As tendências urbanísticas alteraram-se ao longo da História, levando algumas cidades a se desconectar de sua gente. Um novo modelo tenta fazer o resgate
Em uma época remota, o homem acreditou que a natureza e os estrangeiros lhe eram hostis e passou a delimitar e a murar perímetros onde viveriam apenas os iguais. De lá até aqui, camadas e mais camadas de urbanização se sobrepuseram a essas ocupações iniciais, enterrando literalmente as muitas faces da história da civilização. O primeiro modelo ocidental de cidade urbanizada, a pólis, teria surgido da “prancheta” do escultor Fídias, no século V antes de Cristo, na Grécia de Péricles. Com o fim do Império Romano, cidades medievais “brotaram” por todo o continente europeu. Com o tempo, foram consideradas antiquadas e insalubres, sucumbindo ao traçado sofisticado das cidades renascentistas de grandes eixos monumentais que, por sua vez, mal resistiram às duas revoluções industriais que se seguiram.
As cidades modernas que habitamos hoje foram sendo desenhadas a partir da lógica do desenvolvimento industrial do fim do século XIX e início do século XX. Algumas, como São Paulo, cresceram em escala tão avassaladora a partir da Segunda Guerra Mundial que, de certa forma, se desumanizaram. Separaram o sujeito (pessoas) do objeto (cidade). Por exemplo, grandes praças públicas do Centro viraram terminais de ônibus. Rios e córregos malcuidados acabaram canalizados como se esgoto fossem. Avenidas e viadutos para a circulação de carros acuaram os pedestres. A paisagem deteriorou-se. Políticas de higienização urbana e grandes distâncias entre local de moradia e de trabalho contribuíram para diminuir a presença de pessoas nas ruas. A sensação de insegurança aumentou.
Ora, se as cidades são a expressão de uma época traduzida no espaço, como dizem os arquitetos e urbanistas e como a própria História sugere, São Paulo é provavelmente uma exceção à regra. É difícil crer que o resultado de cidade que se vê hoje seja uma representação das aspirações paulistanas. Mais fácil acreditar que a proposta de um novo urbanismo, que vem se fortalecendo nos últimos anos em várias grandes cidades do mundo e do Brasil, particularmente em São Paulo, seja, esta sim, uma autêntica aspiração coletiva.
A ideia é trazer a cidade de volta a uma escala humana, abrindo espaço para pedestres e bicicletas, construindo muitos parques e praças, melhorando o transporte coletivo, projetando habitações compatíveis com a infraestrutura instalada, espalhando bancos pelas calçadas. Convidando, enfim, as pessoas para (re)ocuparem os espaços públicos que restaram com mais intimidade e afeto.
NO PRECIPÍCIO
Em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo, o urbanismo é um processo não sustentável, na medida em que se trata de uma ocupação antrópica da natureza, como lembra João Sette Whitaker, professor de planejamento urbano e coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Urbanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Cidades feudais também não foram sustentáveis, embora exercessem impactos incomparavelmente menores sobre a natureza.
Em decorrência do capitalismo, mais de 50% do mundo está urbanizado e a dúvida é se essas ações pontuais de intervenção no espaço público serão capazes de tornar a vida nas metrópoles menos impactante (leia reportagem “Operação ocupação“). Para Whitaker, se combinadas com o uso de novas tecnologias e com políticas sociais e habitacionais, poderão, sim, funcionar. Quer dizer, construir ciclovias e edifícios eficientes pode fazer diferença desde que 1,5 milhão de pessoas não continuem vivendo em áreas de mananciais.
Outro conceito que converge com os ideais desse novo urbanismo é o das cidades compactas, com maior densidade populacional nas áreas centrais, onde a infraestrutura geralmente é mais completa. “O modelo espraiado de cidade (sprawl urban) está empurrando a sociedade para a beira do precipício, para o limite ambiental”, constata Marcos Oliveira Costa, professor de Projetos e História da Arquitetura e Urbanismo da Fundação Armando Alvares Penteado e sócio do escritório de arquitetura e urbanismo Borelli e Merigo.
Há uma ilusão alimentada pelo mercado imobiliário de que morar em uma casa com árvores promove uma vida mais sustentável. “Ninguém contou que, para poder abraçar a árvore de manhã, essas pessoas têm de queimar cinco vezes mais combustível do que o sujeito que mora em um apartamento de um bairro central”, diz Costa.
E pensar que, por volta dos anos 1930, as cidades estavam prontas para enfrentar o crescimento estupendo que viria nas décadas seguintes. Tinham transporte público sobre trilhos e a possibilidade ainda de optar pelo adensamento em vez do sprawl. Mas o Modernismo, na ilusão de que as máquinas e o petróleo solucionariam todos os problemas da humanidade, deixou legados obsoletos do ponto de vista da sustentabilidade e da viabilidade social, entre os quais Marcos Costa destaca Brasília, Barra da Tijuca (na Zona Oeste do Rio) e Alphaville (na Grande São Paulo), locais onde não se vive adequadamente sem o uso diário de um carro. “E os modernistas gostavam tanto da palavra ‘eficiência’…”, diz Costa.
Para o professor da Faap, o melhor do movimento por um novo urbanismo é não negar a cidade real como fez o Modernismo. Isto é, em vez de botar tudo abaixo, procura-se conferir novos significados à cidade. “O propósito de construir ciclovias, por exemplo, não é com o intuito de resolver o problema do trânsito, mas de atender as pessoas que preferem usar bicicleta em vez de carro”, explica.
E o mais importante desse ativismo urbano que se vem consolidando em várias partes do mundo é o sinal de que há de fato um desejo de viver em cidades voltadas para as pessoas. “Ver os jovens ocupando loucamente as ruas em São Paulo mostra que já há uma vitalidade e uma intimidade com o espaço público que a geração anterior não experimentou”, testemunha Costa, ele próprio um morador da Consolação, um bairro central de São Paulo.
Entretanto, Costa acredita que para haver transformação ainda falta unidade aos grupos ativistas, o que lhes daria mais força para se contraporem à reação conservadora de moradores organizados que não querem ciclovias ou metrô na porta de casa, tampouco adensamento e gente na rua. “O debate em São Paulo ainda é ‘medieval’, tem até um Ministério Público que defende o uso de carros”, critica, referindo-se à liminar que tentou paralisar as obras de ciclovias na cidade (mais sobre cicloativismo na reportagem “Pedalando contra o vento“).
O ELO
Em sua análise, Whitaker consegue enxergar um ponto comum entre os vários movimentos atuais. Os avanços econômicos dos últimos anos permitiram a entrada de um grande contingente de jovens em universidades e, somados ao advento da internet, moldaram uma geração com outros parâmetros de referência. “São jovens de até 30 anos que cresceram na democracia, com possibilidade de reflexão, de ver e entender as coisas, de fazer comparações com outros países do mundo. Só do Ciência Sem Fronteiras [1] há mais de 100 mil alunos de Ensino Superior fora do Brasil que já sabem, por exemplo, como é a qualidade de vida em cidades como Amsterdã.”
[1] Programa do governo federal que promove intercâmbio para alunos de graduação e pós-graduação na área de tecnologia e inovação especializarem-se no exterior
Tudo isso gera, segundo ele, uma pressão que não vem mais das classes populares, como nos anos 1960 e 1970. “Vem de jovens de classe média e alta que começam a exigir políticas públicas, com o ‘público’ em todo o seu sentido, e a se indignar com o anacronismo do momento anterior”, afirma Whitaker.
O fato de algumas intervenções urbanas terem, em sua opinião, um viés mais elitista (como as ocupações cívicas do Largo da Batata [2]) e outras nem tanto (caso do Festival do Baixo Centro [3]) produz um efeito altamente positivo na cidade de São Paulo. “Essa junção, somada às velhas reivindicações populares, cria uma pressão de conscientização de que a cidade que agrada a uns e desagrada a outros é a melhor cidade, por ser mais plural e democrática”, opina. “Acho que estamos vivendo uma mudança que fará muita diferença em 10 ou 15 anos.”
[2] O velho e popular Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, passou por uma reforma higienista recente que o transformou em uma praça cimentada, agora palco de várias intervenções
[3] O festival é uma das programações do movimento Baixo Centro, cujo mote é “as ruas são para dançar”. A intenção dos ativistas é ressignificar a região degradada em torno do elevado Minhocão
METÁFORA DO MURO
O sociólogo italiano Massimo di Felice, autor do livro Paisagens Pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, crê que esse debate tem transitado apenas na superfície do iceberg. Para ele, cidades que chegaram ao estágio de metrópole, em que seus próprios habitantes não conhecem mais uns aos outros ou frequentemente se perdem por caminhos ainda desconhecidos, não têm mais muito jeito de ser reformulada. “Militar a favor da construção de ciclovias é simpático, mas é atuar apenas na ponta do iceberg. A consciência do limite do desenvolvimento e a possível extinção do gênero humano nos põe hoje perante a necessidade de uma análise mais radical, que chegue ao cerne da questão”, advoga.
O que entrou em crise, segundo Di Felice, não foi apenas o modelo econômico, mas o próprio estilo de vida do homem em suas grandes cidades. “Somos uma sociedade suicida e temos de ter a responsabilidade de, no mínimo, questionar tudo isso.”
Os muros que cercavam as cidades antigas e medievais são usados por Di Felice como metáfora em suas interpretações. Mesmo que a separação física hoje não exista, o homem não conseguiu mais fazer parte da natureza e, assim, apartado, reduziu tudo o que não era humano a matérias-primas e a objetos. “O muro é o fio que liga a pólis de Péricles à Carta de Atenas de Le Corbusier [4]; é o meio ambiente reduzido ao espaço interno, à paisagem e à centralidade da espécie humana”. Ou seja, para ele, com todo o legado positivo proporcionado pelas cidades – a história da civilização se passa basicamente no ambiente urbano –, o ser humano pensou ser independente da natureza. E hoje ele vê que o poço era mais fundo.
[4] Manifesto redigido pelo arquiteto francês Le Corbusier, no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado em Atenas, em 1933, em que se definem os conceitos do urbanismo moderno
Na opinião do sociólogo italiano radicado no Brasil, o País possui todas as características necessárias para se tornar um grande laboratório de experimentação de formas de habitar pós-urbana. O Brasil possui ilhas de não urbanidade: aldeias indígenas e povoados ribeirinhos portadores de uma ecologia em que o homem e a natureza são um só e essa experiência deveria ser mais bem estudada e usada para inspirar cidades. “É urgente desmistificar o mito da urbanidade e repensar um tipo de ecologia nova que, por meio de uma intervenção ativa da tecnologia digital em rede, possa permitir qualidade de vida em um contexto não mais urbano”, propõe.
Se um dia a centralização exigida pela industrialização e pela eletricidade justificaram as grandes concentrações urbanas, hoje, com o mundo já todo conectado em redes, é possível mudar esse paradigma. A digitalização e a possibilidade de acesso instantâneo de qualquer canto do mundo a boa parte das informações que a humanidade produz permitem uma qualidade de vida em áreas não urbanas quase igualada à experiência nas metrópoles. “Acho que a melhor forma de ajudar cidades com a escala de São Paulo é procurando lugares menos povoados para viver”, diz Di Felice.
DE PORTAS ABERTAS Exemplos de conexão entre cidadãos e natureza
Um olhar panorâmico global mostra a existência de várias cidades biofílicas, aquelas que se preocupam com o grau de conexão dos cidadãos com a natureza e outras formas de vida locais. Em Wellington (Nova Zelândia), grupos comunitários e voluntários, depois de 28 mil horas de dedicação, transformaram uma área urbana de 4 mil hectares em reserva natural. Em Oslo (Noruega), mais de 80% dos habitantes visitam anualmente os bosques que rodeiam a cidade, o que demonstra o valor que os residentes estão dando ao ambiente natural.
Nos Estados Unidos, pelo menos duas cidades já foram qualificadas como biofílicas: Nova York e Seattle. A primeira, por contar com o programa PlaNYC, segundo o qual, até 2030, cada habitante da cidade terá um espaço público verde a apenas 10 minutos de caminhada. E a segunda, por seu plano Seattle P-Patch, que visa construir um jardim urbano comunitário para cada 2.500 habitantes. Cingapura também ostenta o mesmo título. Conectou seus parques com 200 quilômetros de caminhos por meio de passarelas elevadas que podem ser acessadas de diferentes pontos da cidade.
Confira entrevista com Ciro Biderman (SPTrans) no Blog da Redação[:en]As tendências urbanísticas alteraram-se ao longo da História, levando algumas cidades a se desconectar de sua gente. Um novo modelo tenta fazer o resgate
Em uma época remota, o homem acreditou que a natureza e os estrangeiros lhe eram hostis e passou a delimitar e a murar perímetros onde viveriam apenas os iguais. De lá até aqui, camadas e mais camadas de urbanização se sobrepuseram a essas ocupações iniciais, enterrando literalmente as muitas faces da história da civilização. O primeiro modelo ocidental de cidade urbanizada, a pólis, teria surgido da “prancheta” do escultor Fídias, no século V antes de Cristo, na Grécia de Péricles. Com o fim do Império Romano, cidades medievais “brotaram” por todo o continente europeu. Com o tempo, foram consideradas antiquadas e insalubres, sucumbindo ao traçado sofisticado das cidades renascentistas de grandes eixos monumentais que, por sua vez, mal resistiram às duas revoluções industriais que se seguiram.
As cidades modernas que habitamos hoje foram sendo desenhadas a partir da lógica do desenvolvimento industrial do fim do século XIX e início do século XX. Algumas, como São Paulo, cresceram em escala tão avassaladora a partir da Segunda Guerra Mundial que, de certa forma, se desumanizaram. Separaram o sujeito (pessoas) do objeto (cidade). Por exemplo, grandes praças públicas do Centro viraram terminais de ônibus. Rios e córregos malcuidados acabaram canalizados como se esgoto fossem. Avenidas e viadutos para a circulação de carros acuaram os pedestres. A paisagem deteriorou-se. Políticas de higienização urbana e grandes distâncias entre local de moradia e de trabalho contribuíram para diminuir a presença de pessoas nas ruas. A sensação de insegurança aumentou.
Ora, se as cidades são a expressão de uma época traduzida no espaço, como dizem os arquitetos e urbanistas e como a própria História sugere, São Paulo é provavelmente uma exceção à regra. É difícil crer que o resultado de cidade que se vê hoje seja uma representação das aspirações paulistanas. Mais fácil acreditar que a proposta de um novo urbanismo, que vem se fortalecendo nos últimos anos em várias grandes cidades do mundo e do Brasil, particularmente em São Paulo, seja, esta sim, uma autêntica aspiração coletiva.
A ideia é trazer a cidade de volta a uma escala humana, abrindo espaço para pedestres e bicicletas, construindo muitos parques e praças, melhorando o transporte coletivo, projetando habitações compatíveis com a infraestrutura instalada, espalhando bancos pelas calçadas. Convidando, enfim, as pessoas para (re)ocuparem os espaços públicos que restaram com mais intimidade e afeto.
NO PRECIPÍCIO
Em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo, o urbanismo é um processo não sustentável, na medida em que se trata de uma ocupação antrópica da natureza, como lembra João Sette Whitaker, professor de planejamento urbano e coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Urbanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Cidades feudais também não foram sustentáveis, embora exercessem impactos incomparavelmente menores sobre a natureza.
Em decorrência do capitalismo, mais de 50% do mundo está urbanizado e a dúvida é se essas ações pontuais de intervenção no espaço público serão capazes de tornar a vida nas metrópoles menos impactante (leia reportagem “Operação ocupação“). Para Whitaker, se combinadas com o uso de novas tecnologias e com políticas sociais e habitacionais, poderão, sim, funcionar. Quer dizer, construir ciclovias e edifícios eficientes pode fazer diferença desde que 1,5 milhão de pessoas não continuem vivendo em áreas de mananciais.
Outro conceito que converge com os ideais desse novo urbanismo é o das cidades compactas, com maior densidade populacional nas áreas centrais, onde a infraestrutura geralmente é mais completa. “O modelo espraiado de cidade (sprawl urban) está empurrando a sociedade para a beira do precipício, para o limite ambiental”, constata Marcos Oliveira Costa, professor de Projetos e História da Arquitetura e Urbanismo da Fundação Armando Alvares Penteado e sócio do escritório de arquitetura e urbanismo Borelli e Merigo.
Há uma ilusão alimentada pelo mercado imobiliário de que morar em uma casa com árvores promove uma vida mais sustentável. “Ninguém contou que, para poder abraçar a árvore de manhã, essas pessoas têm de queimar cinco vezes mais combustível do que o sujeito que mora em um apartamento de um bairro central”, diz Costa.
E pensar que, por volta dos anos 1930, as cidades estavam prontas para enfrentar o crescimento estupendo que viria nas décadas seguintes. Tinham transporte público sobre trilhos e a possibilidade ainda de optar pelo adensamento em vez do sprawl. Mas o Modernismo, na ilusão de que as máquinas e o petróleo solucionariam todos os problemas da humanidade, deixou legados obsoletos do ponto de vista da sustentabilidade e da viabilidade social, entre os quais Marcos Costa destaca Brasília, Barra da Tijuca (na Zona Oeste do Rio) e Alphaville (na Grande São Paulo), locais onde não se vive adequadamente sem o uso diário de um carro. “E os modernistas gostavam tanto da palavra ‘eficiência’…”, diz Costa.
Para o professor da Faap, o melhor do movimento por um novo urbanismo é não negar a cidade real como fez o Modernismo. Isto é, em vez de botar tudo abaixo, procura-se conferir novos significados à cidade. “O propósito de construir ciclovias, por exemplo, não é com o intuito de resolver o problema do trânsito, mas de atender as pessoas que preferem usar bicicleta em vez de carro”, explica.
E o mais importante desse ativismo urbano que se vem consolidando em várias partes do mundo é o sinal de que há de fato um desejo de viver em cidades voltadas para as pessoas. “Ver os jovens ocupando loucamente as ruas em São Paulo mostra que já há uma vitalidade e uma intimidade com o espaço público que a geração anterior não experimentou”, testemunha Costa, ele próprio um morador da Consolação, um bairro central de São Paulo.
Entretanto, Costa acredita que para haver transformação ainda falta unidade aos grupos ativistas, o que lhes daria mais força para se contraporem à reação conservadora de moradores organizados que não querem ciclovias ou metrô na porta de casa, tampouco adensamento e gente na rua. “O debate em São Paulo ainda é ‘medieval’, tem até um Ministério Público que defende o uso de carros”, critica, referindo-se à liminar que tentou paralisar as obras de ciclovias na cidade (mais sobre cicloativismo na reportagem “Pedalando contra o vento“).
O ELO
Em sua análise, Whitaker consegue enxergar um ponto comum entre os vários movimentos atuais. Os avanços econômicos dos últimos anos permitiram a entrada de um grande contingente de jovens em universidades e, somados ao advento da internet, moldaram uma geração com outros parâmetros de referência. “São jovens de até 30 anos que cresceram na democracia, com possibilidade de reflexão, de ver e entender as coisas, de fazer comparações com outros países do mundo. Só do Ciência Sem Fronteiras [1] há mais de 100 mil alunos de Ensino Superior fora do Brasil que já sabem, por exemplo, como é a qualidade de vida em cidades como Amsterdã.”
[1] Programa do governo federal que promove intercâmbio para alunos de graduação e pós-graduação na área de tecnologia e inovação especializarem-se no exterior
Tudo isso gera, segundo ele, uma pressão que não vem mais das classes populares, como nos anos 1960 e 1970. “Vem de jovens de classe média e alta que começam a exigir políticas públicas, com o ‘público’ em todo o seu sentido, e a se indignar com o anacronismo do momento anterior”, afirma Whitaker.
O fato de algumas intervenções urbanas terem, em sua opinião, um viés mais elitista (como as ocupações cívicas do Largo da Batata [2]) e outras nem tanto (caso do Festival do Baixo Centro [3]) produz um efeito altamente positivo na cidade de São Paulo. “Essa junção, somada às velhas reivindicações populares, cria uma pressão de conscientização de que a cidade que agrada a uns e desagrada a outros é a melhor cidade, por ser mais plural e democrática”, opina. “Acho que estamos vivendo uma mudança que fará muita diferença em 10 ou 15 anos.”
[2] O velho e popular Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, passou por uma reforma higienista recente que o transformou em uma praça cimentada, agora palco de várias intervenções
[3] O festival é uma das programações do movimento Baixo Centro, cujo mote é “as ruas são para dançar”. A intenção dos ativistas é ressignificar a região degradada em torno do elevado Minhocão
METÁFORA DO MURO
O sociólogo italiano Massimo di Felice, autor do livro Paisagens Pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, crê que esse debate tem transitado apenas na superfície do iceberg. Para ele, cidades que chegaram ao estágio de metrópole, em que seus próprios habitantes não conhecem mais uns aos outros ou frequentemente se perdem por caminhos ainda desconhecidos, não têm mais muito jeito de ser reformulada. “Militar a favor da construção de ciclovias é simpático, mas é atuar apenas na ponta do iceberg. A consciência do limite do desenvolvimento e a possível extinção do gênero humano nos põe hoje perante a necessidade de uma análise mais radical, que chegue ao cerne da questão”, advoga.
O que entrou em crise, segundo Di Felice, não foi apenas o modelo econômico, mas o próprio estilo de vida do homem em suas grandes cidades. “Somos uma sociedade suicida e temos de ter a responsabilidade de, no mínimo, questionar tudo isso.”
Os muros que cercavam as cidades antigas e medievais são usados por Di Felice como metáfora em suas interpretações. Mesmo que a separação física hoje não exista, o homem não conseguiu mais fazer parte da natureza e, assim, apartado, reduziu tudo o que não era humano a matérias-primas e a objetos. “O muro é o fio que liga a pólis de Péricles à Carta de Atenas de Le Corbusier [4]; é o meio ambiente reduzido ao espaço interno, à paisagem e à centralidade da espécie humana”. Ou seja, para ele, com todo o legado positivo proporcionado pelas cidades – a história da civilização se passa basicamente no ambiente urbano –, o ser humano pensou ser independente da natureza. E hoje ele vê que o poço era mais fundo.
[4] Manifesto redigido pelo arquiteto francês Le Corbusier, no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado em Atenas, em 1933, em que se definem os conceitos do urbanismo moderno
Na opinião do sociólogo italiano radicado no Brasil, o País possui todas as características necessárias para se tornar um grande laboratório de experimentação de formas de habitar pós-urbana. O Brasil possui ilhas de não urbanidade: aldeias indígenas e povoados ribeirinhos portadores de uma ecologia em que o homem e a natureza são um só e essa experiência deveria ser mais bem estudada e usada para inspirar cidades. “É urgente desmistificar o mito da urbanidade e repensar um tipo de ecologia nova que, por meio de uma intervenção ativa da tecnologia digital em rede, possa permitir qualidade de vida em um contexto não mais urbano”, propõe.
Se um dia a centralização exigida pela industrialização e pela eletricidade justificaram as grandes concentrações urbanas, hoje, com o mundo já todo conectado em redes, é possível mudar esse paradigma. A digitalização e a possibilidade de acesso instantâneo de qualquer canto do mundo a boa parte das informações que a humanidade produz permitem uma qualidade de vida em áreas não urbanas quase igualada à experiência nas metrópoles. “Acho que a melhor forma de ajudar cidades com a escala de São Paulo é procurando lugares menos povoados para viver”, diz Di Felice.
DE PORTAS ABERTAS Exemplos de conexão entre cidadãos e natureza
Um olhar panorâmico global mostra a existência de várias cidades biofílicas, aquelas que se preocupam com o grau de conexão dos cidadãos com a natureza e outras formas de vida locais. Em Wellington (Nova Zelândia), grupos comunitários e voluntários, depois de 28 mil horas de dedicação, transformaram uma área urbana de 4 mil hectares em reserva natural. Em Oslo (Noruega), mais de 80% dos habitantes visitam anualmente os bosques que rodeiam a cidade, o que demonstra o valor que os residentes estão dando ao ambiente natural.
Nos Estados Unidos, pelo menos duas cidades já foram qualificadas como biofílicas: Nova York e Seattle. A primeira, por contar com o programa PlaNYC, segundo o qual, até 2030, cada habitante da cidade terá um espaço público verde a apenas 10 minutos de caminhada. E a segunda, por seu plano Seattle P-Patch, que visa construir um jardim urbano comunitário para cada 2.500 habitantes. Cingapura também ostenta o mesmo título. Conectou seus parques com 200 quilômetros de caminhos por meio de passarelas elevadas que podem ser acessadas de diferentes pontos da cidade.
Confira entrevista com Ciro Biderman (SPTrans) no Blog da Redação