeitos sobre os animais, mas sobre os próprios humanos que trabalham com a produção de carne”, conclui. Notificações por insalubridade no trabalho são comuns no setor de frigoríficos (leia mais sobre alimentação em “O pão nosso”).
PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA
O sociólogo Henrique Duval, da Unicamp, explicita a ruptura radical na relação entre homem e animal quando passa da produção local para a lógica da produção em massa. Estudioso de assentamentos rurais de São Paulo, Duval observou uma profunda diferença na ação de assentados quando produzem frangos para grandes frigoríficos ou para si próprios.
“Quando se cria um frango no quintal doméstico, ele tem, além de determinadas funções no sistema agrícola, outra significação para a pessoa que consumirá a carne, bem diferente daquele frango que é produzido para uma indústria beneficiar e vender em grande escala”, afirma. O frango doméstico muitas vezes tem nome, vive em razoável liberdade, pode ciscar à vontade, alimenta-se de insetos e milho verdadeiro, cria seus filhotes, convive com outros animais e seres humanos. Antes de ser abatido, vive cerca de seis meses. “Mas o mais importante é que ele vive de verdade”, diz o pesquisador, citando o caso de uma família que deixou de usar um tanque porque uma galinha tinha escolhido aquele como seu lugar de predileção.
Já o frango do frigorífico tem um ciclo de vida de cerca de 45 dias antes do abate e não se pode dizer que vive de verdade. Passa os dias comendo ração, fica confinado e submetido a uma climatização controlada. Ao fim, é morto em série, degolado ou eletrocutado. “A liberdade do frango é privada no viver e no se alimentar. Ele come o tempo todo para engordar, para ser abatido no tempo certo, com o menor custo possível para a indústria”, diz Duval. “Também é uma privação de liberdade para o homem, que não pode ter outras aves no seu sítio, está submetido a rigorosos controles de qualidade e, no fim, dificilmente consegue lucro.”
ESTATUTO JURÍDICO
Em abril, o Parlamento francês modificou a definição jurídica dos animais no Código Civil daquele país. De “bens móveis”, os animais passaram a “seres dotados de sensibilidade”. Para Sordi, a mudança é especialmente notável, por ocorrer em um país de tradição jurídica romana. “Na tradição anglo-saxã, fortemente inspirada no utilitarismo, é mais fácil passar a encarar o animal como um ser que tem interesse em não sofrer”, afirma o antropólogo.
Sordi explica que a tradição jurídica romano- germânica divide o mundo entre pessoas e coisas, de modo que algo, para ser classificado, tem de entrar em uma dessas categorias. Os animais sempre entraram na categoria de coisas, ainda que “semoventes” [2]. Também é assim no Brasil. Já na origem dessa tradição, encontra-se uma hierarquia de formas jurídicas que aproximam os animais de produção (por oposição a fauna selvagem) aos escravos. Enquanto estes últimos eram instrumentos de gênero vocal, isto é, que falam, os animais eram considerados “instrumentos semivocais”: eles quase falavam.
[2] Na lei, os animais são bens semoventes, isto é, nem móveis nem imóveis. Podem ser objetos de transação, mas, tendo vida própria, também podem ausentar-se e morrer
Para Jean Segata, antropólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a resolução francesa é um “grande feito em termos de ética animal”, no contexto de debates animalistas que vêm ganhando corpo desde os anos 1960. Por um lado, Segata estima que a decisão possa ser um primeiro passo de algo maior: “respeito à vida, e não apenas a certas formas sensíveis”. Como consequência, seria possível imaginar, no futuro, “uma outra dinâmica relacional com os viventes do planeta”. Mas o antropólogo mantém-se cauteloso, porque a proteção dos animais se refere, por um lado, àqueles mais próximos dos humanos (animais de criação); por outro, aos mais distantes: animais em extinção. “Preocupam-me os liminares, que vivem naqueles campos de concentração, chamados de granjas de confinamento, por exemplo”, diz.
Segata é um estudioso de animais domésticos, que atravessam um processo de “humanização”, nas palavras do pesquisador. “Não se trata só de supostamente compartilhar alguns atributos morais, como tristeza e alegria, ou mesmo coisas ‘culturais’, como roupas, casa e comida”, diz. “Quando se usam tecnologias biomédicas para diagnóstico e tratamento de certos males, com funcionamentos similares, temos uma equivalência biológica: aproximados pela animalidade.” Entre os fenômenos recentes estudados por Segata estão diagnósticos de depressão em cães e exames de colesterol em gatos (leia mais sobre pets em “O mercado da afeição”).
A domesticação afetiva é um fenômeno recente, diz o pesquisador, que pode ser vinculado à urbanização e à Revolução Industrial. “A domesticação até o século XIX estava ligada à ideia de utilidade: alimento, tração, guarda”, explica, citando cães, gatos, galinhas, vacas, cavalos. “Até chegarmos àqueles de estimação, temos mais um caminho, em geral associado ao desenvolvimento das metrópoles”, completa. Assim como a relação com os animais para consumo e alimentação acompanha a evolução do sistema produtivo, a relação com bichos de estimação também é influenciada pelos modos de vida dos humanos.
SOMOS TODOS MACACOS?
Em Deux Leçons Sur l’animal et l’homme (ou Duas Lições Sobre o Animal e o Homem), o filósofo Gilbert Simondon traça um panorama histórico desses dois conceitos no pensamento ocidental. Simondon delimita as diferentes questões que aparecem: primeiro, se existe uma continuidade ou uma diferença essencial entre homem e animal; em seguida, se for identificada essa diferença, cabe perguntar se ela implica um isolamento do homem em relação à natureza, à qual pertencem os animais.Por outro lado, Simondon mostra que, para alguns filósofos que sustentaram existir tal diferença, há aqueles para os quais a superioridade humana é uma falácia: Giordano Bruno e Montaigne, por exemplo, chegam a defender a superioridade do animal. Na filosofia antiga, havia aqueles que consideravam o homem superior, porque seria um animal melhorado; já em Platão, no diálogo Timeu, o animal era uma degradação do homem. Por fim, houve filósofos que, afirmando a homogeneidade entre homem e animal, estimaram que o animal deveria ser estudado a partir de suas diferenças em relação ao homem. Mas a perspectiva que triunfou foi a oposta, o homem sendo estudado a partir da base de animalidade.
Os dois autores mais representativos do papel do animal na filosofia ocidental são Aristóteles e René Descartes. Em Sobre a Alma, Aristóteles descreve uma hierarquia de seres vivos relacionada à complexidade de suas funções vitais: nutrição, reprodução, sensação, movimento, intelecto. Já Descartes, com sua ruptura radical entre a substância física e o pensamento, abriu o caminho para que a vida animal fosse pensada como algo puramente mecânico. Aos seguidores de Descartes é atribuído o pensamento arraigado no Ocidente de que o animal é um ser desprovido de interioridade.