Afuá e outros municípios da Amazônia ribeirinha padecem com os ineficientes resultados de décadas de políticas generalistas imaginadas em um distante gabinete em Brasília ou Belém
POR JOÃO MEIRELLES FILHO*
Imagine os Brasis com alguns dos piores indicadores sociais. Imagine a maioria de seus moradores vivendo em comunidades isoladas, nas quais crianças passam horas remando em canoas para chegar às escolas instaladas em palafitas precárias, em que alunos de diferentes séries compartilham um mesmo professor e uma mesma sala de aula, sem paredes, sem livros, separadas da sala seguinte por um mero quadro negro. Agora, imagine se houvesse políticas públicas abrangentes, capazes de alcançar todas as localidades com, por exemplo, doações de ônibus escolares. Fantástico, não seria?
Seria de fato transformador contar com ônibus escolar se a doação não fosse para um município que não tem uma única rua ou estrada. Trata-se de Afuá, no Marajó, o maior arquipélago fluviomarinho do planeta, nos deltas dos rios Amazonas e Tocantins. Nessa cidade ribeirinha, inteiramente sobre palafitas e pontes, as passarelas são tão estreitas que é proibido o tráfego de veículos automotores, inclusive de motocicletas. Se não fossem trágicos os indicadores educacionais da região, seria cômica a chegada de um ônibus escolar a Afuá.
Afuá e outros municípios da Amazônia ribeirinha padecem com os ineficientes resultados de décadas de políticas generalistas imaginadas em um distante gabinete em Brasília ou Belém. Entre estes resultados está o inchaço dos grandes centros urbanos, a inadequação de indicadores superficiais para tratar questões regionais, e a marginalização crescente no acesso a políticas públicas – que deveriam responder aos direitos civis básicos, como água, saúde, educação e segurança.
Por outro lado, no mesmo Marajó, no município de Curralinho, o fortalecimento da organização social requer políticas públicas compatíveis com seus anseios e necessidades. A reação local começa com exigência de maior cuidado por parte do IBGE e de outros órgãos de estatística, pois a população não aceita o indicador oficial de menor renda per capita entre os 5.570 municípios brasileiros.
Pois nesse município o persistente exercício de organização social das 1.500 famílias de ribeirinhos do Rio Canaticu vem dando resultado. Recentemente, esse grupo decidiu se organizar para enfrentar a crescente escassez de pescado. Juntamente com a academia, a Colônia de Pesca, a prefeitura e entidades da sociedade civil, como o Lupa Marajó e o Instituto Peabiru, realizaram o Projeto Marajó Viva Pesca, patrocinado pela Petrobras e o governo federal.
Parece simples, mas chegar a acordos voluntários, que satisfaçam 1.500 famílias, distribuídas em 29 localidades e, de forma participativa, exige algum esforço. Assim, ao longo de 24 meses e após 35 reuniões, e respeitando-se as características naturais, culturais e econômicas de cada uma das três regiões do rio – a cabeceira, o Médio Canaticu e o Baixo Canaticu –, formaram-se oito polos, que resultaram em acordos de pesca para todo o rio e afluentes. E o Canaticu é apenas um dos milhares de rios da Amazônia, que dificilmente será localizado em um mapa sem um esforço. E as 29 localidades são uma fração diante das 30 mil microlocalidades da Amazônia.
A questão central sobre as políticas públicas é: quem sabe do que o lugar precisa é quem mora e vive nele. É possível imaginar que mais de 4 milhões de pessoas têm no pescado a sua segurança alimentar na Amazônia; ou que os milhões de pescadores destes Brasis, dos rios, litorais e oceanos possam receber portarias elucubradas por sátrapas que não distinguem acará de aracu? Que pensa que acari e uacari são a mesma coisa [1]?
[1] Acará, aracu e acari são espécies de peixe e o uacari é uma espécie de macaco
E por que as escolas dos Brasis Rurais, acostumadas ao peixe-com-farinha, ao açaí ou a frutas e outras comidas, precisam refestelar as suas crianças com salsicha em lata, macarrão, bolacha e suco artificial como merenda? Por que este mesmo peixe não pode estar na merenda escolar, e manter-se na base da economia local?
Os moradores do Rio Canaticu conseguiram mais: atraíram projetos culturais, econômicos, centros de inclusão digital, quadras esportivas iluminadas com energia solar, foram matéria da imprensa de São Paulo, Alemanha; e sua determinação de verticalizar a produção do açaí resultou na criação da Cooperativa de Ribeirinhos Extrativistas Agroindustrial do Marajó – Sementes do Marajó, cujo desafio atual é mobilizar recursos e parcerias para uma fábrica de processamento de polpa de frutos.
Mais que ônibus escolares distribuídos como cartelas de bingo, os Brasis querem ter participação, de forma democrática, nas políticas públicas que afetam diretamente as suas vidas, especialmente aquelas relacionadas a direitos cidadãos. Colaboraram: Manoel Potiguar e Tiago Chaves, respectivamente pesquisador e jornalista do Instituto Peabiru
*Empreendedor social e escritor, dirige o Instituto Peabiru em Belém