Em algum momento perdemos o gosto pela política e, com isso, o caminho para conquistar direitos
Cidadania, política, liberdade, defesa de direitos são temas avant la lettre. Caminham juntas e entrelaçadas desde tempos pré-históricos, quando ainda se formavam as bases para o surgimento das civilizações greco-romanas, que começariam a nomear e a pôr em prática todas essas ideias, ainda que para privilegiar poucos. Ao longo da História, passando pelo Cristianismo, Renascimento e Idade Moderna, esses conceitos foram ampliados e aperfeiçoados, mas nada que se comparasse às inovações que viriam a partir da Revolução Francesa e chegariam até os dias atuais. “Contudo, essa é uma história que ainda se escreve”, observa o filósofo Nilo Odalia, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), no capítulo sobre a Revolução Francesa do livro A História da Cidadania[1].
[1] Organizado por Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, Editora Contexto (2003)
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O surgimento do proletariado e dos ideais socialistas a partir da Revolução Industrial enriqueceu o conceito de cidadania, que entra no século XX confundindo-se com a luta por direitos civis (direito à liberdade, à moradia e à igualdade perante a lei), políticos (direito influir no destino da sociedade, votando e sendo votado) e sociais (direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria). Jovem, o Brasil República pegou o “bonde da cidadania” andando e, para estudiosos do tema, ainda não chegou ao destino.
Na visão do historiador José Murilo de Carvalho, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há no País uma “inconclusão da cidadania”, uma vez que as dimensões que compõem essa ideia – direitos civis, políticos e sociais – ainda não caminham juntas. Por exemplo, a conquista do direito à liberdade ou ao voto não assegurou o direito à segurança ou à igualdade social. Aos escravos, concedeu-se a liberdade em 1888, um único direito civil e nada mais. Desde o Brasil colonial até 1930, o povo brasileiro, segundo o historiador, não teve lugar no sistema político.
No pós-1930, houve a expansão dos direitos trabalhistas (sociais), aproximando pela primeira vez as massas do contexto político do País, embora ainda não tivessem garantido os seus direitos civis. No livro Cidadania no Brasil – o longo caminho (Editora Civilização Brasileira, 2001), o historiador adverte que somente o exercício pleno de um direito pode redundar na aquisição dos demais direitos [2] . E ele ressalta que no Brasil os direitos para o exercício pleno da cidadania, longe de serem conquistados, foram historicamente doados pelo Poder Executivo.
[2] Mais informações em resenha do professor de Comunicação Social na PUC-SP Venceslau Alves de Souza na Revista de Sociologia e Política
As manifestações de junho de 2013, que tiraram as massas da zona de conforto em que se encontravam, no entanto, parecem ter caminhado no sentido contrário à tese de união das três dimensões (direitos civis, políticos e sociais). Reivindicam-se ganhos sociais de um lado e repudiam-se política e políticos de outro. A ausência dessa conexão, embora reflita uma insatisfação generalizada com o modus operandi do sistema político, aumenta o risco de as demandas caírem no vazio.
Ou seja, a aversão de várias gerações ao mundo da política, que não é de hoje, já criou uma lacuna no surgimento de jovens líderes políticos afinados com os movimentos atuais. E, desse modo, o ciclo das manifestações não se realimenta.
O filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), lembra que, depois da geração que combateu a ditadura militar [1964 – 1985], quase não surgiram líderes políticos com expressão nacional. “É espantoso que apenas uma única liderança política tenha emanado do movimento dos caras-pintadas [3], o senador Lindbergh Farias, do Rio de Janeiro. E a série de manifestações do ano passado, que levou milhões às ruas em todo o País, também não produziu nenhum novo líder político, além dos ativistas de movimentos alternativos Pablo Capilé [do coletivo Fora do Eixo] e Bruno Torturra [do coletivo Mídia Ninja]”.
[3] Ligados principalmente ao movimento estudantil, foi uma mobilização de jovens que tomou as ruas em 1992 pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello
I HAVE A DREAM
Renato Janine ressalta que esse desprezo pela política não é uma característica brasileira, mas um fenômeno global. Ele aproveita para citar a romancista britânica, prêmio Nobel de Literatura e ativista de esquerda nos anos 1950, Doris Lessing, que no início dos anos 2000 lamentou que hoje em dia tudo o que se pode desejar em política é um governo honesto. “É de fato triste chegarmos a um ponto em que o espaço político se resume a atenuar problemas”, reforça o filósofo.
Nos tempos de ativismo de Doris Lessing, ainda havia reservas de um importante “combustível” para o exercício da política chamado utopia, que o historiador americano Russell Jacoby descreveu como a “crença de que o futuro pode superar fundamentalmente o presente” e que Martin Luther King tão bem sintetizou nas quatro primeiras palavras de seu discurso histórico, em 1963, na marcha de Washington por empregos e liberdade: “I have a dream…” (Eu tenho um sonho) [4].
[4] No livro O Fim da Utopia: política e cultura na era da apatia. Editora Record, 2001
Depois da primeira crise da experiência socialista russa, nos anos 1950, decorrentes das denúncias sobre os crimes cometidos por Josef Stalin [5], a utopia ganhou novo fôlego com a Revolução Cubana, em cujo rastro se seguiu uma nova safra de movimentos iniciados por jovens nos Estados Unidos: black power, feminismo, protestos contra a Guerra do Vietnã e lutas por direitos civis, entre outros. Para cortar a utopia “pela raiz”, ditaduras instalaram-se em boa parte da América Latina, inclusive no Brasil, privando pelo menos uma geração inteira do exercício político na juventude.
Nos anos 1980, a queda do Muro de Berlim marcou o fim da Guerra Fria [6]. Os ideais ambientalistas inseridos na agenda política pelo Partido Verde alemão já se disseminavam pelo mundo, fazendo crer que, de alguma forma, poderiam vir a ocupar o vazio ideológico deixado pelo fim da utopia. O que não aconteceu. A globalização, com forte viés neoliberal, avançou rapidamente e, como retratou Jacoby Russell, a imagem de “Che” Guevara [7], em um pasteurizado mundo multicultural, tornou-se “pop” e, estampada em camisetas, se confundiu com a de ídolos do rock and roll.
[5] Secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e do Comitê Central a partir de 1922 até a sua morte em 1953
[6] Disputa entre o mundo capitalista e o socialista do Pós-Guerra até a queda do Muro de Berlim
[7] Médico argentino, Ernesto Guevara foi um dos ideólogos e comandantes da Revolução Cubana
Na entrevista que concedeu a esta edição da PÁGINA22, o cientista político Humberto Dantas, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), discorre sobre a crise política global, principalmente na esfera da democracia representativa: “A crise é um fato”, diz. “Desde a década de 1980, as pessoas comparecem menos [às urnas], se interessam menos [por política], a despeito de mais países terem eleições.” Dantas faz então um paralelo da política com um dos setores símbolo do sistema econômico global, as telecomunicações. “A política não pode avançar no mesmo ritmo ditado pelas telecomunicações”, afirma. Ou seja, a sociedade atual carrega o universo no bolso em um terminal de celular, através do qual especula na Bolsa de Valores em um instante e acompanha o conflito na Ucrânia em outro, tudo em velocidade de terabyte. “No Legislativo, decisão tomada às pressas corre o risco de ser autocrática”, diz ele. “Tem de ter tempo para discutir, maturar. Tem de emperrar se não conseguir a maioria necessária. Isso é a política.”
O desinteresse pela democracia representativa mencionado por Dantas é de certa forma compensado por um interesse maior das pessoas pela democracia participativa. “A Constituição de 1988 foi um grito de cidadania da participação popular”, interpreta o
sociólogo Pedro Aguerre [8], professor da Faculdade de Economia e Administração da PUC-SP. Algumas dezenas de iniciativas populares de lei, como a da educação, da reforma urbana, da assistência social, entre outras, trouxeram, segundo ele, a intencionalidade de milhões de pessoas para a área política. “Foi um momento extremamente relevante para a história política brasileira.” Contudo, essa mesma
Constituição Federal esbarra nos limites do presidencialismo de coalizão, o sistema político nacional que, na opinião de Aguerre, obriga às alianças espúrias e não programáticas, à divisão do poder.
[8] É também membro associado da Escola de Governo e colaborador da Pastoral de Fé e Política
Esses sinais de esgotamento do sistema político atual puseram na agenda nacional o tema da reforma política, que até o momento produziu mais dissenso que consenso. O financiamento das campanhas eleitorais dos deputados federais deve ser público ou privado? A reeleição presidencial deve ser substituída por um único mandato mais extenso, de 5 anos? O voto deve ser facultativo ou obrigatório? Distrital ou proporcional em lista? Uma reforma política nesses termos vai de fato mudar alguma coisa? A sociedade está interessada em debater essa agenda?
CHAME OS UNIVERSITÁRIOS
E a educação política, ou a falta dela, tem algum papel relevante em todo esse quadro?
Para o coordenador de projetos estratégicos da Ação Educativa [9] e presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Sérgio Haddad, a educação política tem de fato um papel primordial na formação da cidadania e nos rumos da civilização brasileira. “Mas é uma bandeira que se esvaziou nas últimas décadas, tanto no campo da educação formal como no da educação não formal.”
O processo educativo formal, que poderia introduzir conceitos de educação política para jovens ainda no ambiente escolar, entrou na roda-viva da globalização, tornando-se um instrumento para atender exclusivamente às demandas do maior protagonista da atualidade, o mercado de trabalho (mais em “Do pleonasmo ao paradoxo“). Isso também acontece com a educação política fora do âmbito escolar, modelo responsável pelo protagonismo popular na Constituinte. Esse papel era exercido principalmente pela Igreja Católica, sindicatos dos trabalhadores, organizações não governamentais e partidos políticos (ver quadros abaixo).
Segundo Haddad, não dá para dizer que não sobrou nada. “No Fundo Brasil de Direitos Humanos, uma fundação financiadora de projetos populares, recebemos de 700 a 800 propostas por ano”, afirma. A grande maioria vem de núcleos de base – grupos de mães, de associações de moradores e de quilombolas, organizações indígenas, pequenos sindicatos rurais, grupos de mulheres, LGBT etc. “Há também a Escola de Governo, fundada em 1992, em consequência da desesperança absoluta com o governo de Fernando Collor”, lembra Haddad.
Apesar das boas exceções exitosas como a Escola de Governo e a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), o que era uma agenda de âmbito nacional tocada por grandes instituições se transformou no que Sérgio Haddad chama de “trabalho de formiga”. Sua impressão é de que a grande mobilização de 2013, com milhões de jovens conquistando as ruas pela primeira vez, tenha vindo justamente para nos despertar para a necessidade de um resgate da participação política, um dos caminhos mais importantes para a conquista dos demais direitos necessários à conclusão do longo processo de formação da cidadania brasileira. – Colaborou Mônica C. Ribeiro
IGREJA
Durante todo o período da ditadura militar e nos anos seguintes, a Igreja Católica exerceu, de acordo com Sérgio Haddad, papel fundamental de formação política por meio de suas comunidades eclesiais de base. Era essencialmente uma educação voltada aos ganhos de consciência política a partir de leituras críticas da Bíblia para uma análise da realidade. Porém, o conservadorismo crescente dentro da Igreja Católica, ditado pelas gestões dos papas João Paulo II e Bento XVI, foi um dos principais responsáveis pelo esvaziamento desse espaço de formação política e cidadã. Elemento central desse conservadorismo foi a perseguição dos teólogos da libertação pelo Vaticano, como o ex-frei franciscano Leonardo Boff, condenado em 1985 a um ano de silêncio obsequioso pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que sucedeu a João Paulo II como Bento XVI.
SINDICATO
Os movimentos sindicais, na percepção de Haddad, foram outro importante vetor de educação política para os trabalhadores em geral. Mantiveram escolas sindicais de formação política durante a ditadura e nos anos subsequentes. Com a globalização da economia, os sindicatos direcionaram o foco a uma formação mais técnica, voltada ao mercado de trabalho. “Nos anos 1990, o Ministério do Trabalho passou a fazer repasses de recursos para a formação do trabalhador a partir de uma perspectiva técnica”, explica Haddad. Em sua opinião, essa era uma instituição das mais importantes para a formação política, pois havia grande participação de trabalhadores.
PARTIDO POLÍTICO
Outro setor importante de formação política era composto pelos próprios partidos, em especial o Partido dos Trabalhadores e outras legendas de esquerda, como as comunistas. O PT, por exemplo, formava lideranças políticas no Instituto Cajamar, no município homônimo da Grande São Paulo, e nos seus vários diretórios municipais e estaduais e núcleos de base. “Mesmo as unidades menores do partido tinham uma forte perspectiva de formação política”, salienta Haddad. Os partidos comunistas também têm uma longa história de formação dos seus quadros políticos.
Para Haddad, esse campo veio se esvaziando à medida que os partidos se transformaram em máquinas de disputar as eleições. O espaço de formação de ideologias próprias, que diferenciava significativamente um partido do outro e que produzia conteúdo para a composição de programas de governo, ficou no passado. “As diferenças entre os partidos de hoje estão muito mais na ênfase do que no conteúdo”, diz ele. Não há, portanto, perspectiva ampla de um debate crítico sobre grandes temas nacionais como reforma política, questões socioambientais e o produtivismo na economia, entre outros.
ONGs
As organizações não governamentais, que também eram prolíficas na operação de programas de educação popular, enfrentaram um esvaziamento generalizado da cooperação internacional, conforme análise de Sérgio Haddad. Durante a ditadura militar e nos anos seguintes, essas agências tiveram um importante papel no financiamento do processo de fortalecimento da sociedade civil, conscientização de setores e formação política como uma estratégia de politização da sociedade. De repente, acharam que a sociedade já estava democratizada e que o mais importante seria direcionar o capital para a formação de mão de obra e para trabalhos na linha de pequenos projetos produtivos. “Sem recursos, as ONG perderam o fôlego para intervir em áreas de educação política.”
[:en]Em algum momento perdemos o gosto pela política e, com isso, o caminho para conquistar direitos
Cidadania, política, liberdade, defesa de direitos são temas avant la lettre. Caminham juntas e entrelaçadas desde tempos pré-históricos, quando ainda se formavam as bases para o surgimento das civilizações greco-romanas, que começariam a nomear e a pôr em prática todas essas ideias, ainda que para privilegiar poucos. Ao longo da História, passando pelo Cristianismo, Renascimento e Idade Moderna, esses conceitos foram ampliados e aperfeiçoados, mas nada que se comparasse às inovações que viriam a partir da Revolução Francesa e chegariam até os dias atuais. “Contudo, essa é uma história que ainda se escreve”, observa o filósofo Nilo Odalia, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), no capítulo sobre a Revolução Francesa do livro A História da Cidadania[1].
[1] Organizado por Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, Editora Contexto (2003)
O surgimento do proletariado e dos ideais socialistas a partir da Revolução Industrial enriqueceu o conceito de cidadania, que entra no século XX confundindo-se com a luta por direitos civis (direito à liberdade, à moradia e à igualdade perante a lei), políticos (direito influir no destino da sociedade, votando e sendo votado) e sociais (direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria). Jovem, o Brasil República pegou o “bonde da cidadania” andando e, para estudiosos do tema, ainda não chegou ao destino.
Na visão do historiador José Murilo de Carvalho, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há no País uma “inconclusão da cidadania”, uma vez que as dimensões que compõem essa ideia – direitos civis, políticos e sociais – ainda não caminham juntas. Por exemplo, a conquista do direito à liberdade ou ao voto não assegurou o direito à segurança ou à igualdade social. Aos escravos, concedeu-se a liberdade em 1888, um único direito civil e nada mais. Desde o Brasil colonial até 1930, o povo brasileiro, segundo o historiador, não teve lugar no sistema político.
No pós-1930, houve a expansão dos direitos trabalhistas (sociais), aproximando pela primeira vez as massas do contexto político do País, embora ainda não tivessem garantido os seus direitos civis. No livro Cidadania no Brasil – o longo caminho (Editora Civilização Brasileira, 2001), o historiador adverte que somente o exercício pleno de um direito pode redundar na aquisição dos demais direitos [2] . E ele ressalta que no Brasil os direitos para o exercício pleno da cidadania, longe de serem conquistados, foram historicamente doados pelo Poder Executivo.
[2] Mais informações em resenha do professor de Comunicação Social na PUC-SP Venceslau Alves de Souza na Revista de Sociologia e Política
As manifestações de junho de 2013, que tiraram as massas da zona de conforto em que se encontravam, no entanto, parecem ter caminhado no sentido contrário à tese de união das três dimensões (direitos civis, políticos e sociais). Reivindicam-se ganhos sociais de um lado e repudiam-se política e políticos de outro. A ausência dessa conexão, embora reflita uma insatisfação generalizada com o modus operandi do sistema político, aumenta o risco de as demandas caírem no vazio.
Ou seja, a aversão de várias gerações ao mundo da política, que não é de hoje, já criou uma lacuna no surgimento de jovens líderes políticos afinados com os movimentos atuais. E, desse modo, o ciclo das manifestações não se realimenta.
O filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), lembra que, depois da geração que combateu a ditadura militar [1964 – 1985], quase não surgiram líderes políticos com expressão nacional. “É espantoso que apenas uma única liderança política tenha emanado do movimento dos caras-pintadas [3], o senador Lindbergh Farias, do Rio de Janeiro. E a série de manifestações do ano passado, que levou milhões às ruas em todo o País, também não produziu nenhum novo líder político, além dos ativistas de movimentos alternativos Pablo Capilé [do coletivo Fora do Eixo] e Bruno Torturra [do coletivo Mídia Ninja]”.
[3] Ligados principalmente ao movimento estudantil, foi uma mobilização de jovens que tomou as ruas em 1992 pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello
I HAVE A DREAM
Renato Janine ressalta que esse desprezo pela política não é uma característica brasileira, mas um fenômeno global. Ele aproveita para citar a romancista britânica, prêmio Nobel de Literatura e ativista de esquerda nos anos 1950, Doris Lessing, que no início dos anos 2000 lamentou que hoje em dia tudo o que se pode desejar em política é um governo honesto. “É de fato triste chegarmos a um ponto em que o espaço político se resume a atenuar problemas”, reforça o filósofo.
Nos tempos de ativismo de Doris Lessing, ainda havia reservas de um importante “combustível” para o exercício da política chamado utopia, que o historiador americano Russell Jacoby descreveu como a “crença de que o futuro pode superar fundamentalmente o presente” e que Martin Luther King tão bem sintetizou nas quatro primeiras palavras de seu discurso histórico, em 1963, na marcha de Washington por empregos e liberdade: “I have a dream…” (Eu tenho um sonho) [4].
[4] No livro O Fim da Utopia: política e cultura na era da apatia. Editora Record, 2001
Depois da primeira crise da experiência socialista russa, nos anos 1950, decorrentes das denúncias sobre os crimes cometidos por Josef Stalin [5], a utopia ganhou novo fôlego com a Revolução Cubana, em cujo rastro se seguiu uma nova safra de movimentos iniciados por jovens nos Estados Unidos: black power, feminismo, protestos contra a Guerra do Vietnã e lutas por direitos civis, entre outros. Para cortar a utopia “pela raiz”, ditaduras instalaram-se em boa parte da América Latina, inclusive no Brasil, privando pelo menos uma geração inteira do exercício político na juventude.
Nos anos 1980, a queda do Muro de Berlim marcou o fim da Guerra Fria [6]. Os ideais ambientalistas inseridos na agenda política pelo Partido Verde alemão já se disseminavam pelo mundo, fazendo crer que, de alguma forma, poderiam vir a ocupar o vazio ideológico deixado pelo fim da utopia. O que não aconteceu. A globalização, com forte viés neoliberal, avançou rapidamente e, como retratou Jacoby Russell, a imagem de “Che” Guevara [7], em um pasteurizado mundo multicultural, tornou-se “pop” e, estampada em camisetas, se confundiu com a de ídolos do rock and roll.
[5] Secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e do Comitê Central a partir de 1922 até a sua morte em 1953
[6] Disputa entre o mundo capitalista e o socialista do Pós-Guerra até a queda do Muro de Berlim
[7] Médico argentino, Ernesto Guevara foi um dos ideólogos e comandantes da Revolução Cubana
Na entrevista que concedeu a esta edição da PÁGINA22, o cientista político Humberto Dantas, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), discorre sobre a crise política global, principalmente na esfera da democracia representativa: “A crise é um fato”, diz. “Desde a década de 1980, as pessoas comparecem menos [às urnas], se interessam menos [por política], a despeito de mais países terem eleições.” Dantas faz então um paralelo da política com um dos setores símbolo do sistema econômico global, as telecomunicações. “A política não pode avançar no mesmo ritmo ditado pelas telecomunicações”, afirma. Ou seja, a sociedade atual carrega o universo no bolso em um terminal de celular, através do qual especula na Bolsa de Valores em um instante e acompanha o conflito na Ucrânia em outro, tudo em velocidade de terabyte. “No Legislativo, decisão tomada às pressas corre o risco de ser autocrática”, diz ele. “Tem de ter tempo para discutir, maturar. Tem de emperrar se não conseguir a maioria necessária. Isso é a política.”
O desinteresse pela democracia representativa mencionado por Dantas é de certa forma compensado por um interesse maior das pessoas pela democracia participativa. “A Constituição de 1988 foi um grito de cidadania da participação popular”, interpreta o
sociólogo Pedro Aguerre [8], professor da Faculdade de Economia e Administração da PUC-SP. Algumas dezenas de iniciativas populares de lei, como a da educação, da reforma urbana, da assistência social, entre outras, trouxeram, segundo ele, a intencionalidade de milhões de pessoas para a área política. “Foi um momento extremamente relevante para a história política brasileira.” Contudo, essa mesma
Constituição Federal esbarra nos limites do presidencialismo de coalizão, o sistema político nacional que, na opinião de Aguerre, obriga às alianças espúrias e não programáticas, à divisão do poder.
[8] É também membro associado da Escola de Governo e colaborador da Pastoral de Fé e Política
Esses sinais de esgotamento do sistema político atual puseram na agenda nacional o tema da reforma política, que até o momento produziu mais dissenso que consenso. O financiamento das campanhas eleitorais dos deputados federais deve ser público ou privado? A reeleição presidencial deve ser substituída por um único mandato mais extenso, de 5 anos? O voto deve ser facultativo ou obrigatório? Distrital ou proporcional em lista? Uma reforma política nesses termos vai de fato mudar alguma coisa? A sociedade está interessada em debater essa agenda?
CHAME OS UNIVERSITÁRIOS
E a educação política, ou a falta dela, tem algum papel relevante em todo esse quadro?
Para o coordenador de projetos estratégicos da Ação Educativa [9] e presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Sérgio Haddad, a educação política tem de fato um papel primordial na formação da cidadania e nos rumos da civilização brasileira. “Mas é uma bandeira que se esvaziou nas últimas décadas, tanto no campo da educação formal como no da educação não formal.”
O processo educativo formal, que poderia introduzir conceitos de educação política para jovens ainda no ambiente escolar, entrou na roda-viva da globalização, tornando-se um instrumento para atender exclusivamente às demandas do maior protagonista da atualidade, o mercado de trabalho (mais em “Do pleonasmo ao paradoxo“). Isso também acontece com a educação política fora do âmbito escolar, modelo responsável pelo protagonismo popular na Constituinte. Esse papel era exercido principalmente pela Igreja Católica, sindicatos dos trabalhadores, organizações não governamentais e partidos políticos (ver quadros abaixo).
Segundo Haddad, não dá para dizer que não sobrou nada. “No Fundo Brasil de Direitos Humanos, uma fundação financiadora de projetos populares, recebemos de 700 a 800 propostas por ano”, afirma. A grande maioria vem de núcleos de base – grupos de mães, de associações de moradores e de quilombolas, organizações indígenas, pequenos sindicatos rurais, grupos de mulheres, LGBT etc. “Há também a Escola de Governo, fundada em 1992, em consequência da desesperança absoluta com o governo de Fernando Collor”, lembra Haddad.
Apesar das boas exceções exitosas como a Escola de Governo e a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), o que era uma agenda de âmbito nacional tocada por grandes instituições se transformou no que Sérgio Haddad chama de “trabalho de formiga”. Sua impressão é de que a grande mobilização de 2013, com milhões de jovens conquistando as ruas pela primeira vez, tenha vindo justamente para nos despertar para a necessidade de um resgate da participação política, um dos caminhos mais importantes para a conquista dos demais direitos necessários à conclusão do longo processo de formação da cidadania brasileira. – Colaborou Mônica C. Ribeiro
IGREJA
Durante todo o período da ditadura militar e nos anos seguintes, a Igreja Católica exerceu, de acordo com Sérgio Haddad, papel fundamental de formação política por meio de suas comunidades eclesiais de base. Era essencialmente uma educação voltada aos ganhos de consciência política a partir de leituras críticas da Bíblia para uma análise da realidade. Porém, o conservadorismo crescente dentro da Igreja Católica, ditado pelas gestões dos papas João Paulo II e Bento XVI, foi um dos principais responsáveis pelo esvaziamento desse espaço de formação política e cidadã. Elemento central desse conservadorismo foi a perseguição dos teólogos da libertação pelo Vaticano, como o ex-frei franciscano Leonardo Boff, condenado em 1985 a um ano de silêncio obsequioso pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que sucedeu a João Paulo II como Bento XVI.
SINDICATO
Os movimentos sindicais, na percepção de Haddad, foram outro importante vetor de educação política para os trabalhadores em geral. Mantiveram escolas sindicais de formação política durante a ditadura e nos anos subsequentes. Com a globalização da economia, os sindicatos direcionaram o foco a uma formação mais técnica, voltada ao mercado de trabalho. “Nos anos 1990, o Ministério do Trabalho passou a fazer repasses de recursos para a formação do trabalhador a partir de uma perspectiva técnica”, explica Haddad. Em sua opinião, essa era uma instituição das mais importantes para a formação política, pois havia grande participação de trabalhadores.
PARTIDO POLÍTICO
Outro setor importante de formação política era composto pelos próprios partidos, em especial o Partido dos Trabalhadores e outras legendas de esquerda, como as comunistas. O PT, por exemplo, formava lideranças políticas no Instituto Cajamar, no município homônimo da Grande São Paulo, e nos seus vários diretórios municipais e estaduais e núcleos de base. “Mesmo as unidades menores do partido tinham uma forte perspectiva de formação política”, salienta Haddad. Os partidos comunistas também têm uma longa história de formação dos seus quadros políticos.
Para Haddad, esse campo veio se esvaziando à medida que os partidos se transformaram em máquinas de disputar as eleições. O espaço de formação de ideologias próprias, que diferenciava significativamente um partido do outro e que produzia conteúdo para a composição de programas de governo, ficou no passado. “As diferenças entre os partidos de hoje estão muito mais na ênfase do que no conteúdo”, diz ele. Não há, portanto, perspectiva ampla de um debate crítico sobre grandes temas nacionais como reforma política, questões socioambientais e o produtivismo na economia, entre outros.
ONGs
As organizações não governamentais, que também eram prolíficas na operação de programas de educação popular, enfrentaram um esvaziamento generalizado da cooperação internacional, conforme análise de Sérgio Haddad. Durante a ditadura militar e nos anos seguintes, essas agências tiveram um importante papel no financiamento do processo de fortalecimento da sociedade civil, conscientização de setores e formação política como uma estratégia de politização da sociedade. De repente, acharam que a sociedade já estava democratizada e que o mais importante seria direcionar o capital para a formação de mão de obra e para trabalhos na linha de pequenos projetos produtivos. “Sem recursos, as ONG perderam o fôlego para intervir em áreas de educação política.”