Manejo de animais no Brasil equilibra-se nos dois lados da moeda: um que dá orgulho e outro que sangra
Mais da metade do rebanho dos Estados Unidos hoje desfruta de instalações de lida gentil projetadas por Temple Grandin. Em termos de legislação, contudo, o berço do bem-estar animal é a União Europeia. Esse pioneirismo foi fruto das pressões de ONGs e consumidores, cuja vontade prevaleceu sobre os protestos dos agropecuaristas do Velho Mundo. O Brasil, por enquanto, conta tão somente com uma instrução normativa [1], que trata do abate humanitário, e um antigo decreto-lei [2], versando sobre anticrueldade, que leva a assinatura do então chefe do governo provisório, Getulio Vargas.
[1] A IN nº 032, publicada em 2000 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), encontra-se sob revisão, visando atualizá-la e torná-la mais efetiva quanto à adesão dos frigoríficos [2] Decreto-lei nº24.645, de julho de 1934
Para o pesquisador em Etologia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), em Jaboticabal, Mateus Paranhos da Costa, ignorar o interesse dos criadores e adotar uma via impositiva como a Europa para estabelecer o marco regulatório sobre bem-estar animal não seria necessariamente o melhor caminho a ser seguido. “Quando a conscientização ou mesmo o interesse pela mudança por razões comerciais e econômicas chegam antes da lei, o processo é demorado, mas é mais sustentável”, argumenta.
Os campos brasileiros guardam exemplos de manejo que poderiam servir como modelo para qualquer país do mundo. Mas o outro lado da moeda sangra. A partir de um estudo de Mateus Costa, que calculou as perdas econômicas na cadeia da carne bovina decorrentes de manejo agressivo, pode-se ter uma ideia dos maus-tratos ao gado confinado no Brasil.
Com base em levantamentos de hematomas nas carcaças bovinas, o pesquisador assume que, do abate anual de 40 milhões de bovinos, metade tem pelo menos um hematoma grave na carcaça. Se cada hematoma grave resulta em média na perda de 500 gramas de carne e se 20 milhões de bovinos possuem hematomas graves, o resultado é uma perda anual de 10 milhões de quilos de carne. “Sem falar nas mortes, principalmente de bezerros, machucados, doenças e baixo desempenho”, diz. Maior exportador de carne bovina e de carne de frango do mundo, o Brasil precisa manter regras rígidas de bem-estar se quiser conservar os importadores mais exigentes, caso de alguns países da União Europeia. Aqui entram em cena produtores que adotam boas práticas de manejo, seja porque não querem perder mercado ou a produtividade de seus plantéis, seja porque se sentiriam desconfortáveis em fazer algo eticamente condenável – contraponto que remete ao filósofo australiano Peter Singer, professor de Bioética na Universidade de Princeton, nos EUA. Adepto do veganismo, Singer critica o uso de argumentos econômicos para convencer criadores a adotar boas práticas em vez de dizer simplesmente que fazer um animal sofrer é, em si, uma coisa má.
A maioria dos consumidores de carne com nível superior completo e/ou pós- graduado está disposta a pagar entre 20% e 70% a mais por produtos com selo de garantia de que não houve maus-tratos nos procedimentos de criação e abate dos animais. É o que revela tese do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração da UFRJ.
A Korin, produtora de frangos e ovos orgânicos, de acordo com seu diretor industrial, Luiz Carlos Demattê, segue princípios filosóficos segundo os quais todos os seres são dotados de espírito e sentimentos, inclusive as plantas. “A partir dessa perspectiva, não é mais possível criar animais seguindo as regras do sistema produtivo convencional.” Demattê refere-se, por exemplo, ao uso constante de antibióticos e promotores de crescimento (ver box abaixo), fundamentais para manter as aves vivas no ambiente tão hostil e antinatural que desenharam para elas. Segundo ele, para uma galinha poedeira passar a vida, as granjas convencionais reservam-lhe o espaço equivalente ao de uma folha de papel A4. Para os frangos de corte, luz natural durante o dia e luz artificial durante a noite. Sem nenhuma noção de tempo, as aves se alimentam sem parar, atingindo mais rapidamente o peso de abate.
Em um sistema natural, mesmo com escala de produção, as aves poedeiras ficam soltas, sobem em poleiros e botam ovos em ninhos. Os frangos de corte só podem ser apanhados pelo dorso e, no transporte, há limites de quantidade de aves por caixa e de distância percorrida em caminhões, entre outras disposições. Sim, um frango orgânico ou caipira custa pelo menos o dobro de um frango convencional, mas se beneficia de um mercado consumidor ascendente.
No Brasil, “país dos contrastes”, ainda há um predomínio da cultura da força bruta no manejo dos animais. Bater, correr para cercar, arrastar no laço, chegar o ferrão no lombo, dominar no grito ainda são práticas usuais entre os vaqueiros, segundo o pecuarista José da Rocha Cavalcanti, criador de nelore. No entanto, há iniciativas como a do Prêmio BeefPoint 2014 – Edição Bem-estar Animal, realizado em maio, em Ribeirão Preto (SP), que estimulam as boas práticas na lida com os animais, principalmente quando a convidada de honra é ninguém menos que Temple Grandin, que ensina: “Devemos respeito aos animais que vão morrer para nos alimentar”.
O MITO DO HORMÔNIO
Ministrar essa substância nos frangos seria inviável. O que se usa na produção convencional são os antibióticosNove em cada dez brasileiros creem no mito do uso de hormônios em frangos. Ainda que não fosse proibido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, aplicar doses de hormônio em cada uma dos 5,6 bilhões de cabeças de frango produzidas ao ano no País, além de economicamente proibitivo, seria operacionalmente impossível, uma vez que a substância só causa efeito se injetada. “Se ingerido, o hormônio anabolizante degrada (no aparelho digestivo)”, explica o diretor industrial da Korin, Luiz Carlos Demattê.
A Sadia veicula propaganda afirmando o que os frangos da marca estão livres de hormônio. O texto é, no mínimo, enviesado, pois sugere que isso poderia não ser verdade para as outras marcas. Procurada pela reportagem, a BRF não atendeu à solicitação de entrevista. O que, de fato, os frangos convencionais contêm são antibióticos, que nos rótulos aparecem como promotores de crescimento.
Ricardo Hayashi, coordenador de pesquisa de desenvolvimento da Sanex, produtora de aditivos zootécnicos e alimentos funcionais naturais para animais, explica que os antibióticos são ministrados para evitar a propagação de doenças nos aviários. Resquícios dessas substâncias costumam, sim, ser encontrados na carne do frango e, se ingeridos de forma contínua, podem tornar o organismo mais resistente aos efeitos dos antibióticos.