Das origens misteriosas ao internetês, a linguagem volta à pauta turbinada pela era digital
A despeito de vários séculos de esforço científico sobre o assunto, tudo o que diz respeito às origens da capacidade humana para a linguagem e da procedência das línguas ainda está envolto em um manto de mistério. “O máximo que conseguimos fazer é especular sobre como a linguagem apareceu, mas esse é um tema tão interessante que há conferências científicas regulares em torno disso”, reconhece, até com uma pitada de autoironia, Martin Haspelmath, linguista alemão que trabalha para Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana.
Na verdade, esse tem sido um terreno tão escorregadio que um dos primeiros atos oficiais da Sociedade de Linguística de Paris – fundada em 1863 – foi justamente proibir a publicação de comunicados sobre a origem da língua. Esse desconforto não chega a ser de se estranhar. Qualquer esforço para tentar explicar a linguagem implica não apenas retroceder milhares de anos no tempo como, ainda por cima, trabalhar com evidências indiretas. Afinal, até o surgimento das primeiras formas de escrita cerca de 7.300 anos atrás, a linguagem não deixou nenhum rastro arqueológico.
Mesmo trabalhando nesse vácuo, de acordo com Haspelmath, o consenso é que a humanidade já fala há, pelo menos, 50 mil anos. Essa, contudo, é a idade das evidências mais antigas disponíveis; a prática em si vem de antes. Quanto antes? Ninguém sabe. “Pode ser que já tivéssemos [linguagem] há vários milhões de anos”, considera.
Por controverso que o assunto ainda seja, há um novo ímpeto nos debates alimentado por descobertas na área de genética e da paleontologia. Evidências surgidas nas últimas décadas apontam até para a possibilidade de a linguagem preceder o ser humano moderno, como mostra este vídeo. Reconstruções dos crânios de neandertais [1] realizadas ainda na década de 1980, por exemplo, demoliram a noção de que a anatomia de nosso parente mais próximo na escala evolutiva simplesmente não permitia a fala.
[1] Espécie humana que habitou a Europa e partes da Ásia entre 350 mil até 29 mil anos atrás. Conviveu com o Homo sapiens
“O estudo [da origem da linguagem] esteve em baixa durante muitos anos porque tinha ficado muito especulativo. Agora, está de volta à pauta”, ressalta o professor adjunto do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Gabriel de Avila Othero. Ele destaca que até “o maior linguista vivo de hoje”, Noam Chomsky, publicou um livro no ano passado [2] propondo que a linguagem pode ser só mais uma entre outras tantas mutações genéticas que nos definem.
[2] Why Only Us: Language and evolution, ainda sem tradução para o português
Nessa visão, um primeiro indivíduo teria adquirido, repentinamente, capacidade de fazer operações simbólicas complexas criando – numa só tacada –, a racionalidade e a linguagem humanas. Para Chomsky, ambas são facetas de uma mesma habilidade inata. “Nessa perspectiva, a cultura seria um subproduto da linguagem”, explica o professor da UFRGS, acrescentando que essa visão se alinha entre as posições monogenéticas [3].
[3] Os linguistas monogenistas acreditam que a linguagem surgiu uma única vez na história da humanidade. Todas as linguagens existentes hoje seriam, então, derivadas de uma só língua ancestral
É quase desnecessário dizer que nem todos os linguistas seguem por essa trilha. Para os poligenistas [4], a criação da linguagem foi uma resposta a um problema relativamente prático. “Ao contrário de outros primatas, [nós, humanos] éramos capazes de manipular objetos complexos e isso criou a necessidade de uma linguagem. Conforme a cultura [material] se sofisticava, a linguagem corria atrás para acompanhar”, completa Othero.
[4] Os poligenistas creem que a linguagem foi um processo que se desenvolveu ao longo do tempo e, portanto, poderia ter aparecido mais de uma vez
Vistos de fora, esses dois polos parecem irreconciliáveis. Na verdade, as distinções entre um e outro podem ser bastante rarefeitas, dependendo do prisma pelo qual se olhe. É o que ressalta Haspelmath. “Se as adaptações genéticas necessárias à linguagem forem consideradas seu marco inicial, então elas devem vir de um único lugar e teremos monogênese. Agora, se pensarmos nas convenções de comunicação, (…) parece muito possível que as diferentes línguas faladas tenham emergido de forma independente entre si”, avalia o pesquisador, em cuja opinião o impulso primordial para a fala estaria ligado a um traço profundamente humano: a empatia.
“Minha teoria preferida diz que falamos por estarmos profundamente interessados em outros humanos e termos a capacidade de pensar a partir de sua perspectiva. Essa é uma habilidade [cognitiva] que a maioria dos outros animais não possui”, informa Haspelmath. “De qualquer maneira, não temos evidências reais [para fechar questão].”
Novas evidências
Não quer dizer que não tenha gente tentando mudar isso. É o caso do professor da Escola de Psicologia da Universidade de Auckland, Quentin Atkinson, que vem adaptando ferramentas inicialmente desenvolvidas para o estudo da evolução de espécies em biologia para o ramo da linguística. “Essa é uma ideia que já está por aí desde [Charles] Darwin. Em A Origem das Espécies, ele já traçava paralelos entre biologia e linguística”, descreve.
Atkinson chamou atenção neste artigo da Science ao demonstrar um equivalente linguístico para o efeito fundador [5]. Partindo de inventários dos fonemas [6] utilizados por uma amostra de 504 línguas pinçadas mundo afora, ele comprovou que havia uma clara tendência para que a diversidade fonética caísse na medida em que se aumentava a distância em relação à África – enquanto alguns povos africanos usam mais de 100 sons, os havaianos têm de se virar com apenas 13. Essa descoberta parece consistente com a hipótese de que as primeiras línguas humanas – ou a primeira língua – se desenvolveram em algum ponto na costa ocidental da África Subsaariana para, só então, acompanharem as migrações humanas.
[5] Perda da diversidade genética que ocorre quando um grupo de qualquer espécie se separa de sua população originária para colonizar uma nova área
[6] Os fonemas são os blocos de construção sonoros a partir dos quais cada língua constrói suas palavras
Pouco tempo depois, ele mais um grupo de oito pesquisadores, em outro artigo, atacou o que vem sendo considerado “o mais recalcitrante problema da linguística histórica”: a origem do Indo-Europeu [7]. Desde que o filologista britânico William Jones postulou, em 1786, que o grego, o latim e o sânscrito – então as línguas mais antigas conhecidas – tinham tantas semelhanças que só podiam derivar de uma fonte comum, linguistas de todo o mundo vêm se debruçando para tentar reconstruir essa história.
[7] Tronco do qual derivaram todas as línguas que se desenvolveram desde a Islândia até o Sri Lanka. A partir do século XV, com a expansão colonial europeia, espalharam-se pelas Américas, África e Oceania
Trata-se de um esforço que o próprio Atkinson reconhece ser animado por uma certa dose de “sentimento eurocêntrico”. “A maior parte dos estudos em linguística concentra-se na Europa, e não é de estranhar que esses pesquisadores estejam particularmente interessados nas línguas que eles mesmo falam”, diz. “Noves fora”, o Indo-Europeu é realmente importante, tendo sido a matriz para as línguas-mães de aproximadamente 3 bilhões de seres humanos hoje em dia. Mais que o dobro da segunda colocada – a família Sino-Tibetana com 1,3 bilhão de falantes.
Até hoje, uma das teorias mais bem-aceitas é que o Indo-Europeu teria surgido ao norte do Mar Negro, nos territórios que hoje pertencem à Ucrânia e à Rússia. E que teria começado a se expandir entre 6.000 e 4.000 anos atrás.
Para tentar chegar à verdade, a equipe liderada por Atkinson emprestou uma metodologia utilizada por epidemiologistas para reverter a rota de doenças infecciosas até sua fonte. “Eles pegam amostras em diversas partes do mundo e sequenciam seu DNA para determinar como [as cepas] são aparentadas entre si. Assim, você constrói uma ‘árvore familiar’ e segue seus galhos até o ponto de origem”, explica.
Troque a informação genética por extensas listas de cognatos [8] reunidos a partir de uma centena de idiomas de origem indo-europeia. Foi assim que surgiu a forte evidência de que as línguas faladas pela maior parte da humanidade – inclusive o nosso português – têm raízes na Anatólia, uma região da Ásia que, hoje, pertence à Turquia. A expansão do Indo-Europeu também teria começado bem antes que o imaginado, por volta de 9.500 anos atrás, quando a agricultura organizada começou a dar seus primeiros passos.
[8] Palavras cuja similaridade em diversas línguas de uma mesma família permite identificar uma origem comum
Embora a aplicação de técnicas de modelamento matemático ainda desperte suspeitas entre linguistas, Atkinson está se preparando para enfrentar controvérsias ainda mais robustas em uma tentativa de descobrir como as maiores famílias linguísticas do planeta estão relacionadas entre si. “Os linguistas têm tido considerável sucesso em identificar essas grandes famílias. Temos dúzias e dúzias delas, mas não há nenhum consenso em como elas se relacionam”, diz.
Se ele tiver sucesso nessa empreitada, a ideia do monogeneticismo sairá um quê fortalecida.
Tecnobabel
Não é só quando olhamos em direção ao passado que as línguas nos desafiam. No presente, elas também têm se mostrado um bocado movediças, especialmente conforme avançamos fundo em uma era em que a comunicação parece turbinada a combustível de alta octanagem, graças à internet.
Nem parece, mas a internet comercial já passou dos 20 anos de idade – o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) foi oficializado em maio de 1995. A partir daí, tem abastecido o português com uma rápida sucessão de novidades mais ou menos descartáveis. A ponto de os mais gaiatos dizerem que adolescentes que viviam on-line haviam desenvolvido uma língua própria: o internetês [9]. Não que adolescentes que inventam uma língua para si mesmos seja bem uma novidade. “Isso é algo que sempre aconteceu, mas a internet claramente turbinou o processo”, avalia Natalia Radtke, que está completando sua pesquisa de mestrado a respeito do preconceito linguístico nas redes sociais pela Universidade Católica de Pelotas.
[9] Um tipo de jargão específico dos usuários da internet composto por muitas abreviações, siglas e desvios em relação à norma formal da língua
Nos primeiros anos, chegou até a se especular se isso não poderia ser nocivo a longo prazo. “Havia o receio de que a internet acabaria com a língua; que os alunos iriam desaprender a norma culta, que as abreviações de palavras se tornariam a regra etc.”, relembra Othero, da UFRGS. No final, as previsões mais alarmistas não se concretizaram. “Os adolescentes acabam se tornando ‘bilíngues’. Eles têm a norma culta na escola e usam essa linguagem mais específica na internet.”
O professor acrescenta que até vê vantagens nesse novo estado de coisas. Se, antes da internet, o contato dos adolescentes com a leitura e a escrita se restringia à escola, agora a relação é de imersão. “Praticamente tudo o que eles fazem na internet é ler e escrever”, prossegue.
Othero não está sozinho. Em um levantamento com 2.462 professores americanos, o Pew Research Center constatou que 78% dos pesquisados concordavam que as tecnologias digitais “encorajavam a criatividade e a expressão pessoal dos estudantes”, e que apenas 18% deles achavam que tinha ficado mais difícil melhorar as habilidades de escrita dos alunos. O que não quer dizer que o impacto tenha sido zero. Muitos relatavam que a linha entre as linguagens formal e informal estava ficando mais fluida.
Segundo Radtke, uma explicação possível estaria no fato de que boa parte da comunicação no mundo virtual procura emular a experiência de uma conversa cara a cara. “Essa é uma característica central que acaba aproximando as formas como escrevemos e falamos. É um texto que tem características do oral”, resume. Ele aponta que pode vir daí a tendência a uma escrita ligeira menos rigorosa em termos de articulação e mais irreverente às regras. Especialmente por causa de outro fenômeno que a rede não criou, mas que vem catalisando. “Um princípio importante na evolução das línguas é o de economia linguística. As coisas tendem a ser simplificadas: ‘vossa mercê’ passou a ser ‘vosmicê’, virou ‘você’ e, agora, é só ‘vc’. Esse é um processo muito intenso na internet”, prossegue.
Resistência
Evidentemente a rede de computadores não é o único fator em jogo. Segundo a professora do Instituto de Letras da UFRGS Elisa Battisti, se fosse tão simples, todos os falares regionais do Brasil teriam sido suplantados pela educação formal há um bom tempo. “Não é um processo de ‘copiar e colar’. A mídia e a internet podem expor as pessoas a outros falares, elas só vão incorporá-los se interagirem com mais gente que fala assim”, resume. Ou seja, a internet pode até acrescentar cartas ao baralho, mas estas só serão jogadas se os parceiros de carteado toparem.
Battisti sabe bem o quanto uma língua pode ser resiliente. Há vários anos ela vem estudando a persistência de falares regionais das colônias italianas do Rio Grande do Sul. Embora algum grau de mudança seja inevitável, o ritmo do processo vai depender do quanto os membros de cada comunidade se sentem à vontade em relação às próprias origens. “A língua reflete as mudanças sociais e estas podem ser aceleradas em decorrência da percepção de prestígio”, explica. A fala dos grupos privilegiados vai sempre tentar impor-se. Se vai conseguir ou não, dependerá do quanto cada comunidade linguística for sustentável. “Se elas tiverem meios de sobreviverem física e moralmente, sua linguagem também vai sobreviver”, diz.
Dá para ver que a fortaleza da linguagem não será tomada de assalto. Mesmo assim, as mudanças vão se infiltrando pelas frestas que encontram. Algo já perceptível na literatura. “Tem havido um esforço dos escritores de dar uma dimensão mais cibernética à literatura. Textos com uma escrita mais ligeira que procuram participar desse fluxo de informação”, opina Antonio Barros de Brito Jr., doutor em Teoria Literária pela Universidade de Campinas (Unicamp). Ele ressalta que a rede abriu espaço para algo que vem sendo chamado de literatura pós-autônoma, na qual escritores conseguem estabelecer sua presença mesmo sem o respaldo do mercado editorial e da crítica especializada.
Informações comprimidas
Também o jornalismo vem mudando. A novidade mais visível no momento origina-se do crescimento do chamado jornalismo de dados [10], que tende a trocar textos extensos e verbosos por números e gráficos. “O jornalismo de dados é muito bom em comprimir informações numéricas e quantitativas”, explica o fundador da agência jornalística Volt Data Lab, Sérgio Spagnuolo, indicando que muitos veículos apostam na nova tendência – a equipe de dados do New York Times, por exemplo, conta com mais de 50 profissionais.
[10] Vertente do jornalismo que se utiliza da facilidade que os computadores trouxeram para analisar grandes volumes de dados numéricos e descobrir ou comprovar novas histórias
Ainda assim a percepção é de convivência. “O dia em que as redações só tiverem jornalistas de dados acho que eu ficaria bem triste. Eu acredito num jornalismo de dados sério dividindo espaço com o jornalismo de prosa mais convencional. Ambos são necessários”, afirma Spagnuolo. Nisso ele é complementado pela coordenadora da Escola de Dados, Natália Mazotte. “É muito difícil explicar uma história em profundidade apenas com dados. Não dá para simplesmente prescindir do uso de textos mais elaborados, porque precisamos dar contexto”, completa.
Uma coisa é certa: a língua não vai parar de mudar. Natalia Radtke descarta o temor de que o que estamos vendo acontecer seja uma transformação para pior. “As pessoas têm muito medo de que as mudanças levem a um tipo de ‘emburrecimento’, mas o que eu vejo é um processo natural. Claro que vamos precisar de uma linguagem um pouco mais formal para alguns momentos, mas a norma culta que temos hoje é muito pouco acessível. Se você pegar a Constituição Brasileira, que é um documento que deveria ser acessível a todos, vai ver o quanto a gramática normativa é um instrumento de exclusão”, conclui.
A língua imita a arte
Tradicionalmente, as línguas servem como suporte para diversas manifestações artísticas. Nos últimos anos, contudo, essa relação vem sendo subvertida e a língua se tornou uma arte em si mesma.
Linguista por formação, David Peterson é o primeiro profissional a trabalhar em tempo integral inventando línguas. Em 2011, ele ganhou um concurso e foi contratado para dar vida ao dothraki e ao valiarino, idiomas falados pelos personagens da aclamada série Guerra dos Tronos. Desde então, criações suas já apareceram em seis outras produções para TV e cinema.
Línguas construídas (conlangs) não são exatamente uma novidade. O esperanto, por exemplo, data de 1887. Mas, de uns anos para cá, há uma efervescência a ponto de a atividade ter atraído uma animada comunidade global que conta até com uma associação internacional.
Peterson não nega que o empreendimento carrega uma dose diletantismo. “O estudo de conlangs permite conhecer como seu criador concebe a linguagem, mas isso não diz muito sobre a estrutura das línguas naturais”, reconhece. “A criação de línguas é uma forma de arte. Ela está para a linguística mais ou menos da mesma forma que a literatura está para a psicologia”, completa.