Voos regulares para São Raimundo Nonato devem desencadear um ciclo virtuoso para o turismo na Serra da Capivara, onde o número de visitantes pode chegar a 3 milhões ao ano
A expectativa não é por obras hídricas para abastecimento da população e lavouras; nem por estrada nova no lugar dos caminhos esburacados ou mesmo por indústrias capazes de diminuir o abismo econômico em relação às demais regiões do País. Em São Raimundo Nonato, sertão do Piauí, a esperança de mudar a lógica da pobreza e do coronelismo está na inauguração de um aeroporto. Sim, um aeroporto qualificado para receber voos regulares, cuja obra se arrastou por 15 anos, consumiu mais de R$ 17 milhões, enfrentou irregularidades na licitação e agora está pronta, à espera da homologação pela Agência Nacional de Aviação Civil.
Qual poder de transformação teria um aeroporto com pista de 1,6 mil metros, iluminação noturna e terminal de passageiros de arquitetura futurística, em meio à Caatinga? A explicação é simples: naquele rincão, os desfiladeiros da Serra da Capivara guardam uma das maiores concentrações de pinturas rupestres do mundo, com potencial de atrair turistas e estimular negócios, sem a dependência da chuva. São mais de mil sítios arqueológicos já descobertos, além de outros agora desvendados pela ciência, revolucionando o conhecimento sobre a ocupação do continente americano pelo homem primitivo.
Pela teoria tradicional, o povoamento das Américas teria ocorrido a partir da Sibéria, mediante a travessia do estreito de Bering, por volta de 13 mil anos atrás, na última glaciação do planeta. Esses grupos teriam atingido a América do Sul cerca de 4 mil anos depois. Mas os vestígios arqueológicos do Piauí acirram o debate científico, ao indicar que a presença humana na região data de pelo menos 50 mil anos.
O aeroporto é condicionante do BNDES para liberação de R$ 13,7 milhões à construção do Museu da Natureza, um megaprojeto da Fundação Museu do Homem Americano que pretende reconstituir a evolução da fauna e da paisagem ao longo de 400 milhões de anos, incluindo a relação do homem com o meio ambiente até a configuração atual da Caatinga. “O aeroporto é importante para o projeto ser financeiramente autossuficiente
e trazer outras parcerias que dinamizem o desenvolvimento”, conta Fabricio Brollo, gerente do departamento de cultura do banco.
Grupos hoteleiros, como o Hyatt Hotels, já demonstraram interesse na região, onde o potencial de visitantes chagaria a 3 milhões por ano, segundo pesquisa realizada por uma empresa suíça de consultoria. Hoje, o número não passa de 30 mil.
O novo museu coroa o trabalho da arqueóloga brasileira Niéde Guidon, que chegou à região na década de 1980, teve ajuda de sertanejos para achar relíquias pré-históricas e ali se radicou, erguendo um império que mexeu com a realidade local. Valendo-se do prestígio internacional como cientista da Universidade de Sorbonne, na França, onde fez o doutorado, a arqueóloga articulou intercâmbios de pesquisa, a exemplo da Missão Franco-Brasileira que há três décadas estuda a área. Uma das principais conquistas foi o título de Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade, conferido pela Unesco à Serra da Capivara – reconhecimento que atraiu recursos financeiros para transformar o legado dos primeiros “brasileiros” em motor da economia. (leia entrevista com Niéde Guidon, no Blog da Redação).
Com investimento do Banco Interamericano de Desenvolvimento e governo japonês, foi construída estrutura de visitação comparável com a que existe nos parques arqueológicos mais famosos do mundo: passarelas para acesso às grotas com arte rupestre, iluminação noturna, mirantes, sinalização, trilhas, laboratórios e museu com acervo paleontológico.
Para proteger as pinturas rupestres, Niéde Guidon assumiu a cogestão do Parque Nacional Serra da Capivara com o governo federal. Com mão de ferro, enfrentou o poder dos coronéis e o machismo reinante no sertão. Tanto assim que o trabalho de vigilância nas guaritas, por exemplo, é realizado apenas por mulheres. “O Piauí é pobre porque não utiliza seu maior patrimônio, que é o arqueológico, para gerar renda e arrecadação”, lamenta a pesquisadora. Aos 82 anos, ela mantém o sonho vivo: “Só o turismo poderá garantir a sustentabilidade do que montamos”. Assim, a arqueóloga não esperou pela verba estadual e doou do próprio bolso parte dos R$ 300 mil de um prêmio científico que recebeu em 2014, para a finalização da obra do aeroporto. Não há tempo a perder.
*Jornalista