Na arte de “criar lugares”, uma profusão de iniciativas aqui e lá fora busca resgatar o afeto e o cultivo das relações humanas
Em novembro de 2011, um grupo de moradores das comunidades Godoy, Fundão e Grissom, no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, levou ferramentas, baldes de tinta e mudas de plantas para um terreno baldio da Rua Adoasto de Godói e começou a trabalhar. Por iniciativa dos coletivos Periferia Ativa e Luta Popular, crianças e adultos, mulheres e homens transformaram o ambiente vazio em espaço de lazer [1]. O que era um ponto perdido no mapa, mal aproveitado, evitado pelas pessoas, passou a ser um ambiente frequentado, ponto de referência do bairro. Por iniciativa própria, os moradores do Capão Redondo se puseram na vanguarda do ativismo voltado para a cidade.
[1] Assista ao vídeo
As cidades modernas são apinhadas desses cantos esquecidos ou sacrificados pelo planejamento urbano, que acabam não raro degradados, vazios, feios e entregues à criminalidade. Alguns exemplos são evidentes: debaixo dos viadutos concebidos para o trânsito pesado; ladeando os muros altos e encimados de arame farpado das ferrovias; nas alças de acesso às avenidas principais. São rastros de uma era em que o grande objetivo do planejamento foi dar às cidades as condições para responder à explosão das populações urbanas. Ainda por cima, nesse período, o automóvel passou a dominar as ruas. As cidades se afastaram da escala humana e foram pensadas à distância, nas pranchetas. Foi a era de ouro de obras como a já demolida Avenida Perimetral, da zona portuária carioca, e o chamado Minhocão, em São Paulo.
A redescoberta da escala humana é um processo paulatino, tanto no plano do pensamento urbanístico, como na ação dos moradores dos bairros. Às voltas com praças esquecidas, ruas perigosas e quarteirões murados, todo tipo de resposta começou a ser dado espontaneamente por aqueles que desejam conviver naquele ambiente. É o caso do mutirão do Capão Redondo.
Indícios de beleza
Segundo a arquiteta Renata Minerbo, do negócio social Acupuntura Urbana, ao trabalhar sobre um espaço urbano, o contato com os moradores do entorno sempre traz à tona, em primeiro lugar, a memória e o afeto. “A relação entre o campo afetivo e o espaço forma um ciclo, porque o carinho pelo lugar leva a pessoa a usar, depois a cuidar, a ocupar, o que gera mais carinho, mais identidade e assim por diante”, diz.
“Gosto de ressaltar a ideia da abundância que existe em cada espaço”, diz a também arquiteta Andrea Sender, sócia de Renata Minerbo. “A cidade tem espaços públicos muito precários. Então, não adianta olhar para um lugar perguntando quais são os problemas. É preciso começar pelos sonhos das pessoas para os lugares.” Por isso, o ponto de partida são os pequenos indícios de beleza já presentes naquele lugar: flores em alguma janela, paredes de ladrilhos com mosaicos, uma pequena horta individual, “coisas escondidas”, como diz Sender.
Seguindo esses princípios, elas promovem transformações de espaços públicos, tomando por base iniciativas dos residentes, do poder público ou delas mesmas, quando identificam casualmente um lugar que poderia receber cuidados. O orçamento de uma intervenção com essa escala fica na casa das dezenas de milhares de reais, e os recursos vêm de fontes diversas: às vezes, financiamento coletivo, às vezes, edital público. Em abril, elas trabalhavam na recuperação da Praça Conde Francisco Matarazzo, na Zona Oeste de São Paulo, a partir do edital Redes e Ruas, da prefeitura paulistana. Também estão envolvidos na ação os coletivos Atados e Movimento Boa Praça.
Em março, os moradores da região do Córrego da Coruja, na Vila Madalena, em São Paulo, obtiveram uma benfeitoria que desejavam há tempos: uma faixa de pedestres entre os dois lados do Parque das Corujas, que é atravessado pela Rua Pascoal Vita. Curiosamente, a faixa foi feita em duas vezes em poucos dias. A primeira nasceu no fim de semana, fruto de um mutirão de moradores. A segunda surgiu alguns dias mais tarde, quando a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) refez o trabalho nas dimensões oficiais.
A demanda pela faixa acentuou-se a partir de 2013, quando o parque foi alvo de uma intervenção do Acupuntura Urbana, em parceria com o coletivo CaféNaRua, responsável por várias iniciativas na Zona Oeste paulistana. Na ocasião, uma escola municipal próxima participou com aulas de permacultura para os alunos do 5º ano. Com o aumento da frequência do parque, a necessidade da faixa de pedestres aumentou.
De conceito em conceito
No plano do pensamento urbanístico, a escala humana começou a ser recuperada a partir da obra de Jane Jacobs, que publicou em 1961 o livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas, em que denunciava a desumanização das paisagens urbanas. O jornalista e urbanista americano William H. Whyte desenvolveu as ideias de Jane Jacobs ao trabalhar na comissão de planejamento de Nova York, em 1969. Whyte concebeu um projeto dedicado ao comportamento dos pedestres, o Street Life Project, que, por sua vez, influenciou o geógrafo e antropólogo Fred Kent na fundação, em 1975, da entidade sem fins lucrativos Project for Public Spaces (PPS) (leia entrevista “Fazendo lugares“).
Em 1971, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl publicou A Vida entre Prédios, em que advogava para as cidades melhorias de pequena escala, que, somadas, transformariam a vida dos habitantes. O principal exemplo vem de sua própria cidade: as transformações de Copenhague, a capital dinamarquesa, são documentadas na obra de 2004, Lugares Públicos, Vida Pública. Já o conceito de não lugar, designando os pontos das cidades pelos quais as pessoas passam sem estabelecer relações estáveis (de lugar) – como aeroportos e estações de trem –, aparece no livro Não Lugares, do antropólogo francês Marc Augé, publicado em 1995.
O conceito “acupuntura urbana” foi cunhado pelo arquiteto finlandês Marco Casagrande. Segundo Jaime Lerner, que o trouxe para o Brasil, “como a cidade é um todo orgânico, atuar em pontos vitais das vizinhanças é criar novas pulsações, revitalizando pontos enfraquecidos e criando novos estímulos”. As arquitetas do Acupuntura Urbana relatam que não conheciam o termo usado por Casagrande e Lerner quando batizaram a empresa, por indicação de um outro sócio, mas a lógica de seu trabalho é semelhante. “Mexendo em pequenos pontos, aos poucos se vai mudando uma cidade inteira”, diz Renata.
Todos esses trabalhos podem ser considerados segundo o conceito geral de placemaking, que, traduzido, resulta em algo como “a arte de criar lugares”, ou seja, transformar espaços degradados, que as pessoas evitam, em lugares que podem ser usufruídos.
A PPS, de Kent, considera a existência de 11 princípios do placemaking [2], entre os quais se destacam a ideia de observar o espaço antes de intervir, deixar o desenho urbano em segundo plano, promover uma “triangulação”, ou seja, produzir estímulos que incentivem a interação entre desconhecidos, e jamais considerar que o processo está concluído.
[2] Saiba mais aqui
No ano passado, surgiu o Conselho Brasileiro de Lideranças em Placemaking [3], versão local do Placemaking Leadership Council. O conselho reúne pessoas da academia, do mercado e do governo. “É uma estrutura horizontal, um fórum de pessoas que discutem experiências e modelos para implantar uma agenda em torno do espaço público nas cidades”, diz Ricardo Birmann, diretor da Urbanizadora Paranoazinho e diretor-presidente do conselho.
[3] Mais pelo link
“Estamos recebendo o contato de pessoas do Brasil inteiro com interesse nessa agenda”, afirma Birmann. Segundo o empresário, placemaking é um termo guarda-chuva que “abarca todas as diferentes atitudes, intenções, ações, que promovem a melhoria de um espaço urbano”. Portanto, o termo contempla tanto o morador que pinta a calçada de verde e amarelo durante a Copa do Mundo quanto uma empresa que adota uma praça e a mantém limpa e agradável. As noções de acupuntura e gentileza urbanas, portanto, também cabem nessa definição.
Gentrificação
A recuperação de espaços urbanos tende a valorizar os imóveis do entorno, com uma consequência indesejada: incapazes de continuar pagando os aluguéis, antigos moradores acabam expulsos para bairros mais distantes, deixando áreas tradicionais da cidade para uma população nova, com maior poder aquisitivo e menor ligação afetiva com a região. Com isso, iniciativas originalmente destinadas a melhorar as condições de vida de uma população já instalada podem acabar sendo o vetor de sua remoção. Esse fenômeno é conhecido como gentrificação [4].
[4] O termo inglês gentrification deriva de gentry, que designa a alta classe média
O vínculo entre a reapropriação humana dos espaços urbanos e a gentrificação transparece em casos como a revitalização de regiões como a Praça Roosevelt, no Centro de São Paulo. Essa área, antes degradada, voltou a ser frequentada graças a movimentos como o Baixo Centro (leia reportagem à pág. 44) e a instalação de teatros, a começar pelo espaço do grupo Satyros. Hoje, o setor imobiliário está investindo na área, mas os teatros têm dificuldade em se manter: os próprios Satyros já anunciaram que deverão mudar sua sede.
Estudando a relação dos vendedores ambulantes de São Paulo com a Copa do Mundo, no ano passado, a arquiteta e urbanista Luciana Itikawa, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), deu-se conta de que a questão central na gentrificação da cidade é a imagem que se faz do espaço público, ou seja, a definição de quem pode ou não pode estar em algum lugar.
Segundo ela, o problema da imagem aparece no padrão de monopólio de marca que começa a despontar na venda ambulante de morros cariocas, particularmente os que receberam UPPs. Como ocorreu na Copa do Mundo, ambulantes são contratados para vender exclusivamente as marcas de determinadas grandes empresas. Assim, as insígnias das grandes corporações se tornam a senha que valida a presença do vendedor, antes visto como camelô ou pedinte.
A urbanista afirma que o nó está na relação entre os problemas da população, os interesses do setor privado e a ação do poder público. “Se movimentos da população acabam beneficiando grandes corporações em detrimento da própria população – diz Itikawa –, isso só é possível como aval do poder público.” Este é o ente responsável por promover as negociações e aplicar o Estatuto das Cidades – que, segundo a urbanista, é um dos instrumentos mais avançados no mundo para redistribuir o valor excedente da cidade. Entretanto, essa redistribuição é muito deficiente[:en]Na arte de “criar lugares”, uma profusão de iniciativas aqui e lá fora busca resgatar o afeto e o cultivo das relações humanas
Em novembro de 2011, um grupo de moradores das comunidades Godoy, Fundão e Grissom, no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, levou ferramentas, baldes de tinta e mudas de plantas para um terreno baldio da Rua Adoasto de Godói e começou a trabalhar. Por iniciativa dos coletivos Periferia Ativa e Luta Popular, crianças e adultos, mulheres e homens transformaram o ambiente vazio em espaço de lazer [1]. O que era um ponto perdido no mapa, mal aproveitado, evitado pelas pessoas, passou a ser um ambiente frequentado, ponto de referência do bairro. Por iniciativa própria, os moradores do Capão Redondo se puseram na vanguarda do ativismo voltado para a cidade.
[1] Assista ao vídeo
As cidades modernas são apinhadas desses cantos esquecidos ou sacrificados pelo planejamento urbano, que acabam não raro degradados, vazios, feios e entregues à criminalidade. Alguns exemplos são evidentes: debaixo dos viadutos concebidos para o trânsito pesado; ladeando os muros altos e encimados de arame farpado das ferrovias; nas alças de acesso às avenidas principais. São rastros de uma era em que o grande objetivo do planejamento foi dar às cidades as condições para responder à explosão das populações urbanas. Ainda por cima, nesse período, o automóvel passou a dominar as ruas. As cidades se afastaram da escala humana e foram pensadas à distância, nas pranchetas. Foi a era de ouro de obras como a já demolida Avenida Perimetral, da zona portuária carioca, e o chamado Minhocão, em São Paulo.
A redescoberta da escala humana é um processo paulatino, tanto no plano do pensamento urbanístico, como na ação dos moradores dos bairros. Às voltas com praças esquecidas, ruas perigosas e quarteirões murados, todo tipo de resposta começou a ser dado espontaneamente por aqueles que desejam conviver naquele ambiente. É o caso do mutirão do Capão Redondo.
Indícios de beleza
Segundo a arquiteta Renata Minerbo, do negócio social Acupuntura Urbana, ao trabalhar sobre um espaço urbano, o contato com os moradores do entorno sempre traz à tona, em primeiro lugar, a memória e o afeto. “A relação entre o campo afetivo e o espaço forma um ciclo, porque o carinho pelo lugar leva a pessoa a usar, depois a cuidar, a ocupar, o que gera mais carinho, mais identidade e assim por diante”, diz.
“Gosto de ressaltar a ideia da abundância que existe em cada espaço”, diz a também arquiteta Andrea Sender, sócia de Renata Minerbo. “A cidade tem espaços públicos muito precários. Então, não adianta olhar para um lugar perguntando quais são os problemas. É preciso começar pelos sonhos das pessoas para os lugares.” Por isso, o ponto de partida são os pequenos indícios de beleza já presentes naquele lugar: flores em alguma janela, paredes de ladrilhos com mosaicos, uma pequena horta individual, “coisas escondidas”, como diz Sender.
Seguindo esses princípios, elas promovem transformações de espaços públicos, tomando por base iniciativas dos residentes, do poder público ou delas mesmas, quando identificam casualmente um lugar que poderia receber cuidados. O orçamento de uma intervenção com essa escala fica na casa das dezenas de milhares de reais, e os recursos vêm de fontes diversas: às vezes, financiamento coletivo, às vezes, edital público. Em abril, elas trabalhavam na recuperação da Praça Conde Francisco Matarazzo, na Zona Oeste de São Paulo, a partir do edital Redes e Ruas, da prefeitura paulistana. Também estão envolvidos na ação os coletivos Atados e Movimento Boa Praça.
Em março, os moradores da região do Córrego da Coruja, na Vila Madalena, em São Paulo, obtiveram uma benfeitoria que desejavam há tempos: uma faixa de pedestres entre os dois lados do Parque das Corujas, que é atravessado pela Rua Pascoal Vita. Curiosamente, a faixa foi feita em duas vezes em poucos dias. A primeira nasceu no fim de semana, fruto de um mutirão de moradores. A segunda surgiu alguns dias mais tarde, quando a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) refez o trabalho nas dimensões oficiais.
A demanda pela faixa acentuou-se a partir de 2013, quando o parque foi alvo de uma intervenção do Acupuntura Urbana, em parceria com o coletivo CaféNaRua, responsável por várias iniciativas na Zona Oeste paulistana. Na ocasião, uma escola municipal próxima participou com aulas de permacultura para os alunos do 5º ano. Com o aumento da frequência do parque, a necessidade da faixa de pedestres aumentou.
De conceito em conceito
No plano do pensamento urbanístico, a escala humana começou a ser recuperada a partir da obra de Jane Jacobs, que publicou em 1961 o livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas, em que denunciava a desumanização das paisagens urbanas. O jornalista e urbanista americano William H. Whyte desenvolveu as ideias de Jane Jacobs ao trabalhar na comissão de planejamento de Nova York, em 1969. Whyte concebeu um projeto dedicado ao comportamento dos pedestres, o Street Life Project, que, por sua vez, influenciou o geógrafo e antropólogo Fred Kent na fundação, em 1975, da entidade sem fins lucrativos Project for Public Spaces (PPS) (leia entrevista “Fazendo lugares“).
Em 1971, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl publicou A Vida entre Prédios, em que advogava para as cidades melhorias de pequena escala, que, somadas, transformariam a vida dos habitantes. O principal exemplo vem de sua própria cidade: as transformações de Copenhague, a capital dinamarquesa, são documentadas na obra de 2004, Lugares Públicos, Vida Pública. Já o conceito de não lugar, designando os pontos das cidades pelos quais as pessoas passam sem estabelecer relações estáveis (de lugar) – como aeroportos e estações de trem –, aparece no livro Não Lugares, do antropólogo francês Marc Augé, publicado em 1995.
O conceito “acupuntura urbana” foi cunhado pelo arquiteto finlandês Marco Casagrande. Segundo Jaime Lerner, que o trouxe para o Brasil, “como a cidade é um todo orgânico, atuar em pontos vitais das vizinhanças é criar novas pulsações, revitalizando pontos enfraquecidos e criando novos estímulos”. As arquitetas do Acupuntura Urbana relatam que não conheciam o termo usado por Casagrande e Lerner quando batizaram a empresa, por indicação de um outro sócio, mas a lógica de seu trabalho é semelhante. “Mexendo em pequenos pontos, aos poucos se vai mudando uma cidade inteira”, diz Renata.
Todos esses trabalhos podem ser considerados segundo o conceito geral de placemaking, que, traduzido, resulta em algo como “a arte de criar lugares”, ou seja, transformar espaços degradados, que as pessoas evitam, em lugares que podem ser usufruídos.
A PPS, de Kent, considera a existência de 11 princípios do placemaking [2], entre os quais se destacam a ideia de observar o espaço antes de intervir, deixar o desenho urbano em segundo plano, promover uma “triangulação”, ou seja, produzir estímulos que incentivem a interação entre desconhecidos, e jamais considerar que o processo está concluído.
[2] Saiba mais aqui
No ano passado, surgiu o Conselho Brasileiro de Lideranças em Placemaking [3], versão local do Placemaking Leadership Council. O conselho reúne pessoas da academia, do mercado e do governo. “É uma estrutura horizontal, um fórum de pessoas que discutem experiências e modelos para implantar uma agenda em torno do espaço público nas cidades”, diz Ricardo Birmann, diretor da Urbanizadora Paranoazinho e diretor-presidente do conselho.
[3] Mais pelo link
“Estamos recebendo o contato de pessoas do Brasil inteiro com interesse nessa agenda”, afirma Birmann. Segundo o empresário, placemaking é um termo guarda-chuva que “abarca todas as diferentes atitudes, intenções, ações, que promovem a melhoria de um espaço urbano”. Portanto, o termo contempla tanto o morador que pinta a calçada de verde e amarelo durante a Copa do Mundo quanto uma empresa que adota uma praça e a mantém limpa e agradável. As noções de acupuntura e gentileza urbanas, portanto, também cabem nessa definição.
Gentrificação
A recuperação de espaços urbanos tende a valorizar os imóveis do entorno, com uma consequência indesejada: incapazes de continuar pagando os aluguéis, antigos moradores acabam expulsos para bairros mais distantes, deixando áreas tradicionais da cidade para uma população nova, com maior poder aquisitivo e menor ligação afetiva com a região. Com isso, iniciativas originalmente destinadas a melhorar as condições de vida de uma população já instalada podem acabar sendo o vetor de sua remoção. Esse fenômeno é conhecido como gentrificação [4].
[4] O termo inglês gentrification deriva de gentry, que designa a alta classe média
O vínculo entre a reapropriação humana dos espaços urbanos e a gentrificação transparece em casos como a revitalização de regiões como a Praça Roosevelt, no Centro de São Paulo. Essa área, antes degradada, voltou a ser frequentada graças a movimentos como o Baixo Centro (leia reportagem à pág. 44) e a instalação de teatros, a começar pelo espaço do grupo Satyros. Hoje, o setor imobiliário está investindo na área, mas os teatros têm dificuldade em se manter: os próprios Satyros já anunciaram que deverão mudar sua sede.
Estudando a relação dos vendedores ambulantes de São Paulo com a Copa do Mundo, no ano passado, a arquiteta e urbanista Luciana Itikawa, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), deu-se conta de que a questão central na gentrificação da cidade é a imagem que se faz do espaço público, ou seja, a definição de quem pode ou não pode estar em algum lugar.
Segundo ela, o problema da imagem aparece no padrão de monopólio de marca que começa a despontar na venda ambulante de morros cariocas, particularmente os que receberam UPPs. Como ocorreu na Copa do Mundo, ambulantes são contratados para vender exclusivamente as marcas de determinadas grandes empresas. Assim, as insígnias das grandes corporações se tornam a senha que valida a presença do vendedor, antes visto como camelô ou pedinte.
A urbanista afirma que o nó está na relação entre os problemas da população, os interesses do setor privado e a ação do poder público. “Se movimentos da população acabam beneficiando grandes corporações em detrimento da própria população – diz Itikawa –, isso só é possível como aval do poder público.” Este é o ente responsável por promover as negociações e aplicar o Estatuto das Cidades – que, segundo a urbanista, é um dos instrumentos mais avançados no mundo para redistribuir o valor excedente da cidade. Entretanto, essa redistribuição é muito deficiente