“I care”. “Eu me importo”. Este era o slogan que acompanhava o logotipo da Conferência do Clima de Varsóvia (COP 19), realizada em novembro de 2013 na capital da Polônia. Ao lado do símbolo do encontro, uma dezena de logotipos menores dos “parceiros oficiais” da COP 19 adornava painéis e cartazes espalhados pelo Estádio Nacional, espaço que foi adaptado para a realização do evento.
A priori, nada de errado. É de se imaginar que a organização de um evento dessa magnitude envolva custos que não são pequenos. Assim, um caminho natural para viabilizar a infraestrutura para receber milhares de negociadores, jornalistas e observadores por duas semanas é através de parcerias oficiais com a iniciativa privada. Foi assim aqui no Brasil em 2012, quando organizamos a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20.
A questão no caso de Varsóvia não é o fato de os organizadores poloneses terem buscado parceiros – mas sim o tipo de parceiro que foi buscado. Em se tratando de uma conferência dedicada ao debate de ações globais contra a mudança do clima, a presença de certos logotipos parecia inconsistente com o ambiente e o espírito das discussões.
Um exemplo é a Alstom, gigante francesa na área de infraestrutura de energia e transportes. Na Polônia, país com grande dependência de usinas termelétricas a carvão, a Alstom é a principal fornecedora de equipamentos para 95% do parque energético carvoeiro. Sem falar na imagem pública da empresa pelo mundo, célebre por acusações de práticas ilícitas em diversos países, inclusive no Brasil. Outro exemplo é a ArcelorMittal, a maior empresa de mineração e siderurgia do mundo, com emissões individuais similares às da República Tcheca. A companhia é opositora ativa do sistema de comércio de emissões da União Europeia nos tribunais do bloco continental.
No entanto, as presença mais surpreendentes na relação de parceiros oficiais da COP 19 eram ilustres desconhecidas para os estrangeiros em Varsóvia, mas atores bastante íntimos para os poloneses. Primeiro, a Polska Grupa Energetyczna (PGE), empresa estatal responsável pela maior parte da geração de energia elétrica no país. A PGE opera duas minas de carvão na Polônia, que abastecem mais de 40 usinas termelétricas espalhadas pelo país – dentre elas, a usina de Belchatow, considerada a maior fonte de emissões de dióxido de carbono de toda a Europa. E, segundo, a Grupa Lotos, companhia polonesa de petróleo e gás, produtora de gasolina, diesel, diesel de aviação e betume – fontes de energia que estão longe de ser renováveis ou limpas.
A presença destas empresas na relação de parceiros de uma conferência do clima gerou bastante críticas ao governo polonês na época. No entanto, a participação de empresas associadas à indústria dos combustíveis fósseis em negociações sobre mudança do clima não é algo novo nem pontual – vide as críticas que a França recebeu ao permitir que gigantes energéticas europeias como a Électricité de France (EDF), a Engie e a Suez Environnement, junto com o banco BNP Paribas (que, juntas, operam e financiam mais de 46 usinas de carvão em todo o mundo), participassem da decisiva Conferência do Clima de Paris (COP 21), no ano passado, como parceiras oficiais.
Historicamente, a indústria da energia fóssil se faz presente nas negociações sobre clima. Nos espaços de conferência, essas empresas montam estandes com materiais publicitários e realizam eventos paralelos. Nos corredores e nas salas de reunião, elas são lobistas eficientes que acompanham atentamente o andamento das negociações, aproveitando seu acesso privilegiado aos negociadores oficiais – em alguns casos, representantes dessas empresas chegam a fazer parte das delegações oficiais.
Por muito tempo, essas empresas se articularam para reduzir a ambição dos compromissos internacionais sobre redução de emissões, algo que elas entendiam como contraproducente para o seu negócio. Fora das COPs, gigantes do setor como a ExxonMobil atuaram contra o desenvolvimento da ciência sobre mudança do clima, financiando pesquisas distorcidas que desacreditavam o impacto das emissões associadas ao uso de combustíveis fósseis sobre o clima terrestre.
A própria ExxonMobil tinha estudos científicos datados da década de 1970 que apontavam para a contribuição do negócio da empresa para o problema da mudança do clima. Além disso, mesmo negando peremptoriamente a responsabilidade das emissões antropogênicas decorrentes dos combustíveis fósseis sobre o clima, a gigante petroleira promoveu reformas em instalações de exploração marítima prevendo um aumento no nível do mar nas próximas décadas. Por causa disso, a empresa está sendo investigada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos por omissão informação sobre risco aos seus investidores.
Uma analogia útil para entender o impacto da influência da indústria fóssil sobre o esforço global contra a mudança do clima é com a indústria tabagista e sua luta para evitar restrições à venda de cigarros a partir dos anos 1970, quando a ciência já apontava para uma forte correlação entre o consumo deste produto e a ocorrência de câncer em fumantes.
Desde a década de 1950, as empresas do tabaco atuaram de maneira articulada para desacreditar pesquisas científicas que associavam o consumo de cigarro com o câncer e para impedir que o poder público tomasse qualquer medida de restrição à venda de seus produtos. Em 1969, esta estratégia foi sistematizada em um memorando secreto do Tobacco Institute, um grupo de lobby norte-americano que reunia as principais empresas do setor, no qual se destacava o uso de polemização falsa para confundir a opinião pública.
A similaridade dos discursos das empresas de tabaco e das grandes petroleiras não é acidental. Como Naomi Oreskes e Erik Conway destacam em seu livro Merchants of Doubt (“Mercadores da Dúvida”), muitos profissionais que atuaram nas campanhas de desacreditação da ciência sobre tabagismo acabaram se envolvendo a partir dos anos 1990 com campanhas de negação à ciência sobre clima.
A questão aqui não é o engajamento do setor privado na agenda sobre clima. Muitas empresas estão realmente em busca de soluções que reduzam o impacto de seu negócio sobre a mudança do clima – tanto que o envolvimento das empresas (inclusive no processo de negociação) é um ponto importante no Acordo de Paris. No entanto, até o momento, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês) não definiu um processo para avaliar possíveis situações de conflito de interesse, de forma a salvaguardar a integridade das negociações internacionais sobre mudança do clima. Pior, a Convenção “lavou suas mãos” nos episódios de Varsóvia e Paris, ao apontar que a decisão sobre parceiros cabe aos governos anfitriões das Conferências, e não a ela mesma.
Assim, na prática, percebe-se que o envolvimento de grandes empresas associadas a fontes fósseis de energia configura conflito de interesse com as negociações internacionais sobre mudança do clima.
Novamente, a analogia com a indústria tabagista pode ser útil para solucionar este problema. Para limitar a interferência da indústria tabagista, a Convenção-Quadro sobre Controle do Tabaco, da Organização Mundial da Saúde (OMS), definiu em seu próprio texto provisões (artigo 5.3) que orientam suas Partes quanto à proteção do processo decisório nacional de saúde relacionada ao consumo de tabaco, limitando as interações entre legisladores e representantes da indústria.
Recentemente, em março de 2016, um grupo de nações que representa 70% da população global apresentou à UNFCCC uma proposta para debater uma política sobre conflito de interesse. Essa proposta foi debatida de maneira intensa em encontro da UNFCCC em maio passado, mas, até o momento, não se definiu uma solução para a questão.
O engajamento das empresas, inclusive aquelas que possuem negócios que dependem de fontes fósseis de energia, é crucial para que possamos efetivamente reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa e conter o aquecimento da temperatura média do planeta em menos de 2 graus Celsius com relação aos níveis pré-industriais. No entanto, essa abertura não pode dar margem para que organizações não engajadas na agenda climática aproveitem a oportunidade para influenciar negativamente as negociações internacionais sobre o tema.
Se essas empresas quiserem participar, elas devem ser incorporadas ao debate sobre mudança do clima. Mas, para isso, elas precisam efetivamente “se importar” com a questão climática, e não “jogar fumaça” nas conversas.
*Bruno Hisamoto é mestre em Relações Internacionais pela USP e pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-EAESP