Projeto de hidrelétricas, portos e hidrovia na Bacia do Rio Tapajós reacende discussão sobre o histórico de grandes obras na Amazônia e desafia governo e sociedade a aprender com processos anteriores
O Rio Tapajós – que nasce no Mato Grosso, entra no estado do Pará e deságua no Rio Amazonas – é hoje considerado a grande fronteira energética do Brasil. O aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio é sondado desde os anos 1980. Entretanto, os grandes projetos para a Bacia do Rio Tapajós não se reduzem a usinas hidrelétricas (UHE). Incluem também uma hidrovia – a Teles Pires-Tapajós –, a construção de diversos portos, principalmente no entorno de Itaituba, no Sudoeste do Pará, e a pavimentação da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém (ver mapa abaixo), um enredo que já dura alguns anos. A futura Hidrovia Teles Pires-Tapajós, por exemplo, é considerada estratégica para o escoamento da produção de grãos do Norte de Mato Grosso para o mercado externo – atualmente feita por rodovias até o Porto de Santos e também pela hidrovia do Rio Madeira.
Santarém e Itaituba, ambos no Pará, são os dois municípios mais desenvolvidos da bacia. O primeiro, mais antigo, é o maior município da região, localizado em frente ao encontro entre as águas do Amazonas e do Tapajós. Tem cerca de 300 mil habitantes e também possui o maior PIB entre os municípios da Bacia do Tapajós.
Tornou-se, nos últimos dez anos, importante produtor de grãos, com destaque para a soja, graças à a expansão da fronteira agrícola. É chamada pelos paraenses de “Pérola do Tapajós”, abrigando um dos mais lindos cartões-postais do Brasil, o distrito de Alter do Chão, com suas paradisíacas praias de areia branca e as águas verdes-esmeraldas do Rio Tapajós.
Já Itaituba é um município de 100 mil habitantes que, entre as décadas de 1980 e 1990, teve sua economia centrada na extração de ouro. Quando a produção de Serra Pelada começou a cair, no início dos anos 1980, todos os olhos se voltaram para o Tapajós, considerada uma das maiores províncias auríferas do mundo, condição que tem fomentado conflitos sociais e alterações ambientais. E Itaituba, a “Cidade Pepita”, conheceu seus dias de glória. Depois, entrou em declínio. E hoje lida com os garimpos clandestinos, que ainda utilizam mercúrio e cianeto para depurar o ouro. Estrategicamente localizada à beira do Tapajós, cerca de 350 quilômetros ao sul de Santarém (pela BR-163), Itaituba tem acesso curto e rápido à BR-163.
Trata-se, portanto, de uma região de fronteira agrícola, de interesse estratégico, rica em ouro, e que segue o padrão amazônico de fragilidade nos indicadores sociais. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Itaituba (0,640) e de Santarém (0,691) figuram entre os mais baixos do País, situando-se nas posições 3.291 e 2.161, respectivamente, no conjunto dos 5.565 municípios existentes no Brasil. A atuação do Estado nas localidades mais longínquas também é pequena.
10 milhões de toneladas de grãos terão passado pelos portos do Norte em 2014
61 milhões de toneladas é a estimativa de exportação para 2025
Some-se a tudo isso a presença de 19 Unidades de Conservação (UCs) e três Terras Indígenas (Kayabi, Munduruku e Sai Cinza) na área de influência das UHEs do Tapajós. Situação que exige enorme esforço de negociação dos atores envolvidos (governo federal, prefeituras, ONGs, sociedade civil, empreendedores, entidades de classe, Exército e associações, entre outros) na busca por governança local, fundamental para criar e sustentar um ambiente favorável ao desenvolvimento. Mas há muito trabalho nesse sentido.
Das 42 hidrelétricas planejadas para a bacia do Tapajós, a grande maioria está no Mato Grosso. Mas as que têm probabilidade de causar maior impacto ambiental são as do Pará, pois Mato Grosso tem uma situação de fronteira agrícola já consolidada, diz Ane Alencar, do Ipam.
GRANDES PLANOS
Segundo o Sumário Executivo da avaliação ambiental integrada da Bacia do Tapajós (feita pelo Grupo de Estudo Tapajós e Ecology Brasil em 2014), em um universo de até 20 anos, três UHEs estão planejadas para o Rio Tapajós (São Luiz, Jatobá e Chacorão) e outras quatro na bacia do Jamanxim, seu principal tributário (Cachoeira do Caí, Jamanxim, Cachoeira dos Patos e Jardim do Ouro)
São Luiz e Jatobá são as bolas da vez, com entrega prevista para 2019. Para garantir a construção das UHEs, o governo reduziu a área de UCs por meio da Medida Provisória nº 558 (chamada de MP da desafetação), convertida na Lei nº 12.678, de 25 de junho de 2012.
A medida diminuiu o território dos parques nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos e de Mapinguari, das Florestas Nacionais de Itaituba I, Itaituba II e do Crepori e da Área de Proteção Ambiental do Tapajós.
“Se era realmente preciso rever essas áreas, que se fizesse isso por lei. Assim, a sociedade civil teria tempo para se organizar. Mas, sendo uma MP, basta a presidente assinar”, pontua o procurador da República Luís de Camões Lima Boaventura, do MPF em Santarém.
Faz coro com ele Mariana Ferreira, superintendente de Políticas Públicas do WWF-Brasil: “A redução de UCs é uma tendência no mundo todo, mas o processo natural seria um projeto de lei, que implica participação, organização, enfim, um trâmite democrático. Já uma MP queima essas etapas”.
Estudo publicado este ano na revista Conservation Biology identificou 93 eventos que mudaram os limites ou categorias de UCs brasileiras no últimos 31 anos. Destes, 69 ocorreram em UCs de proteção integral e 24 em unidades de uso sustentável. (Mais aqui)
A população local também não foi consultada sobre a entrada de técnicos para fazer os estudos de viabilidade no território. Em março de 2013, pesquisadores e técnicos de apoio entraram no território Munduruku com respaldo do Exército para fazer estudos que subsidiariam o estudo de impacto ambiental (EIA-Rima) das obras de São Luiz do Tapajós. O MPF conseguiu suspender a operação na Justiça, mas a decisão foi revertida logo depois.
Essas idas e vindas acabam por encarecer os processos, acirram as polaridades entre os “totalmente a favor e os totalmente contra”, e atrasam as obras. Mais barato, e honesto, seria realizar uma consulta livre, prévia e informada como a reclamada pelas populações locais e pelo MPF, respaldado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Em resumo: conversar e negociar. A experiência mostra que a ausência de negociação é a origem das demandas contra os empreendimentos.
“A maioria das demandas observadas em ações civis públicas propostas em relação às UHEs de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau é de cunho social”, afirma a professora do curso de Direito da Fundação Getulio Vargas Flavia Scabin, coautora de estudo inédito sobre as ações civis públicas (ACPs) propostas durante e depois do processo de licenciamento das três hidrelétricas citadas.
O estudo, que analisou 40 ACPs, detectou que as demandas de cunho exclusivamente social foram as mais frequentes (20), enquanto que cinco tratavam de algum aspecto exclusivamente ambiental e seis traziam demandas sociais e ambientais ao mesmo tempo. As nove restantes diziam respeito principalmente a algum procedimento específico do licenciamento.
COMPENSAÇÕES
Nesse cenário, é legítimo indagar sobre as possibilidades reais do fortalecimento da governança. “A gente está em cima da hora, mas ainda dá para consertar e consultar as populações”, diz Ana Cristina Barros, diretora de infraestrutura para a América Latina da The Nature Conservancy (TNC). “Infraestrutura tem de ser vetor de desenvolvimento local. Isso implica a capacidade de gestão de impactos e receitas. A região tem indicadores ruins de saúde, educação, desmatamento. Sabemos que isso tradicionalmente piora com as grandes obras. Então, temos de preparar os municípios para esses eventos”, afirma.
Segundo ela, antes de a empresa ganhar a concorrência pública, o Estado deveria estar lá preparando o terreno. “Hoje não existe esse mecanismo e ainda não há quem financie o investimento antecipado (mais sobre fundo antecipatório em Entrevista e em Reportagem).
“Em Belo Monte, o Estado chegou depois. Mas, no Tapajós, existe uma motivação de fazer direito, porque a proximidade temporal com Belo Monte é muito grande. Se você tem uma pauta de desenvolvimento antecipado, transfere os benefícios para os locais”, diz.
De acordo com o relatório que estimou a Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH) [2] para hidrelétricas na Amazônia (TNC e Instituto Acende Brasil, 2013), a UHE de Jatobá deverá pagar R$ 57,2 milhões por ano como compensação financeira, dos quais a prefeitura de Itaituba receberá cerca de R$ 15 milhões/ano e a de Jacareacanga, R$ 7 milhões/ano. Para a Usina de São Luiz calculou-se o valor de R$ 150,3 milhões por ano como CFURH, dos quais R$ 41,5 milhões/ano deverão ir para Itaituba e R$ 18,5 milhões/ano para Trairão. forma de compensação“, diz. No relatório da TNC, não há estimativa de CFURH para a usina hidrelétrica do Chacorão, que impacta diretamente a TI Munduruku, no município de Jacareacanga.
[2] Instituída pela Constituição Federal de 1988, a CFURH é um Percentual pago pelas concessionárias como indenização pela utilização de recursos hídricos para geração de energia elétrica. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) gerencia, arrecada e distribui os valores entre os beneficiários
Para o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Philip Fearnside, “as compensações criam interessados no dinheiro, influenciam as políticas locais e as lideranças, e facilitam a promoção de obras com muitos impactos. Cria-se um conflito de interesse. As decisões sobre as obras têm de ser independentes da influência do dinheiro que se vai gerar de compensação”, diz.
HIDROVIA E PORTOS
Chacorão e as duas outras UHEs com sistema de eclusas planejadas para o Tapajós são cruciais para a viabilização da Hidrovia Teles Pires-Tapajós.
De acordo com o relatório Plano Hidroviário Estratégico 2013, “…o transporte hidroviário interior entre Santarém e Cachoeira Rasteira depende diretamente da construção de usinas hidrelétricas com sistemas de eclusas, o que permitiria a navegação ao longo de extensos segmentos dos rios”. Contudo, trecho do documento cita a TI Kayabi como altamente sensível:
“Mesmo se essas duas barragens forem construídas com eclusas, a terceira, que é necessária para superar as corredeiras de Cachoeira Rasteira, localizada entre a Usina Hidrelétrica de Chacorão e a de São Manoel (no Rio Teles Pires), teria seu reservatório localizado no território indígena nomeado de ‘Kayabi’ , altamente sensível do ponto de vista socioambiental”.
Com as UHEs e a hidrovia, diversos portos estão planejados para Itaituba e entorno, com financiamento privado. Um deles, da americana Bunge, maior exportadora de grãos do País, está pronto desde abril. A investida de empresas como ADM, Cargill e Amaggi, entre outras, que têm planos de portos no município, também é vista por Ana Cristina, da TNC, como oportunidade.
GOVERNANÇA E SINERGIA
“Estima-se que os primeiros seis portos vão gerar para a prefeitura R$ 20 milhões ao ano”, diz. “Por isso, é preciso tirar o atraso local de governança e preparar esses territórios para dar um salto de qualidade.”
Ana Cristina cita uma iniciativa da Associação dos Terminais Privados do Rio Tapajós (Atap) como exemplo do fortalecimento da governança local. “A Atap chamou a prefeitura de Itaituba e discutiu uma agenda mínima de investimento, prioridades e de planejamento”, conta.
A iniciativa gerou um termo de compromisso pelo qual, segundo publicado em reportagem do jornal Valor Econômico em novembro do ano passado, seis empresas associadas à Atap prontificaram-se a repassar cerca de R$ 12 milhões ao município em 15 parcelas a partir da entrega da licença de instalação. Segundo o texto, a associação se comprometeu a elaborar um projeto de aterro sanitário e coleta seletiva e a instalar uma unidade de Corpo de Bombeiros no município, entre outras atribuições.
Ane Alencar, diretora do Programa Cenários para a Amazônia do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam), cita sua experiência na BR-163 com certa melancolia, lembrando que, antes mesmo de sair a licença prévia para a pavimentação da rodovia, em 2005, formou-se um grupo de estudos sobre os impactos da obra. (Mais sobre a BR-163 em reportagem)
“Nós fomos a campo, reunimos as lideranças, geramos um plano, que foi levado para a então ministra Marina Silva, e ela se sensibilizou. O processo andou muito bem no início. Criou-se um bloco de UCs nas proximidades da BR-163, e também na Terra do Meio, localizada na região central do Pará. Pouco depois, a irmã Dorothy Stang morreu, o que também acabou forçando o aumento da presença do Estado na região. Com a saída da ministra Marina do governo Lula, em 2008, o plano foi abandonado, o que provocou um choque de governança, já que havia sido criada uma expectativa”, resume Ane.
42 mil pessoas serão atraídas para Itaituba em função das obras da Usina de São Luiz. A população atual é de 100 mil habitantes
130 mil pessoas devem ir para a região do Tapajós se todas as usinas saírem do papel
[:en]Projeto de hidrelétricas, portos e hidrovia na Bacia do Rio Tapajós reacende discussão sobre o histórico de grandes obras na Amazônia e desafia governo e sociedade a aprender com processos anteriores
O Rio Tapajós – que nasce no Mato Grosso, entra no estado do Pará e deságua no Rio Amazonas – é hoje considerado a grande fronteira energética do Brasil. O aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio é sondado desde os anos 1980. Entretanto, os grandes projetos para a Bacia do Rio Tapajós não se reduzem a usinas hidrelétricas (UHE). Incluem também uma hidrovia – a Teles Pires-Tapajós –, a construção de diversos portos, principalmente no entorno de Itaituba, no Sudoeste do Pará, e a pavimentação da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém (ver mapa abaixo), um enredo que já dura alguns anos. A futura Hidrovia Teles Pires-Tapajós, por exemplo, é considerada estratégica para o escoamento da produção de grãos do Norte de Mato Grosso para o mercado externo – atualmente feita por rodovias até o Porto de Santos e também pela hidrovia do Rio Madeira.
Santarém e Itaituba, ambos no Pará, são os dois municípios mais desenvolvidos da bacia. O primeiro, mais antigo, é o maior município da região, localizado em frente ao encontro entre as águas do Amazonas e do Tapajós. Tem cerca de 300 mil habitantes e também possui o maior PIB entre os municípios da Bacia do Tapajós.
Tornou-se, nos últimos dez anos, importante produtor de grãos, com destaque para a soja, graças à a expansão da fronteira agrícola. É chamada pelos paraenses de “Pérola do Tapajós”, abrigando um dos mais lindos cartões-postais do Brasil, o distrito de Alter do Chão, com suas paradisíacas praias de areia branca e as águas verdes-esmeraldas do Rio Tapajós.
Já Itaituba é um município de 100 mil habitantes que, entre as décadas de 1980 e 1990, teve sua economia centrada na extração de ouro. Quando a produção de Serra Pelada começou a cair, no início dos anos 1980, todos os olhos se voltaram para o Tapajós, considerada uma das maiores províncias auríferas do mundo, condição que tem fomentado conflitos sociais e alterações ambientais. E Itaituba, a “Cidade Pepita”, conheceu seus dias de glória. Depois, entrou em declínio. E hoje lida com os garimpos clandestinos, que ainda utilizam mercúrio e cianeto para depurar o ouro. Estrategicamente localizada à beira do Tapajós, cerca de 350 quilômetros ao sul de Santarém (pela BR-163), Itaituba tem acesso curto e rápido à BR-163.
Trata-se, portanto, de uma região de fronteira agrícola, de interesse estratégico, rica em ouro, e que segue o padrão amazônico de fragilidade nos indicadores sociais. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Itaituba (0,640) e de Santarém (0,691) figuram entre os mais baixos do País, situando-se nas posições 3.291 e 2.161, respectivamente, no conjunto dos 5.565 municípios existentes no Brasil. A atuação do Estado nas localidades mais longínquas também é pequena.
10 milhões de toneladas de grãos terão passado pelos portos do Norte em 2014
61 milhões de toneladas é a estimativa de exportação para 2025
Some-se a tudo isso a presença de 19 Unidades de Conservação (UCs) e três Terras Indígenas (Kayabi, Munduruku e Sai Cinza) na área de influência das UHEs do Tapajós. Situação que exige enorme esforço de negociação dos atores envolvidos (governo federal, prefeituras, ONGs, sociedade civil, empreendedores, entidades de classe, Exército e associações, entre outros) na busca por governança local, fundamental para criar e sustentar um ambiente favorável ao desenvolvimento. Mas há muito trabalho nesse sentido.
Das 42 hidrelétricas planejadas para a bacia do Tapajós, a grande maioria está no Mato Grosso. Mas as que têm probabilidade de causar maior impacto ambiental são as do Pará, pois Mato Grosso tem uma situação de fronteira agrícola já consolidada, diz Ane Alencar, do Ipam.
GRANDES PLANOS
Segundo o Sumário Executivo da avaliação ambiental integrada da Bacia do Tapajós (feita pelo Grupo de Estudo Tapajós e Ecology Brasil em 2014), em um universo de até 20 anos, três UHEs estão planejadas para o Rio Tapajós (São Luiz, Jatobá e Chacorão) e outras quatro na bacia do Jamanxim, seu principal tributário (Cachoeira do Caí, Jamanxim, Cachoeira dos Patos e Jardim do Ouro)
São Luiz e Jatobá são as bolas da vez, com entrega prevista para 2019. Para garantir a construção das UHEs, o governo reduziu a área de UCs por meio da Medida Provisória nº 558 (chamada de MP da desafetação), convertida na Lei nº 12.678, de 25 de junho de 2012.
A medida diminuiu o território dos parques nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos e de Mapinguari, das Florestas Nacionais de Itaituba I, Itaituba II e do Crepori e da Área de Proteção Ambiental do Tapajós.
“Se era realmente preciso rever essas áreas, que se fizesse isso por lei. Assim, a sociedade civil teria tempo para se organizar. Mas, sendo uma MP, basta a presidente assinar”, pontua o procurador da República Luís de Camões Lima Boaventura, do MPF em Santarém.
Faz coro com ele Mariana Ferreira, superintendente de Políticas Públicas do WWF-Brasil: “A redução de UCs é uma tendência no mundo todo, mas o processo natural seria um projeto de lei, que implica participação, organização, enfim, um trâmite democrático. Já uma MP queima essas etapas”.
Estudo publicado este ano na revista Conservation Biology identificou 93 eventos que mudaram os limites ou categorias de UCs brasileiras no últimos 31 anos. Destes, 69 ocorreram em UCs de proteção integral e 24 em unidades de uso sustentável. (Mais aqui)
A população local também não foi consultada sobre a entrada de técnicos para fazer os estudos de viabilidade no território. Em março de 2013, pesquisadores e técnicos de apoio entraram no território Munduruku com respaldo do Exército para fazer estudos que subsidiariam o estudo de impacto ambiental (EIA-Rima) das obras de São Luiz do Tapajós. O MPF conseguiu suspender a operação na Justiça, mas a decisão foi revertida logo depois.
Essas idas e vindas acabam por encarecer os processos, acirram as polaridades entre os “totalmente a favor e os totalmente contra”, e atrasam as obras. Mais barato, e honesto, seria realizar uma consulta livre, prévia e informada como a reclamada pelas populações locais e pelo MPF, respaldado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Em resumo: conversar e negociar. A experiência mostra que a ausência de negociação é a origem das demandas contra os empreendimentos.
“A maioria das demandas observadas em ações civis públicas propostas em relação às UHEs de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau é de cunho social”, afirma a professora do curso de Direito da Fundação Getulio Vargas Flavia Scabin, coautora de estudo inédito sobre as ações civis públicas (ACPs) propostas durante e depois do processo de licenciamento das três hidrelétricas citadas.
O estudo, que analisou 40 ACPs, detectou que as demandas de cunho exclusivamente social foram as mais frequentes (20), enquanto que cinco tratavam de algum aspecto exclusivamente ambiental e seis traziam demandas sociais e ambientais ao mesmo tempo. As nove restantes diziam respeito principalmente a algum procedimento específico do licenciamento.
COMPENSAÇÕES
Nesse cenário, é legítimo indagar sobre as possibilidades reais do fortalecimento da governança. “A gente está em cima da hora, mas ainda dá para consertar e consultar as populações”, diz Ana Cristina Barros, diretora de infraestrutura para a América Latina da The Nature Conservancy (TNC). “Infraestrutura tem de ser vetor de desenvolvimento local. Isso implica a capacidade de gestão de impactos e receitas. A região tem indicadores ruins de saúde, educação, desmatamento. Sabemos que isso tradicionalmente piora com as grandes obras. Então, temos de preparar os municípios para esses eventos”, afirma.
Segundo ela, antes de a empresa ganhar a concorrência pública, o Estado deveria estar lá preparando o terreno. “Hoje não existe esse mecanismo e ainda não há quem financie o investimento antecipado (mais sobre fundo antecipatório em Entrevista e em Reportagem).
“Em Belo Monte, o Estado chegou depois. Mas, no Tapajós, existe uma motivação de fazer direito, porque a proximidade temporal com Belo Monte é muito grande. Se você tem uma pauta de desenvolvimento antecipado, transfere os benefícios para os locais”, diz.
De acordo com o relatório que estimou a Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH) [2] para hidrelétricas na Amazônia (TNC e Instituto Acende Brasil, 2013), a UHE de Jatobá deverá pagar R$ 57,2 milhões por ano como compensação financeira, dos quais a prefeitura de Itaituba receberá cerca de R$ 15 milhões/ano e a de Jacareacanga, R$ 7 milhões/ano. Para a Usina de São Luiz calculou-se o valor de R$ 150,3 milhões por ano como CFURH, dos quais R$ 41,5 milhões/ano deverão ir para Itaituba e R$ 18,5 milhões/ano para Trairão. forma de compensação“, diz. No relatório da TNC, não há estimativa de CFURH para a usina hidrelétrica do Chacorão, que impacta diretamente a TI Munduruku, no município de Jacareacanga.
[2] Instituída pela Constituição Federal de 1988, a CFURH é um Percentual pago pelas concessionárias como indenização pela utilização de recursos hídricos para geração de energia elétrica. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) gerencia, arrecada e distribui os valores entre os beneficiários
Para o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Philip Fearnside, “as compensações criam interessados no dinheiro, influenciam as políticas locais e as lideranças, e facilitam a promoção de obras com muitos impactos. Cria-se um conflito de interesse. As decisões sobre as obras têm de ser independentes da influência do dinheiro que se vai gerar de compensação”, diz.
HIDROVIA E PORTOS
Chacorão e as duas outras UHEs com sistema de eclusas planejadas para o Tapajós são cruciais para a viabilização da Hidrovia Teles Pires-Tapajós.
De acordo com o relatório Plano Hidroviário Estratégico 2013, “…o transporte hidroviário interior entre Santarém e Cachoeira Rasteira depende diretamente da construção de usinas hidrelétricas com sistemas de eclusas, o que permitiria a navegação ao longo de extensos segmentos dos rios”. Contudo, trecho do documento cita a TI Kayabi como altamente sensível:
“Mesmo se essas duas barragens forem construídas com eclusas, a terceira, que é necessária para superar as corredeiras de Cachoeira Rasteira, localizada entre a Usina Hidrelétrica de Chacorão e a de São Manoel (no Rio Teles Pires), teria seu reservatório localizado no território indígena nomeado de ‘Kayabi’ , altamente sensível do ponto de vista socioambiental”.
Com as UHEs e a hidrovia, diversos portos estão planejados para Itaituba e entorno, com financiamento privado. Um deles, da americana Bunge, maior exportadora de grãos do País, está pronto desde abril. A investida de empresas como ADM, Cargill e Amaggi, entre outras, que têm planos de portos no município, também é vista por Ana Cristina, da TNC, como oportunidade.
GOVERNANÇA E SINERGIA
“Estima-se que os primeiros seis portos vão gerar para a prefeitura R$ 20 milhões ao ano”, diz. “Por isso, é preciso tirar o atraso local de governança e preparar esses territórios para dar um salto de qualidade.”
Ana Cristina cita uma iniciativa da Associação dos Terminais Privados do Rio Tapajós (Atap) como exemplo do fortalecimento da governança local. “A Atap chamou a prefeitura de Itaituba e discutiu uma agenda mínima de investimento, prioridades e de planejamento”, conta.
A iniciativa gerou um termo de compromisso pelo qual, segundo publicado em reportagem do jornal Valor Econômico em novembro do ano passado, seis empresas associadas à Atap prontificaram-se a repassar cerca de R$ 12 milhões ao município em 15 parcelas a partir da entrega da licença de instalação. Segundo o texto, a associação se comprometeu a elaborar um projeto de aterro sanitário e coleta seletiva e a instalar uma unidade de Corpo de Bombeiros no município, entre outras atribuições.
Ane Alencar, diretora do Programa Cenários para a Amazônia do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam), cita sua experiência na BR-163 com certa melancolia, lembrando que, antes mesmo de sair a licença prévia para a pavimentação da rodovia, em 2005, formou-se um grupo de estudos sobre os impactos da obra. (Mais sobre a BR-163 em reportagem)
“Nós fomos a campo, reunimos as lideranças, geramos um plano, que foi levado para a então ministra Marina Silva, e ela se sensibilizou. O processo andou muito bem no início. Criou-se um bloco de UCs nas proximidades da BR-163, e também na Terra do Meio, localizada na região central do Pará. Pouco depois, a irmã Dorothy Stang morreu, o que também acabou forçando o aumento da presença do Estado na região. Com a saída da ministra Marina do governo Lula, em 2008, o plano foi abandonado, o que provocou um choque de governança, já que havia sido criada uma expectativa”, resume Ane.
42 mil pessoas serão atraídas para Itaituba em função das obras da Usina de São Luiz. A população atual é de 100 mil habitantes
130 mil pessoas devem ir para a região do Tapajós se todas as usinas saírem do papel