Para o primatologista Robert Sapolsky, não somos diferentes de outras espécies animais por conta de genes, células ou a química cerebral, mas porque cremos na realização daquilo que não parece possível
Estamos acostumados a pensar na humanidade como algo cada vez mais distante do “reino animal”. Falamos sobre “a natureza” como se não fizéssemos parte dela. A palavra-chave para entender essa sensação de não pertencimento é “cultura”. Nós nos destacamos por nosso modo de vida cultural especializado, fincado na transmissão de informações de geração a geração, pela vivência e pelo uso da linguagem.
“Costumamos nos orgulhar dessa capacidade que nos distancia dos demais animais, que nos confere certo poder sobre as forças naturais e que, até certo ponto, parece nos libertar de nossa própria natureza”, afirmam os psicólogos Vera Silvia Raad Bussab e Fernando Leite Ribeiro, em artigo publicado em 1998, intitulado “Biologicamente Cultural” [1].
Essa crença estava no auge quando o antropólogo americano Alfred L. Kroeber publicou, em 1917, o (hoje) clássico artigo “O superorgânico” na revista American Anthropologist, um marco na discussão sobre o tema “natureza versus cultura”. Nele, Kroeber afirma que, graças à cultura, a humanidade distanciou-se do mundo animal. E diz que o homem passou a ser considerado um ser que está acima de suas limitações orgânicas. O autor se preocupava particularmente em delinear com ênfase as diferenças entre o “orgânico” e o “cultural” no ser humano [2].
[1] BUSSAB, V. S. R., & RIBEIRO, F. L. “Biologicamente cultural”. In L. Souza, M. F. Quintal Freitas & M. M. P. Rodrigues (Orgs.), Psicologia: reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, pp.175-193, 1998. Ou acesse o pdf
[2] LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. RJ: Jorge Zahar, 2002.
Aquilo que o senso comum assume como pressuposto para sustentar esse distanciamento do homem de sua natureza é fruto de um exercício racional que opõe, secularmente, “natureza” a “cultura”, e que, todavia, tem se mostrado incapaz de dar conta da complexidade do processo de seleção que nos trouxe até aqui, como hoje propõem etólogos [3], biólogos, psicólogos e outros especialistas que se debruçam sobre a questão.
[3] Estudiosos do comportamento animal
Somos, sim, seres caracterizados pela transmissão não genética de padrões de comportamento de geração a geração, mas isso não basta para definir a natureza humana nem nos torna únicos. Até porque, nas últimas décadas, descobrimos que outras espécies também têm capacidades até pouco tempo atribuídas somente à nossa, como a de transmitir hábitos.
Pelas evidências que as pesquisas sobre o tema vêm delineando, nós nos rendemos à compreensão de que é muito difícil separar o que é instintivo do que é aprendizado.
“Na Etologia, já usamos a expressão ‘biologicamente cultural’, para designar a ideia de que até nossa cultura tem algo de biológico, no sentido de ter sido selecionada para ir adiante, de ser mais um dos comportamentos que vieram ‘naturalmente’ , como tudo mais”, resume a bióloga Patrícia Monticelli, professora de Etologia Genética no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto.
No artigo “Biologicamente Cultural”, Vera Silvia e Leite Ribeiro afirmam: “Ao que tudo indica, assim que nossos ancestrais desenvolveram uma dependência da cultura para sobreviver, a seleção natural começou a favorecer genes para o comportamento cultural”.
Quer dizer: mesmo aquilo que é ou foi apreendido pode ter sido fruto de um crivo “natural” de ferramentas (ao qual, às vezes, pode corresponder uma adaptação fisiológica), passadas adiante porque seriam mais vantajosas, pois teriam tornado nossa vida mais fácil e nossa espécie mais apta – do ponto de vista dos hábitos acumulados – a continuar seguindo seu curso evolutivo. “Até a mentira parece ter sido selecionada pela vantagem adaptativa que nos concede. Usamos pequenas mentirinhas todos os dias, ou para não magoar o outro, ou para fazê-lo sentir-se bem, ou para manter uma aliança”, exemplifica Patrícia, da USP.
Ora, sabemos, por observação e por meio de experimentos realizados ao longo de séculos, que o comportamento do homem é, em muitos aspectos, regido pelos mesmos princípios que determinam o comportamento de outros seres vivos.
“A resposta para o que torna os seres humanos únicos não virá dos genes. Somos feitos dos mesmos blocos de informação que uma mosca-das-frutas. Não somos humanos porque inventamos um tipo diferente de células ou químicos cerebrais. Não é daí que vem nosso caráter único… O que acontece, sim, é que usamos esses ‘blocos-base’ de uma maneira sem precedentes”, afirma o renomado neurocientista e primatologista Robert Sapolsky em uma palestra TED proferida em 2009 na Universidade de Stanford.
Sapolsky discorre quase uma hora sobre o comportamento humano e temas como agressividade, empatia, teoria da mente, o domínio da cultura, entre outros. A ideia da palestra, que tem um tom meio jocoso, é mostrar facetas do comportamento do homem que teriam potencial para deixar as outras espécies “chocadas” ou “surpreendidas”.
Ele começa com a agressividade, deixando claro que não somos a única espécie a matar a própria espécie, às vezes de maneira cruel, e não somos os únicos que matamos de maneira sistemática. Dá exemplo de chimpanzés que organizam grupos de patrulha para vasculhar o seu território e, se encontram um ou mais membros de outro grupo, matam todos, incluindo fêmeas e filhotes. Mas nós, diz ele, podemos ser agressivos passivos. Somos capazes de olhar para o outro lado (fingir não ver) ou passar o dia operando drones em uma base aérea, matando pessoas do outro lado do mundo, e depois voltar correndo para casa para assistir à apresentação de balé da filha mais nova. “Isso não tem paralelo no mundo animal”, lembra ele.
Também afirma que, conforme demonstrou Frans de Waal, outro reconhecido primatologista, em livro intitulado A era da empatia – Lições da natureza para uma sociedade mais gentil (Companhia das Letras), não somos a única espécie a sentir empatia.
De Waal mostrou que, em uma circunstância em que um chimpanzé foi “procurar briga” com outro e apanhou, recebeu menos suporte do restante do grupo do que em uma circunstância em que o valentão bateu em um indivíduo gratuitamente, sem a provocação. Quer dizer: há reconhecimento de quando o indivíduo é vítima, e aí há demonstração de empatia.
Não estamos sozinhos também na empatia, diz Sapolsky. “Mas estamos sozinhos nas direções extraordinárias que tomam a nossa empatia. Sentimos empatia por outras espécies”, afirma ele.
Sapolsky aborda ainda a teoria da mente (que, grosso modo, podemos explicar como a capacidade de deduzir o que o outro está pensando e agir de acordo). Os primatas são capazes disso e também do que se chama de “altruísmo recíproco”, ou seja, a ideia de que, se eu ajudar alguém hoje, ele pode me ajudar depois.
“O altruísmo recíproco a gente só vê em animais que têm memória [4] e que são capazes de reconhecimento individual. Ele precisa reconhecer que você, que faz bem a ele, é diferente do outro, que faz mal. São capazes também de entender que a reciprocidade poderá vir num outro momento, ou seja, ele ajuda hoje e pode não ser recompensado hoje. E ainda de retribuir um favor já feito”, acrescenta Patrícia Monticelli.
[4] Segundo Patrícia, nas espécies em que o grupo vive junto, pode-se esperar memória. Mas o altruísmo recíproco só aparece em grupos sociais mais complexos, em que animais vivem juntos por longos períodos, protagonizando relações de troca que acontecem ao longo do tempo, o tempo todo
Morcegos hematófagos, por exemplo, são capazes de dividir o alimento com os companheiros ou mesmo de alimentar os filhotes de outrem, porque “sabem” que, amanhã, poderão precisar da mesma ajuda. Agem levando em conta a regra básica do “olho por olho, dente por dente” (não faça aos outros o que não gostaria que fosse feito a você).
“O que nos faz únicos nesse ponto é nossa capacidade de entender as circunstâncias em que a recompensa de outras pessoas não é aquela que você gostaria de ter. Temos valores muito diferentes sobre as coisas pelas quais somos recompensados”, diz Sapolsky, fazendo uso da velha piada do sádico e do masoquista: o primeiro diz ao segundo “Me bata”, e o interlocutor masoquista, com imenso prazer, responde: “Não!”.
Por fim, o primatologista Sapolsky aborda o domínio da cultura, lembrando que não somos a única espécie a transmitir hábitos. “Tenho um exemplo interessante sobre isso. Metade dos machos de um grupo de babuínos impactados pelo contato humano foi morta, e eram os indivíduos mais agressivos. O grupo ficou com o dobro de fêmeas, e os machos que sobraram eram muito afáveis, o que gerou uma atmosfera social completamente diferente, com todos eles se dando muito melhor.”
E mostra uma foto de dois machos babuínos adolescentes interagindo e brincando como filhotes de cães. “Machos babuínos não fazem isso, a não ser em um grupo como este. Isso foi transmissão de cultura”, resume.
Segundo ele, algo que é único do ser humano é a imensa complexidade de sua cultura e o que ele é capaz de fazer com ela.
SERES SOCIAIS
Pela capacidade de sobreposição de gerações, costuma-se traçar um paralelo entre sociedades humanas tradicionais (aquelas em que a prole ajuda os pais a obter alimento e cuidar dos mais novos) e os chamados insetos sociais, como abelhas, formigas e cupins.
As abelhas são um exemplo. O inseto permanece no ninho da mãe e começa a cuidar dos irmãos. E há uma divisão interna de tarefas cuja lógica é muito próxima da que fazemos em nossa sociedade, pois as operárias ganham atribuições mais complexas conforme envelhecem.
“Só na última etapa da vida é que vão para fora da colmeia buscar alimento, um trabalho perigoso, pois inclui localizar a fonte, batalhar com outros seres pelo recurso e marcar aquele ponto para as que virão depois”, explica Fábio S. Nascimento, especialista em insetos sociais e professor de comportamento animal, também da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto.
Nascimento refere-se às abelhas e marimbondos como “uma democracia que deu certo, porque é baseada no consenso. O poder é distribuído e a posição da rainha é como outra qualquer, ela só tem uma atribuição diferente. Predomina o coletivo e a tomada de decisões é por consenso, parece ser a sociedade ideal”, cogita, e acrescenta: “Quem manda na colmeia são as operárias e não a rainha”.
Tanto é assim que, quando as operárias percebem que a rainha já não consegue dar conta de sua função e perde a produtividade, elas a sacrificam, decapitando-a. Mas o fato de haver consenso não significa que não exista conflito. O que salta aos olhos são os mecanismos de resolução de conflitos desses invertebrados.
“Em sociedades primitivas de insetos, nas quais o reprodutor não guarda diferenças físicas dos outros indivíduos do grupo, às vezes há confusão. Pode ser que uma operária, por exemplo, queira pôr ovos como a rainha. Mas os ovos têm uma assinatura: um odor característico. Quando detectam um ovo que não é da rainha, as operárias canibalizam, ou a própria rainha o faz”, explica o professor, ressalvando que, ainda assim, algumas rainhas invasoras conseguem camuflar o seu cheiro e imitar o da rainha original.
Nascimento tem realizado pesquisas para saber quais são esses odores e como funciona seu mecanismo de transmissão. E lembra que o cheiro, no caso da espécie humana, ainda norteia escolhas como a do parceiro sexual.
ESCOLHA INSTINTIVA
Fábio Nascimento e Patrícia Monticelli citam pesquisas feitas com voluntários em que uma pessoa é chamada a ranquear parceiros do sexo oposto, primeiramente por observação. Em uma segunda etapa, essa pessoa recebe camisetas usadas pelos participantes durante um dia inteiro (sem a adição de odores como desodorantes e cremes) e deve ranquear os parceiros novamente, desta vez pelo cheiro.
“O resultado é que há uma correlação entre as duas listas”, afirma Nascimento. “Ao escolher os parceiros pelo cheiro, geralmente preferimos pessoas cujo sistema imunológico seja complementar ao nosso, com quem podemos gerar descendentes geneticamente mais variados, com maior capacidade de resistir a doenças”, resume Patrícia.
O que nos leva de volta à percepção de que somos mais “bichos” do que gostaríamos de admitir. Mas se nossos comportamentos não vieram do nada e têm paralelo no mundo animal, e se ainda utilizamos ferramentas como o instinto para gerar descendentes mais saudáveis, qual seria então a fonte de nosso caráter único como espécie? O primatologista Robert Sapolsky dá uma pista, ao afirmar que o que nos faz diferentes é crer na realização daquilo que parece impossível.
“Quanto mais árdua é essa contradição – fazer da impossibilidade de algo a prova de que esse algo é possível e deve se tornar um imperativo moral –, mais importante se torna”, resume, citando o exemplo de uma freira que se dedica a cuidar de condenados no corredor da morte de uma penitenciária em Louisiana, guiada pelo mantra de que “quanto pior o ato, mais tem de ser perdoado”.
“Isso, para mim, é a irracionalidade mais magnificente da qual somos capazes como espécie. Somos únicos simplesmente por essa propriedade que temos”, resume o cientista.
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Para o primatologista Robert Sapolsky, não somos diferentes de outras espécies animais por conta de genes, células ou a química cerebral, mas porque cremos na realização daquilo que não parece possível
Estamos acostumados a pensar na humanidade como algo cada vez mais distante do “reino animal”. Falamos sobre “a natureza” como se não fizéssemos parte dela. A palavra-chave para entender essa sensação de não pertencimento é “cultura”. Nós nos destacamos por nosso modo de vida cultural especializado, fincado na transmissão de informações de geração a geração, pela vivência e pelo uso da linguagem.
“Costumamos nos orgulhar dessa capacidade que nos distancia dos demais animais, que nos confere certo poder sobre as forças naturais e que, até certo ponto, parece nos libertar de nossa própria natureza”, afirmam os psicólogos Vera Silvia Raad Bussab e Fernando Leite Ribeiro, em artigo publicado em 1998, intitulado “Biologicamente Cultural” [1].
Essa crença estava no auge quando o antropólogo americano Alfred L. Kroeber publicou, em 1917, o (hoje) clássico artigo “O superorgânico” na revista American Anthropologist, um marco na discussão sobre o tema “natureza versus cultura”. Nele, Kroeber afirma que, graças à cultura, a humanidade distanciou-se do mundo animal. E diz que o homem passou a ser considerado um ser que está acima de suas limitações orgânicas. O autor se preocupava particularmente em delinear com ênfase as diferenças entre o “orgânico” e o “cultural” no ser humano [2].
[1] BUSSAB, V. S. R., & RIBEIRO, F. L. “Biologicamente cultural”. In L. Souza, M. F. Quintal Freitas & M. M. P. Rodrigues (Orgs.), Psicologia: reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, pp.175-193, 1998. Ou acesse o pdf
[2] LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. RJ: Jorge Zahar, 2002.
Aquilo que o senso comum assume como pressuposto para sustentar esse distanciamento do homem de sua natureza é fruto de um exercício racional que opõe, secularmente, “natureza” a “cultura”, e que, todavia, tem se mostrado incapaz de dar conta da complexidade do processo de seleção que nos trouxe até aqui, como hoje propõem etólogos [3], biólogos, psicólogos e outros especialistas que se debruçam sobre a questão.
[3] Estudiosos do comportamento animal
Somos, sim, seres caracterizados pela transmissão não genética de padrões de comportamento de geração a geração, mas isso não basta para definir a natureza humana nem nos torna únicos. Até porque, nas últimas décadas, descobrimos que outras espécies também têm capacidades até pouco tempo atribuídas somente à nossa, como a de transmitir hábitos.
Pelas evidências que as pesquisas sobre o tema vêm delineando, nós nos rendemos à compreensão de que é muito difícil separar o que é instintivo do que é aprendizado.
“Na Etologia, já usamos a expressão ‘biologicamente cultural’, para designar a ideia de que até nossa cultura tem algo de biológico, no sentido de ter sido selecionada para ir adiante, de ser mais um dos comportamentos que vieram ‘naturalmente’ , como tudo mais”, resume a bióloga Patrícia Monticelli, professora de Etologia Genética no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto.
No artigo “Biologicamente Cultural”, Vera Silvia e Leite Ribeiro afirmam: “Ao que tudo indica, assim que nossos ancestrais desenvolveram uma dependência da cultura para sobreviver, a seleção natural começou a favorecer genes para o comportamento cultural”.
Quer dizer: mesmo aquilo que é ou foi apreendido pode ter sido fruto de um crivo “natural” de ferramentas (ao qual, às vezes, pode corresponder uma adaptação fisiológica), passadas adiante porque seriam mais vantajosas, pois teriam tornado nossa vida mais fácil e nossa espécie mais apta – do ponto de vista dos hábitos acumulados – a continuar seguindo seu curso evolutivo. “Até a mentira parece ter sido selecionada pela vantagem adaptativa que nos concede. Usamos pequenas mentirinhas todos os dias, ou para não magoar o outro, ou para fazê-lo sentir-se bem, ou para manter uma aliança”, exemplifica Patrícia, da USP.
Ora, sabemos, por observação e por meio de experimentos realizados ao longo de séculos, que o comportamento do homem é, em muitos aspectos, regido pelos mesmos princípios que determinam o comportamento de outros seres vivos.
“A resposta para o que torna os seres humanos únicos não virá dos genes. Somos feitos dos mesmos blocos de informação que uma mosca-das-frutas. Não somos humanos porque inventamos um tipo diferente de células ou químicos cerebrais. Não é daí que vem nosso caráter único… O que acontece, sim, é que usamos esses ‘blocos-base’ de uma maneira sem precedentes”, afirma o renomado neurocientista e primatologista Robert Sapolsky em uma palestra TED proferida em 2009 na Universidade de Stanford.
Sapolsky discorre quase uma hora sobre o comportamento humano e temas como agressividade, empatia, teoria da mente, o domínio da cultura, entre outros. A ideia da palestra, que tem um tom meio jocoso, é mostrar facetas do comportamento do homem que teriam potencial para deixar as outras espécies “chocadas” ou “surpreendidas”.
Ele começa com a agressividade, deixando claro que não somos a única espécie a matar a própria espécie, às vezes de maneira cruel, e não somos os únicos que matamos de maneira sistemática. Dá exemplo de chimpanzés que organizam grupos de patrulha para vasculhar o seu território e, se encontram um ou mais membros de outro grupo, matam todos, incluindo fêmeas e filhotes. Mas nós, diz ele, podemos ser agressivos passivos. Somos capazes de olhar para o outro lado (fingir não ver) ou passar o dia operando drones em uma base aérea, matando pessoas do outro lado do mundo, e depois voltar correndo para casa para assistir à apresentação de balé da filha mais nova. “Isso não tem paralelo no mundo animal”, lembra ele.
Também afirma que, conforme demonstrou Frans de Waal, outro reconhecido primatologista, em livro intitulado A era da empatia – Lições da natureza para uma sociedade mais gentil (Companhia das Letras), não somos a única espécie a sentir empatia.
De Waal mostrou que, em uma circunstância em que um chimpanzé foi “procurar briga” com outro e apanhou, recebeu menos suporte do restante do grupo do que em uma circunstância em que o valentão bateu em um indivíduo gratuitamente, sem a provocação. Quer dizer: há reconhecimento de quando o indivíduo é vítima, e aí há demonstração de empatia.
Não estamos sozinhos também na empatia, diz Sapolsky. “Mas estamos sozinhos nas direções extraordinárias que tomam a nossa empatia. Sentimos empatia por outras espécies”, afirma ele.
Sapolsky aborda ainda a teoria da mente (que, grosso modo, podemos explicar como a capacidade de deduzir o que o outro está pensando e agir de acordo). Os primatas são capazes disso e também do que se chama de “altruísmo recíproco”, ou seja, a ideia de que, se eu ajudar alguém hoje, ele pode me ajudar depois.
“O altruísmo recíproco a gente só vê em animais que têm memória [4] e que são capazes de reconhecimento individual. Ele precisa reconhecer que você, que faz bem a ele, é diferente do outro, que faz mal. São capazes também de entender que a reciprocidade poderá vir num outro momento, ou seja, ele ajuda hoje e pode não ser recompensado hoje. E ainda de retribuir um favor já feito”, acrescenta Patrícia Monticelli.
[4] Segundo Patrícia, nas espécies em que o grupo vive junto, pode-se esperar memória. Mas o altruísmo recíproco só aparece em grupos sociais mais complexos, em que animais vivem juntos por longos períodos, protagonizando relações de troca que acontecem ao longo do tempo, o tempo todo
Morcegos hematófagos, por exemplo, são capazes de dividir o alimento com os companheiros ou mesmo de alimentar os filhotes de outrem, porque “sabem” que, amanhã, poderão precisar da mesma ajuda. Agem levando em conta a regra básica do “olho por olho, dente por dente” (não faça aos outros o que não gostaria que fosse feito a você).
“O que nos faz únicos nesse ponto é nossa capacidade de entender as circunstâncias em que a recompensa de outras pessoas não é aquela que você gostaria de ter. Temos valores muito diferentes sobre as coisas pelas quais somos recompensados”, diz Sapolsky, fazendo uso da velha piada do sádico e do masoquista: o primeiro diz ao segundo “Me bata”, e o interlocutor masoquista, com imenso prazer, responde: “Não!”.
Por fim, o primatologista Sapolsky aborda o domínio da cultura, lembrando que não somos a única espécie a transmitir hábitos. “Tenho um exemplo interessante sobre isso. Metade dos machos de um grupo de babuínos impactados pelo contato humano foi morta, e eram os indivíduos mais agressivos. O grupo ficou com o dobro de fêmeas, e os machos que sobraram eram muito afáveis, o que gerou uma atmosfera social completamente diferente, com todos eles se dando muito melhor.”
E mostra uma foto de dois machos babuínos adolescentes interagindo e brincando como filhotes de cães. “Machos babuínos não fazem isso, a não ser em um grupo como este. Isso foi transmissão de cultura”, resume.
Segundo ele, algo que é único do ser humano é a imensa complexidade de sua cultura e o que ele é capaz de fazer com ela.
SERES SOCIAIS
Pela capacidade de sobreposição de gerações, costuma-se traçar um paralelo entre sociedades humanas tradicionais (aquelas em que a prole ajuda os pais a obter alimento e cuidar dos mais novos) e os chamados insetos sociais, como abelhas, formigas e cupins.
As abelhas são um exemplo. O inseto permanece no ninho da mãe e começa a cuidar dos irmãos. E há uma divisão interna de tarefas cuja lógica é muito próxima da que fazemos em nossa sociedade, pois as operárias ganham atribuições mais complexas conforme envelhecem.
“Só na última etapa da vida é que vão para fora da colmeia buscar alimento, um trabalho perigoso, pois inclui localizar a fonte, batalhar com outros seres pelo recurso e marcar aquele ponto para as que virão depois”, explica Fábio S. Nascimento, especialista em insetos sociais e professor de comportamento animal, também da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto.
Nascimento refere-se às abelhas e marimbondos como “uma democracia que deu certo, porque é baseada no consenso. O poder é distribuído e a posição da rainha é como outra qualquer, ela só tem uma atribuição diferente. Predomina o coletivo e a tomada de decisões é por consenso, parece ser a sociedade ideal”, cogita, e acrescenta: “Quem manda na colmeia são as operárias e não a rainha”.
Tanto é assim que, quando as operárias percebem que a rainha já não consegue dar conta de sua função e perde a produtividade, elas a sacrificam, decapitando-a. Mas o fato de haver consenso não significa que não exista conflito. O que salta aos olhos são os mecanismos de resolução de conflitos desses invertebrados.
“Em sociedades primitivas de insetos, nas quais o reprodutor não guarda diferenças físicas dos outros indivíduos do grupo, às vezes há confusão. Pode ser que uma operária, por exemplo, queira pôr ovos como a rainha. Mas os ovos têm uma assinatura: um odor característico. Quando detectam um ovo que não é da rainha, as operárias canibalizam, ou a própria rainha o faz”, explica o professor, ressalvando que, ainda assim, algumas rainhas invasoras conseguem camuflar o seu cheiro e imitar o da rainha original.
Nascimento tem realizado pesquisas para saber quais são esses odores e como funciona seu mecanismo de transmissão. E lembra que o cheiro, no caso da espécie humana, ainda norteia escolhas como a do parceiro sexual.
ESCOLHA INSTINTIVA
Fábio Nascimento e Patrícia Monticelli citam pesquisas feitas com voluntários em que uma pessoa é chamada a ranquear parceiros do sexo oposto, primeiramente por observação. Em uma segunda etapa, essa pessoa recebe camisetas usadas pelos participantes durante um dia inteiro (sem a adição de odores como desodorantes e cremes) e deve ranquear os parceiros novamente, desta vez pelo cheiro.
“O resultado é que há uma correlação entre as duas listas”, afirma Nascimento. “Ao escolher os parceiros pelo cheiro, geralmente preferimos pessoas cujo sistema imunológico seja complementar ao nosso, com quem podemos gerar descendentes geneticamente mais variados, com maior capacidade de resistir a doenças”, resume Patrícia.
O que nos leva de volta à percepção de que somos mais “bichos” do que gostaríamos de admitir. Mas se nossos comportamentos não vieram do nada e têm paralelo no mundo animal, e se ainda utilizamos ferramentas como o instinto para gerar descendentes mais saudáveis, qual seria então a fonte de nosso caráter único como espécie? O primatologista Robert Sapolsky dá uma pista, ao afirmar que o que nos faz diferentes é crer na realização daquilo que parece impossível.
“Quanto mais árdua é essa contradição – fazer da impossibilidade de algo a prova de que esse algo é possível e deve se tornar um imperativo moral –, mais importante se torna”, resume, citando o exemplo de uma freira que se dedica a cuidar de condenados no corredor da morte de uma penitenciária em Louisiana, guiada pelo mantra de que “quanto pior o ato, mais tem de ser perdoado”.
“Isso, para mim, é a irracionalidade mais magnificente da qual somos capazes como espécie. Somos únicos simplesmente por essa propriedade que temos”, resume o cientista.