A discriminação racial, que Trump usa para alimentar sua campanha, já é considerada um grande problema por nada menos que metade da população dos Estados Unidos
A Guerra Civil Americana terminou há 150 anos, mas um de seus principais pivôs, a discriminação contra negros, continua viva e forte nas entranhas dos Estados Unidos. Pesquisa de opinião nacional conduzida em novembro pela CNN e a Kaiser Family Foundation indicou que metade dos americanos considera o racismo um “grande problema” – há quatro anos, essa era a opinião de apenas um quarto dos entrevistados.
Essa percepção deriva dos inúmeros casos de violência contra negros, seja nas ações policiais, nos campi universitários, seja nos cultos religiosos. Em 2015, pelo menos 270 negros morreram pelas mãos da polícia. Destes, 69 estavam desarmados e muitos não tinham antecedentes criminais.
A violência policial levou à criação do movimento Black Lives Matter (Vidas de Negros são Importantes), uma iniciativa pró direitos humanos como há muito não se via no país. O grupo já conta com algumas vitórias, como a demissão dos chefes de polícia de duas cidades importantes, Chicago e Baltimore.
Conflitos raciais também pipocaram em 51 universidades americanas, até mesmo na prestigiosa Universidade Yale, onde garotas negras teriam sido barradas na entrada de uma festa de um grêmio estudantil.
Esses conflitos levaram à queda do reitor da Universidade do Missouri e a reivindicações de mais diversidade nos programas de doutorado e no corpo docente, e o fim das exibições de racismo.
“As pessoas achavam que se fossem à universidade, se vestissem de uma determinada forma e tivessem um certo grau de educação, seriam poupadas”, reflete Erika Totten, uma das líderes do Black Lives Matter. “Mas agora há uma crescente percepção de que não é o caso. Campi universitários não protegem da discriminação.” É uma reflexão de especial interesse para nós brasileiros, que vira e mexe propagamos a crença de que, no Brasil, o preconceito é contra pobres, e não negros.
Templos religiosos também foram alvo de agressões racistas. Num episódio icônico de 2015, um jovem de 21 anos, Dylann Roof, matou nove pessoas de uma igreja batista frequentada por negros na Carolina do Sul, um dos estados em que a cultura escravocrata demora a arrefecer.
O atentado traz à memória os muitos incêndios contra igrejas que desencadearam o movimento de direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 1950, 1960 e 1970. Roof confessou que sua motivação era fazer uma loucura para “iniciar uma guerra racial”. Ilusão sua: nos EUA esse conflito nunca teve trégua.
A discriminação racial anda tão forte que tem até representação na campanha presidencial. O bilionário Donald Trump, favorito à indicação do Partido Republicano, que já havia equiparado imigrantes mexicanos a traficantes e estupradores e proposto impedir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos, defendeu seus correligionários que expulsaram um militante do movimento Black Lives Matter de um de seus comícios.
Em seu costumeiro tom de bravata, Trump argumentou que o ativista mereceu apanhar. Atitudes como essas lhe valeram o apoio de dirigentes de grupos supremacistas brancos, como a Ku Klux Klan, que aproveitaram a oportunidade para sair das sombras onde operam. Há dois meses, quando meu marido viajava pelo interior do estado de Washington, na costa do Pacífico, viu-se em meio a uma convenção de supremacistas arianos, todos portando tatuagens de suásticas. Circulavam tranquilamente, como que integrados à paisagem.
Nesse contexto, é fácil entender o alvoroço causado por Rachel Dolezal, uma aguerrida militante do movimento negro. Durante uma década, ela usou de expedientes para disfarçar o cabelo aloirado e a pele clara, que denunciavam suas origens tchecas, suecas e alemãs. Publicou nas redes sociais fotos ao lado de um senhor negro, indicando que ele era seu pai. Fez discursos inflamados sobre a discriminação que sentia na pele.
Mas sua história desmoronou quando sua mãe veio a público, documentos em punho, para “tirar a filha do armário”. O caso gerou comoção nas redes sociais. Dolezal levou bordoadas de todos os lados. Seus críticos argumentam que, se ela abandonasse o creme autobronzeante e as tranças rastafári, poderia circular pelas ruas dos Estados Unidos despreocupada. Mas, como não cresceu com medo, não teria como entender ou merecer a identidade negra.