Permanecer on-line por tempo ilimitado tornou-se um grave problema de saúde,com impactos também sobre os relacionamentos pessoais e profissionais
Com a popularização da internet, é cada vez mais difícil resistir à tentação de manter-se conectado 24 horas por dia. A expansão do acesso à rede segue em sua trajetória vertiginosa. Pesquisas da agência de estudos em telecomunicações das Nações Unidas indicam que até o fim deste ano o número de usuários da rede em todo o mundo chegará a 3 bilhões. Isso representa 40% da população mundial.
Mas essa fascinação pela vida virtual pode trazer complicações para os fãs da rede. O hábito de permanecer on-line por tempo indeterminado tem sido motivo de preocupação na área médica, a ponto de a Associação Americana de Psicologia reconhecer que essa compulsão pode chegar a ser diagnosticada como transtorno do vício de internet (Internet Addiction Disorder).
No Brasil, o acesso à rede alcança 105 milhões de usuários. Há um consenso entre especialistas de que 10% desse total já estejam viciados em internet. Esse percentual tende a ser composto majoritariamente por jovens, que são seduzidos a permanecer conectados até quando estão na rua.
O brasileiro gasta em média uma hora e meia por dia usando smartphones. “Quando a gente se conecta, a tendência é perder a noção de tempo. E quando nos damos conta ficamos um tempo muito maior do que a gente previa e podia. É como uma vitrine, você vai olhando uma coisa aqui e outra ali e quando vê ficou tempo demais”, comenta Sylvia van Enck, psicóloga clínica colaboradora do Núcleo de Dependências Tecnológicas e Internet do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, que disponibiliza um teste para avaliar o grau de dependência de usuários da internet.
A China foi o primeiro país a declarar que o vício em internet é uma doença que precisa ser tratada. Para isso, foram construídas 400 clínicas de reabilitação com camas de beliche em quartos apertados, disciplina militar, sessões de terapia em grupo, medicação compulsória e, claro, nenhum acesso à internet para ajudar seus pacientes a recuperarem a sociabilidade perdida com o vício. Entre os pacientes, a maioria são adolescentes do sexo masculino, entre 13 e 18 anos.
O uso intensivo da tecnologia pode levar ao isolamento social e afetivo. Progressivamente o indivíduo se distancia dos amigos, de familiares e dos colegas de trabalho. No Japão, o número de pessoas solteiras atingiu uma alta recorde e pesquisas indicam que uma quantidade significativa de homens e mulheres não está interessada em contato sexual. Mas a aversão à intimidade na vida moderna, assim como a preocupação com o uso intensivo da tecnologia digital, não é exclusividade do Japão.
O vínculo afetivo e a oportunidade da troca de experiência no mundo físico possibilitam que o indivíduo se torne pertencente a um núcleo. Quando não existe esse vínculo, a tendência é sentir-se só. “Corre o risco de a pessoa acabar deprimida e com receio de enfrentar o mundo lá fora. As pessoas vão aos poucos abandonando as atividades de rotina, inclusive negligenciando aspectos de alimentação e higiene”, comenta Sylvia. Mas antes de se tornar diagnosticamente viciados, os hiperconectados podem buscar alternativas para lidar de forma homeopática com esse problema. Uma opção são os pacotes turísticos de desintoxicação digital, mercado em expansão atualmente. Hotéis que oferecem tratamentos na linha do “desconectar para se reconectar” incluem sugestões de programas off-line para aproveitar o dia em áreas isentas de qualquer tecnologia, desde televisão até os modernos tablets.
O próprio smartphone pode ser um aliado na redução da compulsão no uso da rede. O aplicativo Moment ajuda a diagnosticar o nível de dependência digital, monitorando o tempo gasto no aparelho e estabelecendo limites diários de uso.
O avanço das tecnologias digitais é um caminho sem volta, por isso, qualquer solução para o uso excessivo deverá considerar que a internet estará sempre à disposição do usuário. Para Sylvia, o caminho para resgatar a importância do contato físico é o exercício do autocontrole. Por exemplo, incluir na agenda atividades ao ar livre, academia, demandas de trabalho e de estudo, além do tempo previsto para a internet. “Passar a controlar o tempo de conexão é fundamental para trazer para si o controle desse uso”, conclui a psicóloga.
IMPACTO NO TRABALHO
Viver conectado tem suas vantagens. Muitos argumentam que os smartphones permitem cumprir horas de trabalho de forma maisflexível e com maior autonomia. Mas preocupa a percepção de que é cada vez mais difícil desconectar-se totalmente do trabalho ao fim do dia, ou nos momentos de folga.
Uma pesquisa feita pela consultoria TI Solar Winds revela que as empresas esperam que seus funcionários trabalhem mais rápido e cumpram prazos menores por estarem mais conectados. Além disso, é gerada uma expectativa de que o funcionário permaneça disponível em qualquer hora ou lugar.
Essa condição é mais um fator de estressem rotinas já bastante concorridas em termos de tempo. A professora Janiene Santos, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), diz que, diante das transformações tecnológicas e do modo de vida urbano, tem faltado mais tempo livre do que jamais faltou em outras décadas.
A velocidade da rede e a disponibilidade de tanta informação acabam se refletindo no comportamento das pessoas (mais sobre a falta de tempo na reportagem “Os novos luxos”).
De fato, mudanças tecnológicas, como o acesso à internet, têm contribuído para a intensificação da jornada de trabalho. Uma vez que o tipo de gestão empresarial predominante é orientado por metas e objetivos, o funcionário precisa cumprir sua tarefa independentemente da quantidade de horas trabalhadas.
Se não der conta durante a jornada formal, terá de terminar o trabalho em casa.
“E o pior é que não se consegue contabilizar essas horas, ou seja, além de a jornada formal já ser longa, das horas extras e de ter um tempo de trabalho denso e flexível, você ainda tem um tempo de trabalho que invade o seu tempo de não trabalho, pelo celular, computador etc.”, observa Ana Cláudia Moreira Cardoso, professora da Escola Dieese [1] de Ciências do Trabalho e pós-doutora no temada intensidade do trabalho, do tempo de trabalho e da saúde do trabalhador.
O Brasil é um dos países com uma das maiores jornadas de trabalho do mundo – 44 horas semanais – e, além disso, não possui limites de horas extras anuais. Esses e outros argumentos têm sido usados pelo Dieese em uma campanha pela redução da jornada [2] de trabalho no Brasil.
[1]Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – desenvolve pesquisas para fundamentar reivindicações do trabalhador
[2] Estudo do Dieese aponta que redução da jornada em 4 horas criaria cerca de 3,2 milhões de novos empregos, e representaria um impacto de apenas 1,99% nos custos totais das empresas
Além de contribuições para a qualidade de vida, a redução da jornada de trabalho poderia gerar impactos positivos para a economia e para o meio ambiente – pontos que podem ser conferidos no livro Time on Our Side, elaborado pelo NEF, uma instituição de pesquisa do Reino Unido (Para saber mais detalhes).
Recentemente, o bilionário mexicano do setor de Telecom, Carlos Slim, sugeriu a redução da jornada para três dias semanais e já começou a pôr a ideia em prática em sua empresa, a Telmex. Segundo ele, com essa diminuição de horas trabalhadas, os empregados terão tempo para relaxar e ficarão mais produtivos.
No Brasil, algumas empresas também têm experimentado premiar seus funcionários com tempo livre. A Coca-Cola, por exemplo, oferece seis dias livres ao longo do ano para seus empregados. “Acreditamos que as pessoas devem ter bom senso para se organizar de forma viável dentro de suas necessidades, sem prejudicar a sua vida pessoal. Por outro lado, entendemos que é fundamental incentivar nossos funcionários a terem outras atividades e interesses fora do escritório”, diz Raïssa Lumack, vice-presidente de Recursos Humanos da Coca-Cola Brasil.