Muitos especialistas acreditam estar surgindo – ou já ter surgido – um novo ramo jurídico que atua como ferramenta de uma governança global, o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável
As leis de cada país e os tratados internacionais invocam cada vez mais os princípios de sustentabilidade, responsabilidade social e ambiental. Ao longo das últimas décadas, o imperativo do desenvolvimento sustentável se fortaleceu tanto que muitos juristas acreditam estar surgindo – ou já ter surgido – um novo ramo jurídico: o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável. Porém, como a maior parte das legislações globais, esse novo ramo enfrenta desafios que vão da dificuldade em negociar seus termos à fraqueza das garantias de aplicação.
No livro O Princípio da Sustentabilidade [1], originalmente publicado em 2008, o jurista alemão Klaus Bosselmann, professor na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, argumenta que a sustentabilidade caminha para ser reconhecida como um princípio fundamental da legislação, no mesmo pé que outros, como justiça, igualdade e liberdade.
[1] Editado no Brasil pela Revista dos Tribunais, o livro inclui a ideia de aplicar ao ambiente o conceito jurídico anglo-saxão de trusteeship. Leia sobre essa proposta no site.
Comparando a crise ambiental com a emergência dos Direitos Humanos, Bosselmann afirma que “agora precisamos admitir que a humanidade tem não só o direito a um ambiente saudável, mas também o dever de protegê-lo”. O jurista cita a expressão desse dever nas constituições Pachamama de Equador e Bolívia, mas também no artigo 225 da Carta Magna brasileira, segundo a qual o dever de proteger o meio ambiente cabe tanto ao governo quanto à coletividade [2].
[2] Saiba mais sobre os conceitos de Pachamama e direitos da natureza
Marie-Claire Cordonier Segger, diretora do Centro para o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável (CISDL, na sigla em inglês), trabalha desde os anos 1990 para formular os termos nos quais o desenvolvimento sustentável conseguiria se firmar como ramo legal. Em seus textos, ela afirma que a sustentabilidade, como princípio jurídico, deverá guiar a formulação de leis nacionais e internacionais ao longo deste século, porque pode indicar o caminho do cada vez mais necessário equilíbrio entre a globalização da economia e seus aspectos social e ambiental.
“Entendo que o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável atingiu uma maturidade que faz com que ele se diferencie dos demais ramos do Direito Internacional”, afirma a jurista Ligia Maura Costa, professora da Fundação Getulio Vargas que estuda o tema a partir de casos apresentados ao órgão de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC).
A OMC, segundo Costa, é o único organismo internacional dotado de um sistema que garante a execução de seus acordos: a retaliação. Ainda assim, muitas pessoas contestam a eficácia até mesmo desse único mecanismo. “Mas é o que temos de melhor hoje”, conforma-se. “É fato que não se pode colocar um país por trás das grades por descumprimento de tratados e convenções internacionais. É a pressão moral da comunidade internacional que atua, nem sempre com sucesso”, resume.
Da soft law à obrigação da lei
Segundo Henrique Lian, diretor de relações institucionais do Instituto Ethos, um Estado só se sente constrangido a fazer valer leis internacionais por medo de retaliações, interesse em certificar-se de que os demais Estados cumpram essas determinações e, naturalmente, pressões internas, vindas do Congresso ou da sociedade civil. Mesmo assim, Lian estima que a consolidação do Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável está ocorrendo a passo firme, ainda que lento, por um processo de transição paulatina entre a soft law, o mero compromisso formal, e a hard law, a obrigação jurídica.
Isso significa que acordos originalmente não vinculantes, em que os participantes se comprometem a agir de determinada maneira, podem transformar-se em instrumentos capazes de obrigar os Estados a cumpri-los. Isso ocorre, segundo Lian, de três maneiras: podem ser incorporados a convenções internacionais, converter-se em costumes internacionais ou tornar-se princípios gerais de direito.
Lian argumenta, por exemplo, que a Declaração do Rio, assinada por 180 países durante a conferência Rio 92, apesar de seu caráter apenas voluntário, serviu de base para diversas convenções vinculastes [3]. Além disso, o documento foi ratificado posteriormente pela Assembleia-Geral da ONU, tornando-o, na perspectiva de Lian, um princípio geral de direito internacional e, portanto, hard law.
[3] Leia a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Na mesma linha, ele afirma que a via dos acordos não vinculantes pode ser até mais eficiente do que as tentativas de negociar acordos vinculantes, que dependem da concordância de países com mentalidades muito heterogêneas. Ainda por cima, acordos com pretensão vinculante ficam submetidos às vicissitudes da política interna de cada Estado, de modo que muitas vezes o Poder Executivo de um país prefere não fazer esforços para ratificar um determinado tratado no Parlamento.
Ao mencionar as futuras gerações, o Relatório Brundtland [4] estabeleceu as bases de um dos principais fundamentos do direito da sustentabilidade: seu caráter interoperacional [5]. Nele, o desenvolvimento sustentável é definido com clareza, como o que “provê às necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações para prover às próprias necessidades”. Diversos autores exploram essa via para afirmar o desenvolvimento sustentável como um princípio de Justiça.
[4] Ou Nosso Futuro Comum, elaborado para a ONU em 1987
[5] Acesse o documento
Lian se apoia na filosofia do americano John Rawls para afirmar que hoje, ao conceber os fundamentos das leis internacionais, seria preciso imaginar o ponto de vista de quem ainda não veio ao mundo. Só assim o direito das futuras gerações estaria resguardado.
Crime contra o futuro
Deriva daí a noção de “crimes contra as futuras gerações”, em que, nas palavras de Lígia Maura Costa, “caso nada seja feito, o que estamos deixando de fazer é um crime”, cujas vítimas são aqueles que estão por nascer. Segundo o mesmo princípio, quando a humanidade ultrapassa as “fronteiras planetárias” do Stockholm Resilience Centre [6], por exemplo, está sendo cometido um verdadeiro crime, e não apenas erro ou imprudência.
[6] Saiba mais
Essencialmente, a ideia de crime contra as futuras gerações introduz uma noção criminal no campo do Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável. Para o jurista Sébastien Jodoin, conselheiro do CISDL, “a noção de crimes contra as gerações futuras reconhece o poder da responsabilidade penal individual, a fim de superar o abismo da governança atual, cujo resultado é um ambiente permissivo para Estados e corporações transnacionais que negam às populações as condições mínimas de vida e ambiente”.
Bosselmann evoca a noção de “ecocídio”, empregada pela jurista britânica Polly Higgins para reforçar a ideia de que ações humanas destruidoras do ambiente são criminais. “Acontece que mais de 90% de crimes ambientais não são crimes no sentido legal”, lamenta o professor. “Se você dirigir uma SUV enorme, está agindo dentro da lei, embora moralmente mal. O consumo das pessoas e cidades mais ricas é obsceno e a pegada ecológica de 25 países desenvolvidos é seis vezes maior do que a do resto do mundo. É preciso redistribuir massivamente a riqueza econômica e os fardos ecológicos. Isso é exatamente o que o Direito Internacional da Sustentabilidade busca.”
Ambiente versus livre comércio
Ainda são poucos os casos de litígio internacional em que o direito sustentável foi um tema capital. Segundo Costa, há na OMC 46 casos que fizeram referência ao tema. Só um deles, porém, era de fato um caso de sustentabilidade. “Os demais eram medidas protecionistas trazidas como formas de proteção ao desenvolvimento sustentável”, explica.
O caso emblemático na OMC, segundo a jurista, opôs a União Europeia ao Canadá, em torno da proibição francesa do uso de amianto em 1997 (outros sete países europeus já haviam banido o produto, que é cancerígeno). Em 2001, a OMC julgou que o governo francês tinha o direito de abolir a substância em nome da saúde de seus cidadãos.
Lian reconhece que poucos litígios internacionais até hoje envolveram diretamente o desenvolvimento sustentável, mas estima que esse número tende a se ampliar, sobretudo com o avanço dos acordos globais do clima e a presença de princípios de sustentabilidade em acordos bilaterais. Ele cita três casos-chave.
Em 1998, no caso shrimp-turtle, a OMC admitiu, apoiada na ideia de preservação ambiental que os Estados Unidos poderiam barrar a entrada de camarões pescados com redes sem um dispositivo pelo qual tartarugas conseguem escapar. O caso ficou conhecido por permitir, ao menos em teoria, que se banisse um produto com base em seu processo de produção, e não no próprio produto. “Apesar disso, por se entender que a forma como as medidas teriam sido aplicadas constituiria uma discriminação arbitrária e injustificável ao livre comércio, os EUA foram condenados”, lembra o advogado Eduardo Felipe Matias (mais em entrevista “Tudo ao mesmo tempo agora“).
Outros casos envolvendo o princípio de sustentabilidade foram julgados pela Corte Internacional de Justiça: o Gabcikovo-Nagymaros, que opôs Hungria e Eslováquia em 1997, e o das fábricas de celulose no Rio Uruguai, entre a Argentina e o Uruguai, em 2010.
Lian estuda as negociações para o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Nessas negociações transparece um exemplo das fragilidades a que estão dispostas as iniciativas globais pelo desenvolvimento sustentável. Até 2010, os negociadores europeus defendiam a inclusão no acordo de um mecanismo conhecido como carbon border tax adjustment (ajuste tarifário na fronteira), projeto de imposto sobre produtos importados com base na medida de sua pegada de carbono. Quando a crise financeira apertou, porém, os imperativos locais de crescimento falaram mais alto e os europeus retiraram o mecanismo de sua pauta de negociações.
Como o aquecimento global e o esgotamento dos recursos do planeta dificilmente vão esperar as atitudes que a humanidade pensa em tomar para combatê-los, o ritmo da capacidade adaptativa do ser humano e de sua lei pode precisar ser incrementado. Em outras palavras, seria necessário dar um salto.
Lian se diz pessimista sobre a probabilidade de conseguirmos desenvolver uma matriz jurídica global a tempo de evitar as catástrofes ambientais que se anunciam. Por outro lado, “esses desastres talvez levem a comunidade internacional a dar o salto necessário”, diz, acrescentando que precisamos torcer para que isso não aconteça tarde demais.
TEXTOS-BASE
Alguns documentos, convenções e acordos que fundamentam o nascente Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável
Uma série de documentos produzidos ao longo do século XX são considerados os textos-base que fundamentam o ramo nascente do Direito. Esses documentos apresentam noções como as responsabilidades comuns, porém diferenciadas, a sustentabilidade como justiça intergeracional, o princípio do poluidor-pagador e outros. A principal entidade a conduzir a produção desses documentos é a Organização das Nações Unidas (ONU).
O texto mais importante, segundo a jurista e professora Lígia Maura Costa, da Fundação Getulio Vargas, é o Relatório Brundtland. Fazendo referência a esse texto seminal, o documento lançado ao fim da Conferência Rio+20, em 2012, chamou-se O Futuro Que Queremos.
Da Conferência Rio 92, organizada pela ONU, resultaram diversos documentos, como a Declaração Do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção do Clima e a Agenda 21. A Convenção do Clima está na origem das conferências anuais do clima (COPs), de cuja 21a edição, em Paris, em dezembro, espera-se um amplo acordo de combate à mudança climática. O Protocolo de Kyoto, primeira grande iniciativa que buscou reduzir as emissões de carbono, surgiu da terceira COP, em 1997.
Para o alemão Klaus Bosselmann, da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, um dos principais textos a resultar da conferência foi a Carta da Terra, iniciativa da ONU e do Clube de Roma, nas figuras de Mikhail Gorbachev e Maurice Strong (disponível aqui)
Acordos menos ambiciosos foram fechados na COP 15 (2009), em Copenhague, e na COP 16, em Cancún (2010). A Conferência de Johannesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2002, também sob a égide da ONU, coloca o desenvolvimento sustentável como “objetivo comum” dos participantes.
Costa cita também outros documentos internacionais, que não costumam ser diretamente associados ao tema, mas abordam assuntos afins, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração de Estocolmo da ONU sobre o Ambiente Humano (1972), as Convenções Fundamentais da OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).
Eduardo Matias, sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados (leia entrevista “Tudo ao mesmo tempo agora“), cita ainda a Convenção da ONU sobre Direito do Mar (1982), a Convenção da ONU Contra a Corrupção (2005) e uma série de outras convenções. Ele assinala também que diversos conceitos e ferramentas vão cristalizando a sustentabilidade nas práticas e, por extensão, nas leis. É o caso de noções como o fair trade (comércio justo) e a responsabilidade social corporativa, normas e certificações como a ISO 14001 e as do Forest Stewardship Council (FSC).
[:en]Muitos especialistas acreditam estar surgindo – ou já ter surgido – um novo ramo jurídico que atua como ferramenta de uma governança global, o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável
As leis de cada país e os tratados internacionais invocam cada vez mais os princípios de sustentabilidade, responsabilidade social e ambiental. Ao longo das últimas décadas, o imperativo do desenvolvimento sustentável se fortaleceu tanto que muitos juristas acreditam estar surgindo – ou já ter surgido – um novo ramo jurídico: o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável. Porém, como a maior parte das legislações globais, esse novo ramo enfrenta desafios que vão da dificuldade em negociar seus termos à fraqueza das garantias de aplicação.
No livro O Princípio da Sustentabilidade [1], originalmente publicado em 2008, o jurista alemão Klaus Bosselmann, professor na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, argumenta que a sustentabilidade caminha para ser reconhecida como um princípio fundamental da legislação, no mesmo pé que outros, como justiça, igualdade e liberdade.
[1] Editado no Brasil pela Revista dos Tribunais, o livro inclui a ideia de aplicar ao ambiente o conceito jurídico anglo-saxão de trusteeship. Leia sobre essa proposta no site.
Comparando a crise ambiental com a emergência dos Direitos Humanos, Bosselmann afirma que “agora precisamos admitir que a humanidade tem não só o direito a um ambiente saudável, mas também o dever de protegê-lo”. O jurista cita a expressão desse dever nas constituições Pachamama de Equador e Bolívia, mas também no artigo 225 da Carta Magna brasileira, segundo a qual o dever de proteger o meio ambiente cabe tanto ao governo quanto à coletividade [2].
[2] Saiba mais sobre os conceitos de Pachamama e direitos da natureza
Marie-Claire Cordonier Segger, diretora do Centro para o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável (CISDL, na sigla em inglês), trabalha desde os anos 1990 para formular os termos nos quais o desenvolvimento sustentável conseguiria se firmar como ramo legal. Em seus textos, ela afirma que a sustentabilidade, como princípio jurídico, deverá guiar a formulação de leis nacionais e internacionais ao longo deste século, porque pode indicar o caminho do cada vez mais necessário equilíbrio entre a globalização da economia e seus aspectos social e ambiental.
“Entendo que o Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável atingiu uma maturidade que faz com que ele se diferencie dos demais ramos do Direito Internacional”, afirma a jurista Ligia Maura Costa, professora da Fundação Getulio Vargas que estuda o tema a partir de casos apresentados ao órgão de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC).
A OMC, segundo Costa, é o único organismo internacional dotado de um sistema que garante a execução de seus acordos: a retaliação. Ainda assim, muitas pessoas contestam a eficácia até mesmo desse único mecanismo. “Mas é o que temos de melhor hoje”, conforma-se. “É fato que não se pode colocar um país por trás das grades por descumprimento de tratados e convenções internacionais. É a pressão moral da comunidade internacional que atua, nem sempre com sucesso”, resume.
Da soft law à obrigação da lei
Segundo Henrique Lian, diretor de relações institucionais do Instituto Ethos, um Estado só se sente constrangido a fazer valer leis internacionais por medo de retaliações, interesse em certificar-se de que os demais Estados cumpram essas determinações e, naturalmente, pressões internas, vindas do Congresso ou da sociedade civil. Mesmo assim, Lian estima que a consolidação do Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável está ocorrendo a passo firme, ainda que lento, por um processo de transição paulatina entre a soft law, o mero compromisso formal, e a hard law, a obrigação jurídica.
Isso significa que acordos originalmente não vinculantes, em que os participantes se comprometem a agir de determinada maneira, podem transformar-se em instrumentos capazes de obrigar os Estados a cumpri-los. Isso ocorre, segundo Lian, de três maneiras: podem ser incorporados a convenções internacionais, converter-se em costumes internacionais ou tornar-se princípios gerais de direito.
Lian argumenta, por exemplo, que a Declaração do Rio, assinada por 180 países durante a conferência Rio 92, apesar de seu caráter apenas voluntário, serviu de base para diversas convenções vinculastes [3]. Além disso, o documento foi ratificado posteriormente pela Assembleia-Geral da ONU, tornando-o, na perspectiva de Lian, um princípio geral de direito internacional e, portanto, hard law.
[3] Leia a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Na mesma linha, ele afirma que a via dos acordos não vinculantes pode ser até mais eficiente do que as tentativas de negociar acordos vinculantes, que dependem da concordância de países com mentalidades muito heterogêneas. Ainda por cima, acordos com pretensão vinculante ficam submetidos às vicissitudes da política interna de cada Estado, de modo que muitas vezes o Poder Executivo de um país prefere não fazer esforços para ratificar um determinado tratado no Parlamento.
Ao mencionar as futuras gerações, o Relatório Brundtland [4] estabeleceu as bases de um dos principais fundamentos do direito da sustentabilidade: seu caráter interoperacional [5]. Nele, o desenvolvimento sustentável é definido com clareza, como o que “provê às necessidades do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações para prover às próprias necessidades”. Diversos autores exploram essa via para afirmar o desenvolvimento sustentável como um princípio de Justiça.
[4] Ou Nosso Futuro Comum, elaborado para a ONU em 1987
[5] Acesse o documento
Lian se apoia na filosofia do americano John Rawls para afirmar que hoje, ao conceber os fundamentos das leis internacionais, seria preciso imaginar o ponto de vista de quem ainda não veio ao mundo. Só assim o direito das futuras gerações estaria resguardado.
Crime contra o futuro
Deriva daí a noção de “crimes contra as futuras gerações”, em que, nas palavras de Lígia Maura Costa, “caso nada seja feito, o que estamos deixando de fazer é um crime”, cujas vítimas são aqueles que estão por nascer. Segundo o mesmo princípio, quando a humanidade ultrapassa as “fronteiras planetárias” do Stockholm Resilience Centre [6], por exemplo, está sendo cometido um verdadeiro crime, e não apenas erro ou imprudência.
[6] Saiba mais
Essencialmente, a ideia de crime contra as futuras gerações introduz uma noção criminal no campo do Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável. Para o jurista Sébastien Jodoin, conselheiro do CISDL, “a noção de crimes contra as gerações futuras reconhece o poder da responsabilidade penal individual, a fim de superar o abismo da governança atual, cujo resultado é um ambiente permissivo para Estados e corporações transnacionais que negam às populações as condições mínimas de vida e ambiente”.
Bosselmann evoca a noção de “ecocídio”, empregada pela jurista britânica Polly Higgins para reforçar a ideia de que ações humanas destruidoras do ambiente são criminais. “Acontece que mais de 90% de crimes ambientais não são crimes no sentido legal”, lamenta o professor. “Se você dirigir uma SUV enorme, está agindo dentro da lei, embora moralmente mal. O consumo das pessoas e cidades mais ricas é obsceno e a pegada ecológica de 25 países desenvolvidos é seis vezes maior do que a do resto do mundo. É preciso redistribuir massivamente a riqueza econômica e os fardos ecológicos. Isso é exatamente o que o Direito Internacional da Sustentabilidade busca.”
Ambiente versus livre comércio
Ainda são poucos os casos de litígio internacional em que o direito sustentável foi um tema capital. Segundo Costa, há na OMC 46 casos que fizeram referência ao tema. Só um deles, porém, era de fato um caso de sustentabilidade. “Os demais eram medidas protecionistas trazidas como formas de proteção ao desenvolvimento sustentável”, explica.
O caso emblemático na OMC, segundo a jurista, opôs a União Europeia ao Canadá, em torno da proibição francesa do uso de amianto em 1997 (outros sete países europeus já haviam banido o produto, que é cancerígeno). Em 2001, a OMC julgou que o governo francês tinha o direito de abolir a substância em nome da saúde de seus cidadãos.
Lian reconhece que poucos litígios internacionais até hoje envolveram diretamente o desenvolvimento sustentável, mas estima que esse número tende a se ampliar, sobretudo com o avanço dos acordos globais do clima e a presença de princípios de sustentabilidade em acordos bilaterais. Ele cita três casos-chave.
Em 1998, no caso shrimp-turtle, a OMC admitiu, apoiada na ideia de preservação ambiental que os Estados Unidos poderiam barrar a entrada de camarões pescados com redes sem um dispositivo pelo qual tartarugas conseguem escapar. O caso ficou conhecido por permitir, ao menos em teoria, que se banisse um produto com base em seu processo de produção, e não no próprio produto. “Apesar disso, por se entender que a forma como as medidas teriam sido aplicadas constituiria uma discriminação arbitrária e injustificável ao livre comércio, os EUA foram condenados”, lembra o advogado Eduardo Felipe Matias (mais em entrevista “Tudo ao mesmo tempo agora“).
Outros casos envolvendo o princípio de sustentabilidade foram julgados pela Corte Internacional de Justiça: o Gabcikovo-Nagymaros, que opôs Hungria e Eslováquia em 1997, e o das fábricas de celulose no Rio Uruguai, entre a Argentina e o Uruguai, em 2010.
Lian estuda as negociações para o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Nessas negociações transparece um exemplo das fragilidades a que estão dispostas as iniciativas globais pelo desenvolvimento sustentável. Até 2010, os negociadores europeus defendiam a inclusão no acordo de um mecanismo conhecido como carbon border tax adjustment (ajuste tarifário na fronteira), projeto de imposto sobre produtos importados com base na medida de sua pegada de carbono. Quando a crise financeira apertou, porém, os imperativos locais de crescimento falaram mais alto e os europeus retiraram o mecanismo de sua pauta de negociações.
Como o aquecimento global e o esgotamento dos recursos do planeta dificilmente vão esperar as atitudes que a humanidade pensa em tomar para combatê-los, o ritmo da capacidade adaptativa do ser humano e de sua lei pode precisar ser incrementado. Em outras palavras, seria necessário dar um salto.
Lian se diz pessimista sobre a probabilidade de conseguirmos desenvolver uma matriz jurídica global a tempo de evitar as catástrofes ambientais que se anunciam. Por outro lado, “esses desastres talvez levem a comunidade internacional a dar o salto necessário”, diz, acrescentando que precisamos torcer para que isso não aconteça tarde demais.
TEXTOS-BASE
Alguns documentos, convenções e acordos que fundamentam o nascente Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável
Uma série de documentos produzidos ao longo do século XX são considerados os textos-base que fundamentam o ramo nascente do Direito. Esses documentos apresentam noções como as responsabilidades comuns, porém diferenciadas, a sustentabilidade como justiça intergeracional, o princípio do poluidor-pagador e outros. A principal entidade a conduzir a produção desses documentos é a Organização das Nações Unidas (ONU).
O texto mais importante, segundo a jurista e professora Lígia Maura Costa, da Fundação Getulio Vargas, é o Relatório Brundtland. Fazendo referência a esse texto seminal, o documento lançado ao fim da Conferência Rio+20, em 2012, chamou-se O Futuro Que Queremos.
Da Conferência Rio 92, organizada pela ONU, resultaram diversos documentos, como a Declaração Do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção do Clima e a Agenda 21. A Convenção do Clima está na origem das conferências anuais do clima (COPs), de cuja 21a edição, em Paris, em dezembro, espera-se um amplo acordo de combate à mudança climática. O Protocolo de Kyoto, primeira grande iniciativa que buscou reduzir as emissões de carbono, surgiu da terceira COP, em 1997.
Para o alemão Klaus Bosselmann, da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, um dos principais textos a resultar da conferência foi a Carta da Terra, iniciativa da ONU e do Clube de Roma, nas figuras de Mikhail Gorbachev e Maurice Strong (disponível aqui)
Acordos menos ambiciosos foram fechados na COP 15 (2009), em Copenhague, e na COP 16, em Cancún (2010). A Conferência de Johannesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2002, também sob a égide da ONU, coloca o desenvolvimento sustentável como “objetivo comum” dos participantes.
Costa cita também outros documentos internacionais, que não costumam ser diretamente associados ao tema, mas abordam assuntos afins, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração de Estocolmo da ONU sobre o Ambiente Humano (1972), as Convenções Fundamentais da OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).
Eduardo Matias, sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados (leia entrevista “Tudo ao mesmo tempo agora“), cita ainda a Convenção da ONU sobre Direito do Mar (1982), a Convenção da ONU Contra a Corrupção (2005) e uma série de outras convenções. Ele assinala também que diversos conceitos e ferramentas vão cristalizando a sustentabilidade nas práticas e, por extensão, nas leis. É o caso de noções como o fair trade (comércio justo) e a responsabilidade social corporativa, normas e certificações como a ISO 14001 e as do Forest Stewardship Council (FSC).