Cada língua indígena extinta representa a perda de riqueza biológica e cultural, além de afastar o homem da natureza
A língua dos índios Aikanã, da Bacia do Rio Guaporé, em Rondônia, é bastante complexa. As palavras possuem regras que qualificam o objeto para além do singular ou plural, do masculino ou feminino. Elas contêm indicadores que caracterizam o atributo de ser jovem ou velho; grande ou pequeno, bonito ou feio. Assim, como no vocabulário de outros povos indígenas, não existe um termo que, por exemplo, transmite unicamente o significado geral de “café” – há uma palavra específica para o café na forma bebida, outra para café em pó, e assim por diante.
Entender essas peculiaridades pode parecer uma preocupação fora de propósito para quem vive na cidade grande com planos de aprender inglês, francês, alemão e demais idiomas que representam o poder econômico dominante e ajudam a conseguir um bom emprego ou a avançar na carreira. Mas, para Hein van der Voort, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA), destrinchar o quebra-cabeça de uma língua falada por apenas 200 pessoas, como é o caso dos Aikanã, faz todo sentido: “Ela expressa a identidade e o conhecimento de povos que têm muito a nos ensinar na relação com a natureza”.
Soma-se a isso o valor cultural. “É como uma obra de arte que demorou centenas ou milhares de anos para ser construída e corre o risco de desaparecer”, compara Voort, linguista que hoje documenta com gravações de áudio e vídeo falas, músicas e outras expressões daquela etnia indígena, com o objetivo de escrever uma gramática para a língua. Uma floresta destruída pode até se recuperar após determinado tempo; mas no caso de línguas praticamente extintas a revitalização é muito difícil: “Há necessidade de que antes sejam completamente descritas”.
Etnias, como a Terena, em Mato Grosso do Sul, têm dicionário e cartilha na língua materna, mas ainda é pouco. Para Voort, o Brasil segue o caminho de países onde grupos lamentam a perda de suas raízes étnicas, devido ao desaparecimento da língua, o “que é bastante ruim para a sociedade como um todo, que se torna mais empobrecida”.
Na época do Descobrimento, existiam entre 1 mil e 1,5 mil línguas indígenas. Hoje restam 181, de acordo com levantamento do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Já a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) [1] lista 190 línguas no Brasil, todas com algum grau de ameaça. Quinze delas têm menos de cinco falantes; estão em “perigo crítico”, faladas apenas por idosos com menor chance ser passadas adiante para as próximas gerações. “Salvar esse patrimônio, em processo completo de erosão, deveria ser uma política de Estado e não de um órgão do governo”, reconhece José Carlos Levinho, diretor do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
[1] Das cerca de 6 mil línguas existentes no mundo, quase 2,5 mil estão em perigo, e entre estas 199 têm menos de 10 falantes, segundo a Unesco. A cada duas semanas pelo menos uma língua desaparece no planeta
A estratégia tem sido documentar línguas [2] e culturas para que o acervo sirva a trabalhos de revitalização – ou pelo menos seja conservado como amostra da diversidade brasileira às próximas gerações. Registros audiovisuais são essenciais para captar a fala e entender como o som é articulado pela boca. “Os resultados, no entanto, são ainda inconsistentes, porque é preciso fazer estudos linguísticos de longo prazo, e agora queremos mostrar que isso é possível”, diz Levinho.
[2] Nos últimos dois anos, o Museu do Índio concentrou esforços em 13 línguas para a construção de cinco gramáticas
O objetivo é a salvaguarda do patrimônio linguístico da região de fronteira, por meio de dez projetos direcionados a povos que tiveram contato mais recente com a nossa sociedade. A iniciativa, apresentada à Unesco, pretende evitar que a vulnerabilidade se agrave. “Hoje, um terço das etnias do Brasil possui menos de 500 habitantes e, dessas, muitas têm menos de 10 pessoas que falam a língua materna”, ressalta o diretor. Para ele, nos dias atuais, “países que têm maior diversidade linguística e sabem lidar com minorias são mais capazes de atrair investimentos e prosperar”.
A riqueza linguística se traduz na diversidade do conhecimento por ela expressada, transmitida de pai para filho, com influência na sociedade em geral. “Na prática já somos beneficiados por esse acervo quando consumimos produtos da biodiversidade, mas falta reconhecê-lo”, completa Levinho. Foi pela fala dos índios que técnicas de cultivo orgânico se mantiveram vivas até chegar ao atual nível de expansão no mercado. E não seria um exagero dizer que o movimento de retorno a processos naturais – como verificado atualmente na indústria química, por exemplo – depende do conhecimento sob domínio de quem fala uma língua diferente da que é reconhecida como padrão.
“A atual distribuição de línguas está relacionada com eventos ocorridos há 8 mil anos – e isso envolve principalmente o modo de produzir e usar a floresta”, afirma o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). Na Amazônia, reforça o pesquisador, a alta diversidade linguística é comparável à biológica. E isso se deve à complexidade do manejo dos recursos naturais pelos índios primitivos. Antigos sistemas agroecológicos, com plantações de ciclo curto e extrativismo, na linha da permacultura [3] hoje em voga, eram estáveis e fixavam as populações, sem a necessidade de ocupar mais áreas com cultivos. “Assim, devido ao modelo produtivo, uma grande variedade de línguas se concentrou em regiões contíguas”, explica Neves, ao lembrar que a propagação ocorreu somente depois, a partir da expansão do território agrícola.
[3] A palavra vem do inglês permanent agriculture. É um sistema de design para a criação de ambientes humanos sustentáveis e produtivos em equilíbrio e harmonia com a natureza
A conclusão resulta de escavações arqueológicas que recuperaram restos de plantas manejadas por antigas populações. O pesquisador argumenta: “Não à toa o Oeste da Amazônia, região campeã em diversidade biológica, tem também a maior variedade de línguas indígenas”. Para ele, o drama humano de hoje está fortemente associado à perda dos sistemas de conhecimento sobre a floresta expressos nas línguas indígenas. “Estratégias econômicas baseadas na exploração de um único recurso não são sustentáveis.”
Influência africana
Além da influência indígena, palavras hoje comuns no português falado no Brasil têm forte marca de línguas africanas – em especial as de origem bantu, vindas com os primeiros escravos trazidos pelos portugueses da região do Congo e de Angola. Expressões saíram dos guetos e se popularizaram por meio de uma figura-chave na sociedade da época: a mãe-preta, escrava que zelava pelas crianças das famílias tradicionais e assim transmitiam a cultura e o vocabulário, aos poucos incorporado à linguagem coloquial. “Grande parte da influência africana no que falamos hoje vem delas”, explica Renato Araújo, pesquisador do Museu Afro Brasil.
Além da música e uso de objetos da cultura material, a herança linguística é marcante na alimentação – como as palavras “quitanda” e “quitutes” e outras presentes no cardápio afro: “acarajé” e “mugunzá”[4]. São expressões que embutem um modo particular de integrar-se ao mundo e que, inerentes ao vocabulário popular, têm status negativo na sociedade. São alvos de preconceito linguístico. A palavra portuguesa “menino” é entendida de maneira diferente de “moleque”, que tem origem africana. “A melhor forma de reconhecimento para uma língua é valorizar a sua origem e deixá-la livre, porque são vivas e se modificam constantemente.”
[4] Mingau feito de milho branco, conhecido em algumas regiões como canjica, hoje uma iguaria tipicamente nordestina
O poder da palavra na biodiversidade
Nem ovo de codorna,/ catuaba ou tiborna [5],/ não tem jeito não;/ amigo véio/ prá você tem jeito não! Na canção Capim Novo, Luiz Gonzaga brincou com o efeito afrodisíaco de plantas, mas muitos brasileiros podem não ter entendido a mensagem. A catuaba, inspiradora de uma famosa bebida alcoólica “fortificante”, pode ser tanto a Anemopaegma arvensis, da família do ipê, como a Trichilia catigua, da família do mogno. Sim, plantas diferentes podem ter o mesmo nome popular e o uso da opção errada significa riscos de resultados indesejados – ou, simplesmente, nenhum resultado.
[5] Também conhecida como janaúba, janaguba, sucuuba, cola-nota, cancerosa, leiterinha, raivosa, pau-santo, jasmim-manga, pau-de-leite
Há também nomes diferentes para a mesma planta, como a Manihot esculenta, chamada de aipim (Rio de Janeiro, Bahia), mandioca (São Paulo e Sul) e macaxeira (Norte e Nordeste). A planta bolsa-de-pastor no Brasil aplica-se a Zeyheria montana, da família do ipê, e, na Europa, a Capsella bursa-pastoris, da família do repolho, por conta do formato dos frutos que parecem com uma “sacolinha” – plantas totalmente diferentes, com aplicações distintas.
“É preciso dar nome aos ‘bois’; saber sobre o que exatamente está se falando”, ressalta a bióloga Daniela Zappi, diretora do departamento de pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde funciona o maior herbário do País, com mais de 600 mil amostras. Existe uma disciplina da Biologia, a Taxonomia (do grego, “normas de organização”), que se dedica exatamente a isso: em poucas palavras, dar nomes científicos e identificar e classificar os seres vivos em grupos com base em características comuns.
Lidar com a nomenclatura, identificação e localização das espécies é essencial à pesquisa e ao uso sustentável da biodiversidade. A atividade confere segurança contra os riscos de se comprar gato por lebre, de utilizar uma coisa diferente da que se procura. “Mas os taxonomistas se engajam ao desafio mais por orgulho do que por reconhecimento”, lamenta Zappi. O ofício, indispensável à manutenção das coleções científicas com o registro do patrimônio da biodiversidade brasileira, está praticamente em extinção. Uma das razões é que no mundo acadêmico é grande a cobrança por resultados rápidos que gerem publicações científicas e pontos na carreira – o que não condiz com o minucioso e demorado trabalho dos taxonomistas, que, desestimulados, acabam migrando de atividade.
Mesmo fora de moda, o trabalho com nomenclatura é importante para o País aumentar o conhecimento sobre a sua biodiversidade [6]. Segundo Zappi, o Brasil tem 42 mil espécies da flora registradas, mas o número real é muito maior, quando se estima que somente na Amazônia devem existir 50 novas plantas para cada uma que é identificada. E o desafio não é menor para a fauna. “Há muitas espécies desconhecidas e poucos especialistas para identificá-las”, afirma Teresa Cristina Ávila-Pires, bióloga do Museu Paraense Emílio Goeldi.
[6] Pela Convenção da Diversidade Biológica, os países signatários deverão ter toda a flora descrita até 2020. O trabalho envolve 700 botânicos do Brasil e do mundo
As pessoas em geral não entendem a importância, completa a pesquisadora, mas a nomenclatura dos seres vivos permite, por exemplo, ampliar a busca de substâncias de interesse econômico ou medicinal entre espécies de um grupo em que o efeito já foi identificado. No campo, o trabalho se desenvolve com o suporte de homens que conhecem os segredos da floresta: os mateiros. Eles ajudam os cientistas a acessar e coletar espécies – algumas novas, que nunca foram descritas e precisarão de identificação.
A arte de batizar seres vivos com nome científico por vezes rende homenagem ao mateiro, como o menino Tandai, do município de Benjamin Constant (AM), que ajudou Ávila-Pires a descrever um novo lagarto: o Norops tandai. Com o dinheiro do serviço, o garoto comprou roupas e até hoje não sabe que emprestou o nome ao réptil. Histórias assim fazem jus ao “nome da rosa”, expressão usada na Idade Média para denotar o infinito poder das palavras.