Acrescentar o custo das externalidades ao preço dos bens e serviços é solução para conter a exploração dos recursos naturais e promover a equidade social. Ou não?
No meio econômico, o professor da Escola de Economia de Paris, Thomas Piketty [1], com o seu O Capital no Século XXI, jogou luz sobre os mecanismos financeiros globais e seus processos de apropriação, descortinando as responsabilidades pelo aumento da desigualdade no mundo. Ou seriam desigualdades, no plural? No meio ecológico, sim. Afinal, os menos aquinhoados na distribuição da renda também são os que mais “pagam” pelas externalidades negativas ambientais. Eventos decorrentes do aquecimento global, como inundações, seca, avanço dos oceanos, furacões, entre outros, vão desabrigar, ferir e até matar, sobretudo, aqueles que não tiverem condições materiais para se adaptar a tais fenômenos (mais em “Perdas e danos”). Nesse caso, é urgente não só distribuir melhor a renda, mas conter a degradação do meio ambiente. Como?
[1] O livro em português deverá ser lançado no Brasil pela Editora Intrínseca em novembro
Precificar todas as externalidades e incorporar este custo no valor final dos bens e serviços é, para muitos, o caminho mais viável por ser compatível com a lógica capitalista. De qualquer modo, a sociedade já é indistintamente cobrada ao ter de enfrentar, por exemplo, congestionamentos diários, mesmo aqueles que são usuários do transporte público. Ou falta de água, mesmo aqueles que são usuários comedidos e conscientes.
Mais justo seria cobrar apenas de quem contribui para agravar o problema. Como também geram impactos negativos, os pobres não seriam de novo os mais penalizados? De onde tirar dinheiro para pagar mais por possuir e usar um automóvel, ou para tomar um banho mais demorado? Ninguém afirma que a internalização das externalidades no custo das coisas é 100% justa. Aliás, fortes argumentações contrárias não faltam.
Bem antes de o livro de Piketty chegar às livrarias e se tornar best-seller [2], economistas como a pesquisadora e palestrante Kate Raworth já incluíam o tema do combate à desigualdade nos debates sobre as mudanças climáticas e os limites planetários. Uma das suas mensagens do relatório Podemos viver dentro de um donut?, apresentado em 2012 pela rede Oxfam [3], durante a Rio+20, dizia que a riqueza extrema é algo tão crítico quanto a pobreza extrema.
[2] A edição em inglês ficou vários dias em primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon
[3] Confederação internacional de 17 organizações que atuam em rede em 94 países – visando construir um futuro livre da injustiça e da pobreza
Na época, a pesquisadora falava que o grande desafio para combater essa desigualdade era a criação de um sistema de governança para fronteiras planetárias e sociais em nível internacional. Passados dois anos, continua tudo na mesma. “Os processos de apropriação de renda por meio dos grandes mecanismos financeiros mantêm-se em fluxo planetário, e não há um sistema de governança equivalente”, comenta o economista, professor da pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ladislau Dowbor.
PREÇO MENTIROSO
À primeira vista, somar ao preço dos bens e serviços o respectivo custo das externalidades ambientais negativas – o que se chama de precificar ou internalizar as externalidades – provocaria ainda mais desigualdade de renda. Só que não.
Por exemplo, para o preço de um hambúrguer ser mais realista precisaria embutir os gastos com tratamentos de obesidade e doenças crônicas provocadas pela carne vermelha, os custos da destinação dos resíduos gerados, o valor da água usada na produção desde a irrigação dos grãos que alimentaram o gado até a produção das embalagens, a perda de biodiversidade com a derrubada de florestas para implantação de pastagens, a contaminação por agrotóxicos etc.
O colunista do jornal The New York Times, Mark Bittman, no artigo “The true cost of a burger” [Acesse o artigo] apresenta algumas contas e conclui: contando-se apenas as externalidades negativas mais fáceis de calcular, o preço de um hambúrguer, que nos Estados Unidos está custando em média US$ 4,49, deveria subir entre 68 centavos de dólar e US$ 2,90.
Mesmo que dobre de preço, os mais ricos continuarão comendo hambúrguer e permanecerão ricos. Aos mais pobres, porém, o lanche parecerá mais “indigesto”. A tendência, portanto, é a procura por fast food diminuir, o que, em última análise, pode ser muito bom para a saúde dos ex-consumidores e do planeta. Para recuperar a competitividade, toda a cadeia ligada ao negócio – desde agropecuária, indústrias de alimentação, varejo, fornecedores –, em tese, teria de fazer valer os princípios da sustentabilidade. Sem tantas externalidades negativas, o preço do hambúrguer aos poucos se aproximaria novamente dos US$ 4,49. Se essa lógica funcionar de fato, significa que o sistema econômico, tido como o grande vilão do meio ambiente, é capaz de gerar externalidade positiva por meio da monetização de itens intangíveis.
“A internalização das externalidades negativas no sistema de preços, de fato, atinge os mais pobres por estrutura de custo, mas a melhoria da qualidade ambiental que se espera obter com a medida leva a uma equidade positiva”, atesta o professor de Economia do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ronaldo Serôa da Motta. Segundo seu raciocínio, quanto maior a renda, maior o consumo de água, energia, turismo, combustíveis etc. Ou seja, quem tem mais renda tende a consumir mais de tudo.
Assim, grande parte da geração de receita, seja com os aumentos dos preços, seja com a cobrança de tributos ambientais, vai se originar das pessoas com nível de renda mais alto. No entendimento de Serôa da Motta, isso permite uma reciclagem dos recursos com o objetivo de amenizar, reverter ou anular os efeitos de aumento da desigualdade.
Externalidade é tudo aquilo que produz algum impacto negativo ou positivo sobre alguém e que não entra no sistema de preços. O sociólogo Ricardo Abramovay, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo, usa a definição de externalidades para mostrar como o regime de preço atual é mentiroso. “Temos de praticar preços realistas quanto ao custo que os produtos e serviços impõem à sociedade e aos ecossistemas”, defende. Para ilustrar, cita o caso das embalagens não retornáveis de bebida. Quando a indústria eliminou da vida social o custo de levar garrafas vazias ao depósito para trocar pelas cheias, não incorporou no preço das cervejas e dos refrigerantes o enorme gasto com energia em reciclagens de vidro, latas e PETs.
Hoje também se comemora o preço mais popular do salmão. “Mas quem vai arcar com o prejuízo que as produções ultraconcentradas de pescados estão provocando aos ecossistemas?”, questiona Abramovay. Carlos Eduardo Frickmann Young, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), entrevistado desta edição, tem uma boa resposta: “O passivo ambiental de hoje é o passivo do Estado amanhã”. Ele atribui a autoria da frase ao colega Carlos Mussi, especialista em economia do setor público e diretor do escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) no Brasil. “Mussi quis dizer que, ao permitir um problema ambiental, estamos criando um problema para as contas públicas, que ao final serão pagas por toda a sociedade”, afirma.
Os Estados Unidos acabam de criar um órgão de governo – U.S. Social and Behavioral Sciences Team – para fazer experimentos de economia comportamental com políticas públicas. A ideia é documentar e comparar os impactos entre os vários modelos de políticas públicas
A ocupação do espaço urbano, segundo Young, é outra esfera que sintetiza bem o problema dos “custos a posteriori”. Todos sabem que melhor seria impedir a construção nas encostas dos morros, dadas as chances de desmoronamentos, mas, por razões socioeconômicas, as ocupações inadequadas persistem. No entanto, o custo de remoção dos moradores em situação de risco é muito mais alto do que impedir a ocupação. Por isso, em sua opinião, para avançar na questão ambiental, o País tem de avançar simultaneamente na questão fiscal, impondo tributações ambientais e precificando as externalidades negativas.
Outro fenômeno que permite associar externalidades negativas ambientais às desigualdades é o do aquecimento da temperatura média do planeta decorrente da mudança climática. Por exigir uma solução global, o professor do Departamento de Economia da PUC-RJ Sergio Besserman crê que, entre todos, esse é o problema mais grave.
“A mudança climática ainda trará prejuízos gigantescos, em dinheiro, sofrimento, perda de vidas. Esse custo se abaterá principalmente sobre as populações pobres do planeta”, enfatiza. Aproveitar toda a engrenagem do mercado para enfrentar a mudança climática parece bem mais complicado do que calcular as externalidades negativas não computadas no preço de um hambúrguer.
Besserman explica que o mercado se orienta pelo sinal que os preços dão, e os preços hoje não incluem emissões de gases de efeito estufa. “O direito de emitir CO2 é público e é de graça.” Segundo ele, o mercado só trabalhará a favor de uma solução se, no preço de tudo, e não apenas de energia e transporte, estiver embutido um custo pelas emissões.
E esse movimento tem de ser global. Caso contrário, um país que introduzir barreiras para emissões perderá competitividade em relação aos que não se mexerem. “Se a Califórnia proíbe a produção de algum bem poluente, e a Tailândia continua produzindo esse mesmo bem, a única coisa que acontece é a queda do nível de emprego na Califórnia”, afirma. “O planeta continuará esquentando do mesmo jeito.”
SOLUÇÃO NEOLIBERAL?
Nem todo mundo crê em uma solução de mercado para a conservação da natureza e equidade social. O jornalista e escritor inglês George Monbiot diz no artigo “The pricing of everything”, publicado em seu blog e em sua coluna semanal no jornal The Guardian, que, embora a agenda do chamado “capital natural” pareça uma resposta à crise ambiental, é na verdade uma ilusão. Para Monbiot, o colapso moral e ideológico do sistema capitalista neoliberal, retratado por Piketty, torna o momento propício para se inventar teorias e mecanismos de precificação, sob o argumento de que é possível salvar a natureza da degradação. “Depois de tanto mal causado à natureza, o sistema capitalista neoliberal apresenta a solução que salvará o mundo natural”, ironiza.
Entre vários exemplos concretos de como a introdução de mecanismos de mercado pode acabar provocando mais externalidades negativas ambientais, o jornalista cita um caso que se passa nos arredores da cidade inglesa de Sheffield, onde uma floresta, a Smithy Wood, é cortada por uma rodovia. Devido à política de compensação ambiental, um grupo empresarial tenta construir um posto de serviços à beira da estrada. Para isso, propõe derrubar parte da floresta e fazer a compensação ambiental com plantio de algumas dezenas de milhares de mudas em outra região.
Para Monbiot, essa é uma consequência desastrosa que nasce da ideia de que a natureza é negociável. “Uma demanda como a de Smithy Wood seria impensável se não existisse o sistema de compensações ambientais.”
Barbara Unmüßig, ambientalista alemã, presidente da Fundação Heinrich Böll, encontra-se no rol dos críticos da monetização. No estudo Monetizing Nature: taking precaution on a slipperyslope (em tradução livre, o título quer dizer que monetizar a natureza é como andar em uma ladeira escorregadia, exige precaução), ela diz que o argumento de que razões econômicas produziriam uma vontade política de impedir a destruição da natureza ou de facilitar a sua reabilitação não é necessariamente verdade.
Em sua opinião, se a diferença entre valoração e mercantilização é clara na teoria, na prática é turva. Isto é, avaliações por si só podem não implicar riscos à natureza. No entanto, a precificação muda a forma como vemos e nos relacionamos com a natureza e pode abrir o caminho para a privatização dos serviços ecossistêmicos. “Temos de abordar a monetização da natureza com grande cautela e não permitir o enfraquecimento do princípio da precaução”, adverte.
VIA DO MEIO
O ponto de vista da Prêmio Nobel de Economia de 2009, Elinor Ostrom, laureada por suas contribuições sobre as formas como as decisões são tomadas fora dos mercados, é o de que não se deve buscar uma solução privada para os recursos naturais. Segundo relato de Guilherme Lichand [4], doutorando em Economia Política e Governo na Universidade Harvard, a pesquisa da cientista política Elinor Ostrom documentou que em vários casos, em particular para os pescadores de lagostas no Maine (EUA), os indivíduos inicialmente não consideram a externalidade em sua atividade. Ou seja, não acreditam que o recurso que retiram da natureza pertence ao conjunto da vizinhança e não só a ele, um conflito conhecido em Economia como “a tragédia dos comuns”, envolvendo interesses individuais e o bem comum.
[4] Sócio da M-Gov Brasil, consultoria em gestão de políticas públicas
Uma solução seria aumentar o preço e compensar a comunidade pelas lagostas a menos no mar. Mas, ao fazer isso, o pescador monetiza também a sua culpa pela pesca, e o tiro pode sair pela culatra. “Pagamentos muitas vezes legitimam a exploração econômica do recurso”, explica Lichand.
Elinor concluiu que uma gestão mista, parte pública e parte privada, com regras formais e informais, seria mais eficiente para a comunidade do Maine atingida pela externalidade provocada pela pesca. O preço internaliza uma parte da externalidade, e a gestão pública impede que a exploração econômica desvinculada dos outros valores não incorporados no preço se legitime.
“Preço não é valor, é uma interação entre oferta e demanda que traduz a escassez relativa”, explica o doutorando de Harvard. “Se as pessoas estiverem preocupadas com valor e não apenas com escassez relativa, o preço nunca traduzirá tudo o que uma lagosta dentro do mar vale para uma comunidade.”
Apesar das incertezas sobre o melhor caminho para diminuir o ritmo das externalidades ambientais e de seus impactos no aumento da desigualdade, a riqueza dos debates sobre o tema é um sinal de que pelo menos as cortinas já se abriram para o problema.
Leia mais sobre mecanismos de precificação de bens sem valor de mercado aqui.[:en]Acrescentar o custo das externalidades ao preço dos bens e serviços é solução para conter a exploração dos recursos naturais e promover a equidade social. Ou não?
No meio econômico, o professor da Escola de Economia de Paris, Thomas Piketty [1], com o seu O Capital no Século XXI, jogou luz sobre os mecanismos financeiros globais e seus processos de apropriação, descortinando as responsabilidades pelo aumento da desigualdade no mundo. Ou seriam desigualdades, no plural? No meio ecológico, sim. Afinal, os menos aquinhoados na distribuição da renda também são os que mais “pagam” pelas externalidades negativas ambientais. Eventos decorrentes do aquecimento global, como inundações, seca, avanço dos oceanos, furacões, entre outros, vão desabrigar, ferir e até matar, sobretudo, aqueles que não tiverem condições materiais para se adaptar a tais fenômenos (mais em “Perdas e danos”). Nesse caso, é urgente não só distribuir melhor a renda, mas conter a degradação do meio ambiente. Como?
[1] O livro em português deverá ser lançado no Brasil pela Editora Intrínseca em novembro
Precificar todas as externalidades e incorporar este custo no valor final dos bens e serviços é, para muitos, o caminho mais viável por ser compatível com a lógica capitalista. De qualquer modo, a sociedade já é indistintamente cobrada ao ter de enfrentar, por exemplo, congestionamentos diários, mesmo aqueles que são usuários do transporte público. Ou falta de água, mesmo aqueles que são usuários comedidos e conscientes.
Mais justo seria cobrar apenas de quem contribui para agravar o problema. Como também geram impactos negativos, os pobres não seriam de novo os mais penalizados? De onde tirar dinheiro para pagar mais por possuir e usar um automóvel, ou para tomar um banho mais demorado? Ninguém afirma que a internalização das externalidades no custo das coisas é 100% justa. Aliás, fortes argumentações contrárias não faltam.
Bem antes de o livro de Piketty chegar às livrarias e se tornar best-seller [2], economistas como a pesquisadora e palestrante Kate Raworth já incluíam o tema do combate à desigualdade nos debates sobre as mudanças climáticas e os limites planetários. Uma das suas mensagens do relatório Podemos viver dentro de um donut?, apresentado em 2012 pela rede Oxfam [3], durante a Rio+20, dizia que a riqueza extrema é algo tão crítico quanto a pobreza extrema.
[2] A edição em inglês ficou vários dias em primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon
[3] Confederação internacional de 17 organizações que atuam em rede em 94 países – visando construir um futuro livre da injustiça e da pobreza
Na época, a pesquisadora falava que o grande desafio para combater essa desigualdade era a criação de um sistema de governança para fronteiras planetárias e sociais em nível internacional [Leia a entrevista completa]. Passados dois anos, continua tudo na mesma. “Os processos de apropriação de renda por meio dos grandes mecanismos financeiros mantêm-se em fluxo planetário, e não há um sistema de governança equivalente”, comenta o economista, professor da pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Ladislau Dowbor.
PREÇO MENTIROSO
À primeira vista, somar ao preço dos bens e serviços o respectivo custo das externalidades ambientais negativas – o que se chama de precificar ou internalizar as externalidades – provocaria ainda mais desigualdade de renda. Só que não.
Por exemplo, para o preço de um hambúrguer ser mais realista precisaria embutir os gastos com tratamentos de obesidade e doenças crônicas provocadas pela carne vermelha, os custos da destinação dos resíduos gerados, o valor da água usada na produção desde a irrigação dos grãos que alimentaram o gado até a produção das embalagens, a perda de biodiversidade com a derrubada de florestas para implantação de pastagens, a contaminação por agrotóxicos etc.
O colunista do jornal The New York Times, Mark Bittman, no artigo “The true cost of a burger” [Acesse o artigo] apresenta algumas contas e conclui: contando-se apenas as externalidades negativas mais fáceis de calcular, o preço de um hambúrguer, que nos Estados Unidos está custando em média US$ 4,49, deveria subir entre 68 centavos de dólar e US$ 2,90.
Mesmo que dobre de preço, os mais ricos continuarão comendo hambúrguer e permanecerão ricos. Aos mais pobres, porém, o lanche parecerá mais “indigesto”. A tendência, portanto, é a procura por fast food diminuir, o que, em última análise, pode ser muito bom para a saúde dos ex-consumidores e do planeta. Para recuperar a competitividade, toda a cadeia ligada ao negócio – desde agropecuária, indústrias de alimentação, varejo, fornecedores –, em tese, teria de fazer valer os princípios da sustentabilidade. Sem tantas externalidades negativas, o preço do hambúrguer aos poucos se aproximaria novamente dos US$ 4,49. Se essa lógica funcionar de fato, significa que o sistema econômico, tido como o grande vilão do meio ambiente, é capaz de gerar externalidade positiva por meio da monetização de itens intangíveis.
“A internalização das externalidades negativas no sistema de preços, de fato, atinge os mais pobres por estrutura de custo, mas a melhoria da qualidade ambiental que se espera obter com a medida leva a uma equidade positiva”, atesta o professor de Economia do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ronaldo Serôa da Motta. Segundo seu raciocínio, quanto maior a renda, maior o consumo de água, energia, turismo, combustíveis etc. Ou seja, quem tem mais renda tende a consumir mais de tudo.
Assim, grande parte da geração de receita, seja com os aumentos dos preços, seja com a cobrança de tributos ambientais, vai se originar das pessoas com nível de renda mais alto. No entendimento de Serôa da Motta, isso permite uma reciclagem dos recursos com o objetivo de amenizar, reverter ou anular os efeitos de aumento da desigualdade.
Externalidade é tudo aquilo que produz algum impacto negativo ou positivo sobre alguém e que não entra no sistema de preços. O sociólogo Ricardo Abramovay, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo, usa a definição de externalidades para mostrar como o regime de preço atual é mentiroso. “Temos de praticar preços realistas quanto ao custo que os produtos e serviços impõem à sociedade e aos ecossistemas”, defende. Para ilustrar, cita o caso das embalagens não retornáveis de bebida. Quando a indústria eliminou da vida social o custo de levar garrafas vazias ao depósito para trocar pelas cheias, não incorporou no preço das cervejas e dos refrigerantes o enorme gasto com energia em reciclagens de vidro, latas e PETs.
Hoje também se comemora o preço mais popular do salmão. “Mas quem vai arcar com o prejuízo que as produções ultraconcentradas de pescados estão provocando aos ecossistemas?”, questiona Abramovay. Carlos Eduardo Frickmann Young, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), entrevistado desta edição, tem uma boa resposta: “O passivo ambiental de hoje é o passivo do Estado amanhã”. Ele atribui a autoria da frase ao colega Carlos Mussi, especialista em economia do setor público e diretor do escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) no Brasil. “Mussi quis dizer que, ao permitir um problema ambiental, estamos criando um problema para as contas públicas, que ao final serão pagas por toda a sociedade”, afirma.
Os Estados Unidos acabam de criar um órgão de governo – U.S. Social and Behavioral Sciences Team – para fazer experimentos de economia comportamental com políticas públicas. A ideia é documentar e comparar os impactos entre os vários modelos de políticas públicas
A ocupação do espaço urbano, segundo Young, é outra esfera que sintetiza bem o problema dos “custos a posteriori”. Todos sabem que melhor seria impedir a construção nas encostas dos morros, dadas as chances de desmoronamentos, mas, por razões socioeconômicas, as ocupações inadequadas persistem. No entanto, o custo de remoção dos moradores em situação de risco é muito mais alto do que impedir a ocupação. Por isso, em sua opinião, para avançar na questão ambiental, o País tem de avançar simultaneamente na questão fiscal, impondo tributações ambientais e precificando as externalidades negativas.
Outro fenômeno que permite associar externalidades negativas ambientais às desigualdades é o do aquecimento da temperatura média do planeta decorrente da mudança climática. Por exigir uma solução global, o professor do Departamento de Economia da PUC-RJ Sergio Besserman crê que, entre todos, esse é o problema mais grave.
“A mudança climática ainda trará prejuízos gigantescos, em dinheiro, sofrimento, perda de vidas. Esse custo se abaterá principalmente sobre as populações pobres do planeta”, enfatiza. Aproveitar toda a engrenagem do mercado para enfrentar a mudança climática parece bem mais complicado do que calcular as externalidades negativas não computadas no preço de um hambúrguer.
Besserman explica que o mercado se orienta pelo sinal que os preços dão, e os preços hoje não incluem emissões de gases de efeito estufa. “O direito de emitir CO2 é público e é de graça.” Segundo ele, o mercado só trabalhará a favor de uma solução se, no preço de tudo, e não apenas de energia e transporte, estiver embutido um custo pelas emissões.
E esse movimento tem de ser global. Caso contrário, um país que introduzir barreiras para emissões perderá competitividade em relação aos que não se mexerem. “Se a Califórnia proíbe a produção de algum bem poluente, e a Tailândia continua produzindo esse mesmo bem, a única coisa que acontece é a queda do nível de emprego na Califórnia”, afirma. “O planeta continuará esquentando do mesmo jeito.”
SOLUÇÃO NEOLIBERAL?
Nem todo mundo crê em uma solução de mercado para a conservação da natureza e equidade social. O jornalista e escritor inglês George Monbiot diz no artigo “The pricing of everything”, publicado em seu blog e em sua coluna semanal no jornal The Guardian, que, embora a agenda do chamado “capital natural” pareça uma resposta à crise ambiental, é na verdade uma ilusão. Para Monbiot, o colapso moral e ideológico do sistema capitalista neoliberal, retratado por Piketty, torna o momento propício para se inventar teorias e mecanismos de precificação, sob o argumento de que é possível salvar a natureza da degradação. “Depois de tanto mal causado à natureza, o sistema capitalista neoliberal apresenta a solução que salvará o mundo natural”, ironiza.
Entre vários exemplos concretos de como a introdução de mecanismos de mercado pode acabar provocando mais externalidades negativas ambientais, o jornalista cita um caso que se passa nos arredores da cidade inglesa de Sheffield, onde uma floresta, a Smithy Wood, é cortada por uma rodovia. Devido à política de compensação ambiental, um grupo empresarial tenta construir um posto de serviços à beira da estrada. Para isso, propõe derrubar parte da floresta e fazer a compensação ambiental com plantio de algumas dezenas de milhares de mudas em outra região.
Para Monbiot, essa é uma consequência desastrosa que nasce da ideia de que a natureza é negociável. “Uma demanda como a de Smithy Wood seria impensável se não existisse o sistema de compensações ambientais.”
Barbara Unmüßig, ambientalista alemã, presidente da Fundação Heinrich Böll, encontra-se no rol dos críticos da monetização. No estudo Monetizing Nature: taking precaution on a slipperyslope (em tradução livre, o título quer dizer que monetizar a natureza é como andar em uma ladeira escorregadia, exige precaução), ela diz que o argumento de que razões econômicas produziriam uma vontade política de impedir a destruição da natureza ou de facilitar a sua reabilitação não é necessariamente verdade.
Em sua opinião, se a diferença entre valoração e mercantilização é clara na teoria, na prática é turva. Isto é, avaliações por si só podem não implicar riscos à natureza. No entanto, a precificação muda a forma como vemos e nos relacionamos com a natureza e pode abrir o caminho para a privatização dos serviços ecossistêmicos. “Temos de abordar a monetização da natureza com grande cautela e não permitir o enfraquecimento do princípio da precaução”, adverte.
VIA DO MEIO
O ponto de vista da Prêmio Nobel de Economia de 2009, Elinor Ostrom, laureada por suas contribuições sobre as formas como as decisões são tomadas fora dos mercados, é o de que não se deve buscar uma solução privada para os recursos naturais. Segundo relato de Guilherme Lichand [4], doutorando em Economia Política e Governo na Universidade Harvard, a pesquisa da cientista política Elinor Ostrom documentou que em vários casos, em particular para os pescadores de lagostas no Maine (EUA), os indivíduos inicialmente não consideram a externalidade em sua atividade. Ou seja, não acreditam que o recurso que retiram da natureza pertence ao conjunto da vizinhança e não só a ele, um conflito conhecido em Economia como “a tragédia dos comuns”, envolvendo interesses individuais e o bem comum.
[4] Sócio da M-Gov Brasil, consultoria em gestão de políticas públicas
Uma solução seria aumentar o preço e compensar a comunidade pelas lagostas a menos no mar. Mas, ao fazer isso, o pescador monetiza também a sua culpa pela pesca, e o tiro pode sair pela culatra. “Pagamentos muitas vezes legitimam a exploração econômica do recurso”, explica Lichand.
Elinor concluiu que uma gestão mista, parte pública e parte privada, com regras formais e informais, seria mais eficiente para a comunidade do Maine atingida pela externalidade provocada pela pesca. O preço internaliza uma parte da externalidade, e a gestão pública impede que a exploração econômica desvinculada dos outros valores não incorporados no preço se legitime.
“Preço não é valor, é uma interação entre oferta e demanda que traduz a escassez relativa”, explica o doutorando de Harvard. “Se as pessoas estiverem preocupadas com valor e não apenas com escassez relativa, o preço nunca traduzirá tudo o que uma lagosta dentro do mar vale para uma comunidade.”
Apesar das incertezas sobre o melhor caminho para diminuir o ritmo das externalidades ambientais e de seus impactos no aumento da desigualdade, a riqueza dos debates sobre o tema é um sinal de que pelo menos as cortinas já se abriram para o problema.
Leia mais sobre mecanismos de precificação de bens sem valor de mercado aqui.