O “berço do jazz”. A “rainha do Mississippi”. A cidade perdida no tempo, perdida em seu próprio tempo – “the city that care forgot”. Nova Orleans nunca foi uma cidade comum: com sua história peculiar, palco do encontro de diferentes culturas (franceses, espanhóis, norte-americanos, negros africanos, além de nativos), Nova Orleans sempre teve um ritmo diferente de qualquer outra cidade – uma receita que juntava uma sensação incomum de abandono, rebeldia, liberdade criativa e fervura cultural e racial. Não é à toa que ela reúne o maior número de músicos per capital nos Estados Unidos!
Há dez anos, Nova Orleans vivia um longo ostracismo. Submersa num fatalismo bastante característico, a cidade parecia caminhar para algum tipo de conclusão. Depois da luta racial que tomou conta da cidade nos anos 1950 e 1960, a maioria negra de Nova Orleans sentia-se desiludida com os resultados dessa luta histórica. A pobreza ainda era a marca da cidade, junto com as construções históricas erguidas pelos colonizadores franceses no século XVIII no hoje célebre French Quarter.
O fatalismo de Nova Orleans tem causa histórica. Em 1722, apenas quatro anos após sua fundação por exploradores franceses, a cidade foi devastada por um furacão, que destruiu praticamente todas as construções existentes. A Nova Orleans do French Quarter foi construída sobre as ruínas dessa antiga cidade, e carrega consigo as marcas desse desastre. Diques foram erguidos para conter a água do mar em tormentas, de forma a preservar as regiões mais baixas de Nova Orleans, ocupadas no decorrer do século XX para alimentar sua expansão urbana. Essas áreas foram sendo ocupadas por comunidades negras, que representam a maioria da população de Nova Orleans (em torno de 60%, o maior índice dentre as grandes cidades dos EUA).
No entanto, a manutenção desse sistema de proteção era bastante precária, e o poder público estadual e federal ignorava repetidos alertas sobre a vulnerabilidade de Nova Orleans em situações climáticas extremas, como furacões. Na véspera daquele final de agosto de 2005, a cidade parecia abandonada a sua própria desventura.
Aí, veio o Katrina.
Três informações nos dão uma noção mais clara do estrago causado pela passagem do Katrina em Nova Orleans. Primeiro, o prejuízo de US$ 108 bilhões (valores de 2005), que permanece sendo um recorde mesmo após outros desastres naturais da mesma dimensão, como a passagem do furacão Sandy na costa leste nos EUA em 2012. Segundo, o fato de que, em 31 de agosto, cerca de 80% da cidade estava debaixo d’água (em alguns locais, a água subiu mais de 4 metros), com exceção de zonas urbanas localizadas em áreas mais altas (entre elas, a do French Quarter), construídas num plano mais elevado. E, finalmente, o fato de Nova Orleans ter perdido sua condição histórica de cidade mais populosa da Louisiana, posição que não foi recuperada até hoje.
Obviamente, é ilusório pensar que o estrago foi causado pelo Katrina em si: se olharmos atentamente para a sequência de eventos e decisões tomadas, podemos ver a tragédia de Nova Orleans como o “pior desastre de engenharia do mundo desde Chernobyl”, como disse Raymond B. Seed, professor da University of California Berkeley à época do Katrina. Boa parte dos danos decorrentes da passagem do furacão na costa da Louisiana poderia ter sido evitada se as autoridades locais, estaduais e federais tivessem tomado decisões corretas e no tempo adequado. Infelizmente, nenhuma dessas autoridades estava preparada para lidar com isso: o impacto do Katrina em si foi potencializado de forma brutal com o despreparo das forças públicas em todos os níveis; num momento em que os EUA tinham tropas ativas em dois países do Oriente Médio, com toda logística e infraestrutura preparada para apoiá-las naquela distante região, as forças armadas do país não tinham condições logísticas de levar garrafas de água potável para um estádio de futebol abarrotado de desabrigados dentro do seu próprio território.
O Katrina fez emergir preocupações sobre a resiliência de grandes cidades para enfrentar desastres associados a eventos climáticos extremos, um perigo que pode tornar-se mais frequente com o avanço das mudanças climáticas. Mais do que ter uma infraestrutura resiliente em si, o caso de Nova Orleans deixou claro a necessidade de uma articulação coerente e efetiva entre os atores públicos e privados tanto na preparação quanto na resposta imediata ao desastre. Na era das mudanças climáticas, o custo da desarticulação, do despreparo e da inação pode ser grande demais, como o foi em Nova Orleans.
Dez anos depois da passagem do Katrina, Nova Orleans ainda é uma cidade em reconstrução. Alimentada com bilhões de dólares destinados para os esforços de recuperação da cidade, Nova Orleans tornou-se um laboratório para experiências de inovação urbanística. Novos habitantes chegaram para auxiliar no esforço, trazendo um espírito diferente de empreendedorismo social em Nova Orleans. O fatalismo tão característico daquela cidade deu lugar para esperança: mais aberta e mais viva, pela primeira vez em muito tempo, Nova Orleans tem a oportunidade de construir um futuro melhor para si mesma. No entanto, as feridas abertas pelo vento do Katrina persistem.
Milhares de desabrigados do Katrina continuam distantes de Nova Orleans, em particular os mais pobres. Entre 2005 e 2015, a cidade perdeu quase 110 mil habitantes. As clivagens raciais são marcantes nesse cenário pós-Katrina: a população negra de Nova Orleans diminuiu consideravelmente, ainda que se mantenha majoritária na composição demográfica da cidade. Antigos bairros pobres, ocupados por comunidades negras, deram espaço para empreendimentos imobiliários ocupados em sua maioria por brancos de renda mais elevada. O custo de vida aumentou consideravelmente na região, penalizando bastante os mais pobres. Assim, no caso de Nova Orleans, um efeito colateral nítido da tragédia e dos esforços posteriores de reconstrução é a gentrificação da cidade.
Dez anos depois dos ventos do Katrina atingirem Nova Orleans, a cidade ainda luta para recuperar e manter o espírito rebelde e criativo que a fez célebre, ao mesmo tempo em que tenta se afastar do fatalismo que sempre carregou sobre si mesma.[:en]
O “berço do jazz”. A “rainha do Mississippi”. A cidade perdida no tempo, perdida em seu próprio tempo – “the city that care forgot”. Nova Orleans nunca foi uma cidade comum: com sua história peculiar, palco do encontro de diferentes culturas (franceses, espanhóis, norte-americanos, negros africanos, além de nativos), Nova Orleans sempre teve um ritmo diferente de qualquer outra cidade – uma receita que juntava uma sensação incomum de abandono, rebeldia, liberdade criativa e fervura cultural e racial. Não é à toa que ela reúne o maior número de músicos per capital nos Estados Unidos!
Há dez anos, Nova Orleans vivia um longo ostracismo. Submersa num fatalismo bastante característico, a cidade parecia caminhar para algum tipo de conclusão. Depois da luta racial que tomou conta da cidade nos anos 1950 e 1960, a maioria negra de Nova Orleans sentia-se desiludida com os resultados dessa luta histórica. A pobreza ainda era a marca da cidade, junto com as construções históricas erguidas pelos colonizadores franceses no século XVIII no hoje célebre French Quarter.
O fatalismo de Nova Orleans tem causa histórica. Em 1722, apenas quatro anos após sua fundação por exploradores franceses, a cidade foi devastada por um furacão, que destruiu praticamente todas as construções existentes. A Nova Orleans do French Quarter foi construída sobre as ruínas dessa antiga cidade, e carrega consigo as marcas desse desastre. Diques foram erguidos para conter a água do mar em tormentas, de forma a preservar as regiões mais baixas de Nova Orleans, ocupadas no decorrer do século XX para alimentar sua expansão urbana. Essas áreas foram sendo ocupadas por comunidades negras, que representam a maioria da população de Nova Orleans (em torno de 60%, o maior índice dentre as grandes cidades dos EUA).
No entanto, a manutenção desse sistema de proteção era bastante precária, e o poder público estadual e federal ignorava repetidos alertas sobre a vulnerabilidade de Nova Orleans em situações climáticas extremas, como furacões. Na véspera daquele final de agosto de 2005, a cidade parecia abandonada a sua própria desventura.
Aí, veio o Katrina.
Três informações nos dão uma noção mais clara do estrago causado pela passagem do Katrina em Nova Orleans. Primeiro, o prejuízo de US$ 108 bilhões (valores de 2005), que permanece sendo um recorde mesmo após outros desastres naturais da mesma dimensão, como a passagem do furacão Sandy na costa leste nos EUA em 2012. Segundo, o fato de que, em 31 de agosto, cerca de 80% da cidade estava debaixo d’água (em alguns locais, a água subiu mais de 4 metros), com exceção de zonas urbanas localizadas em áreas mais altas (entre elas, a do French Quarter), construídas num plano mais elevado. E, finalmente, o fato de Nova Orleans ter perdido sua condição histórica de cidade mais populosa da Louisiana, posição que não foi recuperada até hoje.
Obviamente, é ilusório pensar que o estrago foi causado pelo Katrina em si: se olharmos atentamente para a sequência de eventos e decisões tomadas, podemos ver a tragédia de Nova Orleans como o “pior desastre de engenharia do mundo desde Chernobyl”, como disse Raymond B. Seed, professor da University of California Berkeley à época do Katrina. Boa parte dos danos decorrentes da passagem do furacão na costa da Louisiana poderia ter sido evitada se as autoridades locais, estaduais e federais tivessem tomado decisões corretas e no tempo adequado. Infelizmente, nenhuma dessas autoridades estava preparada para lidar com isso: o impacto do Katrina em si foi potencializado de forma brutal com o despreparo das forças públicas em todos os níveis; num momento em que os EUA tinham tropas ativas em dois países do Oriente Médio, com toda logística e infraestrutura preparada para apoiá-las naquela distante região, as forças armadas do país não tinham condições logísticas de levar garrafas de água potável para um estádio de futebol abarrotado de desabrigados dentro do seu próprio território.
O Katrina fez emergir preocupações sobre a resiliência de grandes cidades para enfrentar desastres associados a eventos climáticos extremos, um perigo que pode tornar-se mais frequente com o avanço das mudanças climáticas. Mais do que ter uma infraestrutura resiliente em si, o caso de Nova Orleans deixou claro a necessidade de uma articulação coerente e efetiva entre os atores públicos e privados tanto na preparação quanto na resposta imediata ao desastre. Na era das mudanças climáticas, o custo da desarticulação, do despreparo e da inação pode ser grande demais, como o foi em Nova Orleans.
Dez anos depois da passagem do Katrina, Nova Orleans ainda é uma cidade em reconstrução. Alimentada com bilhões de dólares destinados para os esforços de recuperação da cidade, Nova Orleans tornou-se um laboratório para experiências de inovação urbanística. Novos habitantes chegaram para auxiliar no esforço, trazendo um espírito diferente de empreendedorismo social em Nova Orleans. O fatalismo tão característico daquela cidade deu lugar para esperança: mais aberta e mais viva, pela primeira vez em muito tempo, Nova Orleans tem a oportunidade de construir um futuro melhor para si mesma. No entanto, as feridas abertas pelo vento do Katrina persistem.
Milhares de desabrigados do Katrina continuam distantes de Nova Orleans, em particular os mais pobres. Entre 2005 e 2015, a cidade perdeu quase 110 mil habitantes. As clivagens raciais são marcantes nesse cenário pós-Katrina: a população negra de Nova Orleans diminuiu consideravelmente, ainda que se mantenha majoritária na composição demográfica da cidade. Antigos bairros pobres, ocupados por comunidades negras, deram espaço para empreendimentos imobiliários ocupados em sua maioria por brancos de renda mais elevada. O custo de vida aumentou consideravelmente na região, penalizando bastante os mais pobres. Assim, no caso de Nova Orleans, um efeito colateral nítido da tragédia e dos esforços posteriores de reconstrução é a gentrificação da cidade.
Dez anos depois dos ventos do Katrina atingirem Nova Orleans, a cidade ainda luta para recuperar e manter o espírito rebelde e criativo que a fez célebre, ao mesmo tempo em que tenta se afastar do fatalismo que sempre carregou sobre si mesma.
Bruno Toledo