Ao entender a lógica dos modos tradicionais de produção e do isolamento amazônico, empresas concebem modelos inovadores de parceria comercial, capazes de aliviar o assédio dos atravessadores
Quem navega habitualmente por rios e igarapés da Amazônia conhece muito bem a figura do “regatão” – aquele negociante implacável que atraca nas vilas ribeirinhas levando a bordo alimentos industrializados e outras mercadorias, vendidas à base de troca por produtos extrativistas, como castanha, borracha e copaíba. Sob o ponto de vista positivo, a prática de escambo [1] permite à população isolada o acesso a bens só encontrados nas cidades. Mas, pelo lado negativo, obriga o fornecimento da produção local a preços pra lá de injustos. Resultado: desvalorizada, a floresta corre o risco da exploração predatória ou da derrubada por atividades mais lucrativas, como a criação de gado e o corte ilegal de madeira.
[1] Transação comercial baseada na troca de produtos, sem uso de moeda, ainda presente em regiões isoladas do Brasil, como a Amazônia. Os colonizadores portugueses utilizavam a prática para obter pau-brasil dos índios em troca de objetos de fabricação europeia
Libertar comunidades tradicionais, reféns de comerciantes intermediários entre a floresta que produz a matéria-prima e a indústria que a utiliza e leva até as prateleiras do mercado, é um dos principais ditames relacionados ao uso sustentável e socialmente justo da biodiversidade. O desafio é antigo. A novidade agora é que empresas começam a entender a lógica dos modos tradicionais de produção e do isolamento amazônico, concebendo modelos inovadores de parceria comercial, capazes de aliviar o assédio dos atravessadores. Ao garantir capital de giro e fortalecer o fluxo de caixa de cooperativas extrativistas, a estratégia interfere no jogo de barganha. E aumenta a capacidade de venda das “cantinas” – mercearias comunitárias que comercializam gêneros de primeira necessidade a preços inferiores aos cobrados no escambo.
“O interesse da indústria pelo fornecimento seguro de óleo de copaíba, dentro de um modelo que considera a realidade local, está eliminando a dependência dos regatões”, conta Pedro Pereira, líder comunitário na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, em Altamira (PA). Na concorrência de preços, o litro do produto passou de R$ 10 para R$ 27, quando vendido diretamente para a empresa, que faz o pagamento no ato da compra, assume os custos do frete e periodicamente adianta um determinado valor a título de capital de giro, destinado ao abastecimento da cantina. “A renda dobrou e os ribeirinhos compraram fogão a gás e motor de barco para eles próprios fazerem compras na cidade”, diz Pereira.
“Antes, a compra de matéria-prima amazônica consistia em um alto risco, porque não havia garantia de qualidade e não sabíamos se vinha de área de desmatamento, mas hoje o que alcançamos é referência de comércio justo para nossas operações no mundo”, aponta André Tabanez, gerente de projetos da indústria suíça Firmenich – uma das líderes mundiais em essências e fragrâncias. Hoje, 60% do óleo de copaíba usado pelo fabricante como ingrediente de perfumes provém de cinco comunidades extrativistas do Pará. Os outros 40% ainda são comprados de intermediários, devido à falta de maior organização social, que só agora avança na região.
O cenário atual é fruto da articulação para aproximar comunidades amazônicas e empresas, mediada por organizações não governamentais que enxergam na valorização da floresta um caminho essencial para que seja bem conservada.
“Os extrativistas não querem escala, mas o suficiente para manter suas atividades tradicionais e a roça, sem dependência dos produtos de fora”, explica Patrícia Cota Gomes, coordenadora de mercados do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). O desafio exige arranjos inovadores para aliar a lógica da floresta à empresarial, de modo que o extrativismo melhore as condições de vida e seja comercialmente atrativo para os extremos da cadeia.
DE IGUAL PARA IGUAL
Marco desse processo é o Protocolo Biocultural Comunitário, lançado em encontro de lideranças, empresas, instituições do governo, bancos de fomento e ONGs, em Alter do Chão, distrito de Santarém (PA). No documento, as comunidades mostram como se relacionam com os recursos naturais e estabelecem como gostariam de se relacionar com o mercado, falando de igual para igual com os empresários. A relação comercial passa a ser diferenciada por princípios éticos e culturais. Em paralelo, o Imaflora desenvolve o selo “Origens Brasil”, que funcionará por meio de plataforma colaborativa para destacar no mercado produtos florestais extraídos de áreas protegidas, como as reservas extrativistas. A iniciativa prevê um sistema capaz de rastrear a origem da produção, de fácil acesso, apenas com o uso de um telefone celular.
“Inovações se incorporam ao modo tradicional de produção para que os extrativistas não sejam prisioneiros de velhos esquemas comerciais”, ressalta Marcelo Salazar, coordenador do Instituto Socioambiental na região da Terra do Meio [2], onde os esforços se concentram devido à existência de várias pressões socioambientais. “As cantinas, no passado utilizadas para exploração de trabalhadores pelos ‘patrões’, donos dos seringais, ressurgem como um modelo de participação comunitária e transparência nas relações comerciais”, diz.
[2]Região central do Pará que abrange três municípios e dezenas de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, onde há dez anos ocorreu o assassinato da Irmã Dorothy Stang (em Anapu), chamando atenção para os conflitos fundiários na Floresta Amazônica
Entre os exemplos, a organização social foi requisito-chave para a Coca-Cola incorporar o açaí [3] à linha de sucos Del Valle, mediante o fornecimento por 48 comunidades amazônicas. Além do desafio da logística, o formato de negócio exige maior conhecimento das demandas sociais para a criação de uma parceria justa, bem como assistência técnica visando a garantia de padrões de qualidade.
[3] Incluíram também manejo comercial de quelônios (tartarugas e tracajás) e produção de açaí, andiroba e galinha caipira
O trabalho envolve ribeirinhos isolados, como os do Rio Juruá, no Amazonas. Emblemática na organização comunitária, herdada dos tempos de luta nos seringais, a região busca alternativas de renda. Não é à toa que a cultura do empreendedorismo chegou à longínqua comunidade do Bauana, situada a quatro horas de lancha desde a cidade de Carauari (AM), distante 794 quilômetros da capital, Manaus.
No local ocorreu recentemente a formatura de 45 jovens no Curso Técnico em Produção Sustentável em Unidades de Conservação, pioneiro do País. Do beneficiamento da madeira morta caída nos rios à produção de pirarucu defumado, a iniciativa gerou planos de negócios [4] apresentados por alunos extrativistas que começam a incorporar novos termos ao vocabulário nativo, como “viabilidade econômica”, “competitividade” e “rastreabilidade”.
[4] Líder entre os produtos amazônicos não madeireiros, com mercado estimado em R$ 500 milhões por ano
“É o caminho para transformar recursos naturais em riqueza, tendo como base a educação”, afirma Virgílio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazonas Sustentável, idealizadora do projeto. Aos poucos, a atual geração ganha condições para produzir com mais técnica e visão comercial o que aprenderam com os pais e avós, sem necessidade de migrar para as cidades. Algo novo acontece no mundo “invisível” da Amazônia.[:en]Ao entender a lógica dos modos tradicionais de produção e do isolamento amazônico, empresas concebem modelos inovadores de parceria comercial, capazes de aliviar o assédio dos atravessadores
Quem navega habitualmente por rios e igarapés da Amazônia conhece muito bem a figura do “regatão” – aquele negociante implacável que atraca nas vilas ribeirinhas levando a bordo alimentos industrializados e outras mercadorias, vendidas à base de troca por produtos extrativistas, como castanha, borracha e copaíba. Sob o ponto de vista positivo, a prática de escambo [1] permite à população isolada o acesso a bens só encontrados nas cidades. Mas, pelo lado negativo, obriga o fornecimento da produção local a preços pra lá de injustos. Resultado: desvalorizada, a floresta corre o risco da exploração predatória ou da derrubada por atividades mais lucrativas, como a criação de gado e o corte ilegal de madeira.
[1] Transação comercial baseada na troca de produtos, sem uso de moeda, ainda presente em regiões isoladas do Brasil, como a Amazônia. Os colonizadores portugueses utilizavam a prática para obter pau-brasil dos índios em troca de objetos de fabricação europeia
Libertar comunidades tradicionais, reféns de comerciantes intermediários entre a floresta que produz a matéria-prima e a indústria que a utiliza e leva até as prateleiras do mercado, é um dos principais ditames relacionados ao uso sustentável e socialmente justo da biodiversidade. O desafio é antigo. A novidade agora é que empresas começam a entender a lógica dos modos tradicionais de produção e do isolamento amazônico, concebendo modelos inovadores de parceria comercial, capazes de aliviar o assédio dos atravessadores. Ao garantir capital de giro e fortalecer o fluxo de caixa de cooperativas extrativistas, a estratégia interfere no jogo de barganha. E aumenta a capacidade de venda das “cantinas” – mercearias comunitárias que comercializam gêneros de primeira necessidade a preços inferiores aos cobrados no escambo.
“O interesse da indústria pelo fornecimento seguro de óleo de copaíba, dentro de um modelo que considera a realidade local, está eliminando a dependência dos regatões”, conta Pedro Pereira, líder comunitário na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, em Altamira (PA). Na concorrência de preços, o litro do produto passou de R$ 10 para R$ 27, quando vendido diretamente para a empresa, que faz o pagamento no ato da compra, assume os custos do frete e periodicamente adianta um determinado valor a título de capital de giro, destinado ao abastecimento da cantina. “A renda dobrou e os ribeirinhos compraram fogão a gás e motor de barco para eles próprios fazerem compras na cidade”, diz Pereira.
“Antes, a compra de matéria-prima amazônica consistia em um alto risco, porque não havia garantia de qualidade e não sabíamos se vinha de área de desmatamento, mas hoje o que alcançamos é referência de comércio justo para nossas operações no mundo”, aponta André Tabanez, gerente de projetos da indústria suíça Firmenich – uma das líderes mundiais em essências e fragrâncias. Hoje, 60% do óleo de copaíba usado pelo fabricante como ingrediente de perfumes provém de cinco comunidades extrativistas do Pará. Os outros 40% ainda são comprados de intermediários, devido à falta de maior organização social, que só agora avança na região.
O cenário atual é fruto da articulação para aproximar comunidades amazônicas e empresas, mediada por organizações não governamentais que enxergam na valorização da floresta um caminho essencial para que seja bem conservada.
“Os extrativistas não querem escala, mas o suficiente para manter suas atividades tradicionais e a roça, sem dependência dos produtos de fora”, explica Patrícia Cota Gomes, coordenadora de mercados do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). O desafio exige arranjos inovadores para aliar a lógica da floresta à empresarial, de modo que o extrativismo melhore as condições de vida e seja comercialmente atrativo para os extremos da cadeia.
DE IGUAL PARA IGUAL
Marco desse processo é o Protocolo Biocultural Comunitário, lançado em encontro de lideranças, empresas, instituições do governo, bancos de fomento e ONGs, em Alter do Chão, distrito de Santarém (PA). No documento, as comunidades mostram como se relacionam com os recursos naturais e estabelecem como gostariam de se relacionar com o mercado, falando de igual para igual com os empresários. A relação comercial passa a ser diferenciada por princípios éticos e culturais. Em paralelo, o Imaflora desenvolve o selo “Origens Brasil”, que funcionará por meio de plataforma colaborativa para destacar no mercado produtos florestais extraídos de áreas protegidas, como as reservas extrativistas. A iniciativa prevê um sistema capaz de rastrear a origem da produção, de fácil acesso, apenas com o uso de um telefone celular.
“Inovações se incorporam ao modo tradicional de produção para que os extrativistas não sejam prisioneiros de velhos esquemas comerciais”, ressalta Marcelo Salazar, coordenador do Instituto Socioambiental na região da Terra do Meio [2], onde os esforços se concentram devido à existência de várias pressões socioambientais. “As cantinas, no passado utilizadas para exploração de trabalhadores pelos ‘patrões’, donos dos seringais, ressurgem como um modelo de participação comunitária e transparência nas relações comerciais”, diz.
[2]Região central do Pará que abrange três municípios e dezenas de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, onde há dez anos ocorreu o assassinato da Irmã Dorothy Stang (em Anapu), chamando atenção para os conflitos fundiários na Floresta Amazônica
Entre os exemplos, a organização social foi requisito-chave para a Coca-Cola incorporar o açaí [3] à linha de sucos Del Valle, mediante o fornecimento por 48 comunidades amazônicas. Além do desafio da logística, o formato de negócio exige maior conhecimento das demandas sociais para a criação de uma parceria justa, bem como assistência técnica visando a garantia de padrões de qualidade.
[3] Incluíram também manejo comercial de quelônios (tartarugas e tracajás) e produção de açaí, andiroba e galinha caipira
O trabalho envolve ribeirinhos isolados, como os do Rio Juruá, no Amazonas. Emblemática na organização comunitária, herdada dos tempos de luta nos seringais, a região busca alternativas de renda. Não é à toa que a cultura do empreendedorismo chegou à longínqua comunidade do Bauana, situada a quatro horas de lancha desde a cidade de Carauari (AM), distante 794 quilômetros da capital, Manaus.
No local ocorreu recentemente a formatura de 45 jovens no Curso Técnico em Produção Sustentável em Unidades de Conservação, pioneiro do País. Do beneficiamento da madeira morta caída nos rios à produção de pirarucu defumado, a iniciativa gerou planos de negócios [4] apresentados por alunos extrativistas que começam a incorporar novos termos ao vocabulário nativo, como “viabilidade econômica”, “competitividade” e “rastreabilidade”.
[4] Líder entre os produtos amazônicos não madeireiros, com mercado estimado em R$ 500 milhões por ano
“É o caminho para transformar recursos naturais em riqueza, tendo como base a educação”, afirma Virgílio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazonas Sustentável, idealizadora do projeto. Aos poucos, a atual geração ganha condições para produzir com mais técnica e visão comercial o que aprenderam com os pais e avós, sem necessidade de migrar para as cidades. Algo novo acontece no mundo “invisível” da Amazônia.