Uso excessivo e falta de alinhamento em relação ao significado das expressões prejudicam o avanço da pauta que mais prezamos
Por George Magalhães*
Apesar de possuírem naturezas bem distintas, as palavras e os bens duráveis se assemelham em ao menos um aspecto: se não houver cuidado, ambos podem se desgastar por conta de seu uso excessivo.
Na Psicologia, há mais de um século se estuda o fenômeno da saturação semântica [1], que acarreta perda temporária da noção do significado de uma palavra por sua repetição constante. Isso ocorre como um mecanismo de prevenção do nosso cérebro ao perceber uma ativação extremamente repetitiva dos processos responsáveis pela conexão entre o som que ouvimos e nossas memórias relacionadas a ele, criando assim a nossa percepção do seu significado.
[1] Ver o trabalho de Leon Jakobovits James aqui
Por mais que seja inusitado, talvez possamos pensar um fenômeno análogo de “saturação conceitual” agindo sobre algumas expressões de nossa língua. A repetição excessiva e inadvertida desses termos em diferentes sentidos e contextos pode levar a uma perda da compreensão de seu sentido. O ouvinte, então, passa a ter dificuldades de associá-los com seu conceito original. É o que parece ocorrer, com certa frequência, com um grupo de expressões relacionadas a temas ambientais.
A língua se altera dinamicamente enquanto as sociedades evoluem. Com isso, novos conhecimentos, fenômenos e sentimentos são incorporados aos dicionários. Dessa forma, é esperado que novas expressões comecem a ser utilizadas com maior frequência quando adquirimos mais consciência sobre os fenômenos da natureza e as interações da sociedade com o ambiente.
De tempos em tempos surgem jargões relacionados aos temas ambientais e, como consequência, temos visto um frenesi para incluir essas expressões na visão, missão e valores das organizações, incorporar aos rótulos dos produtos, pronunciar durante discussões no parlamento, inserir em peças comerciais, discutir de maneira infindável em rodas de amigos, entre outros nobres usos. Já foram a bola da vez: “ecologicamente correto”, “responsabilidade socioambiental”, “ecofriendly”, “verde”, “biodegradável”, “carbono zero”, “sustentável” etc.
Nossa tendência reducionista nos leva a utilizar expressões como essas para definir objetos, processos, ações. E aí mora o perigo. Imagine entrar em um supermercado, parar em frente a gôndola e encontrar dois produtos similares com o adjetivo “sustentável” entre seus atributos: como decidir entre esses dois produtos? Como decifrar quais características da sustentabilidade carregam cada um? E, mesmo que essas informações estejam ali detalhadas em maior ou menor grau, com qual profundidade somos capazes de discutir com a pessoa ao lado qual dos dois está mais próximo da real ideia de sustentabilidade de um objeto?
No dicionário, o adjetivo sustentável remete a algo que se pode manter, sustentar. Porém, o termo foi aplicado pela primeira vez no campo ambiental como um modo de qualificar o desenvolvimento [2], de maneira que atendesse às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade de gerações futuras de atender suas próprias necessidades. Disso derivou o termo “sustentabilidade” para indicar o grau em que tal desenvolvimento sustentável é alcançado. Daí a incluí-lo como característica de um produto, foram necessárias muitas inferências e derivações sobre como esse conceito se aplicaria a outros mundos que não apenas o desenvolvimento dos países.
[2] Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future (1987). Disponível aqui.
Esse processo de adaptação do termo “sustentabilidade” se fez benéfico, pois contribuiu para ampliar o alcance dessa e de outras expressões relacionadas, difundindo o que antes estava limitado às discussões realizadas em fóruns de especialistas. Isso também aumentou a atenção da sociedade para a pauta ambiental que, impulsionada pelo papel desempenhado pelos canais de comunicação passou a ter contato com essa nova realidade no telejornal diário, nos veículos que acompanham as negociações internacionais sobre mudança do clima, nas rodas de conversa na happy hour e nas macarronadas aos domingos.
Como fator de resistência a esse processo, caso não haja um mínimo alinhamento entre os falantes e os ouvintes em relação ao significado desses termos, corre-se o risco de um esvaziamento de sentido do diálogo, prejudicando o avanço da pauta na sociedade. No extremo, tais distorções podem tornar a compreensão desses termos superficial demais em relação à importância do tema, pelo fato de haver uma real lacuna de entendimento exigindo dos ouvintes a suposição do significado do que está sendo dito.
Considerando a comunicação como ferramenta educadora, é essencial nos tempos modernos o cuidado com a palavra ao criar e manter diálogos, principalmente sobre a temática ambiental. Se conseguirmos garantir uma preocupação com o alinhamento conceitual entre a maior parte dos atores envolvidos, aumentaremos a capacidade da própria palavra de ser sustentável ou, no sentido amplo do termo, de ser mantida enquanto cumpre sua função no diálogo.
*Gestor do Programa Brasileiro GHG Protocol