O segundo debate presidencial norte-americano de 2016 não se resumiu apenas ao “tiroteio” retórico entre o republicano Donald Trump e a democrata Hillary Clinton por conta de escândalos recentes (e outros não tão recentes assim) dos dois lados da disputa. O formato town hall, no qual eleitores indecisos têm a oportunidade de questionar diretamente os candidatos com relação a temas de seu interesse, permitiu que outros pontos não tão debatidos na corrida presidencial pudessem ser esclarecidos pelos presidenciáveis. Um desses pontos é a política para energia nos Estados Unidos, um setor que vem passando por grandes transformações no país durante o governo democrata de Barack Obama.
“Quais medidas sua política energética tomará para atender a nossas demandas energéticas, ao mesmo tempo em que mantém-se ambientalmente amigável e minimize a perda de empregos nas usinas de energia fóssil?”, perguntou o hoje célebre Ken Bone (transformado instantaneamente nas redes sociais em meme por causa de seu look chamativo) ao candidato republicano.
A pergunta de Bone não foi desinteressada: ele trabalha em uma usina termelétrica a carvão no estado de Illinois e está preocupado com o futuro do setor e, consequentemente, do seu próprio emprego. O setor energético vem sofrendo restrições crescentes por parte do governo federal norte-americano para reduzir significativamente as emissões de gases de efeito estufa (GEE) associadas a sua operação. No ano passado, o presidente Obama assinou o Clean Power Plan, um polêmico plano que determina a redução das emissões de GEE geradas pela produção de energia em 32% até 2035 com relação aos níveis de 2005. O Congresso norte-americano, controlado atualmente pelo Partido Republicano, vem tentando derrubar essas medidas na Justiça, ainda sem sucesso. O plano de Obama é peça central para a contribuição nacionalmente determinada pretendida (iNDC, sigla em inglês) dos Estados Unidos apresentada para a negociação final do Acordo de Paris, no final de 2015.
Para o setor energético, as medidas tomadas pelo governo federal ameaçam o emprego não apenas dos funcionários das usinas termelétricas, mas também dos trabalhadores das minas de carvão, uma atividade econômica ainda importante em certos estados do Meio-Oeste norte-americano. Isso viria em um péssimo momento para o setor do carvão. Nos últimos quatro anos, os preços do combustível caíram quase 75% nos Estados Unidos, precipitando o fechamento de centenas de empresas de exploração e comércio de carvão no país. Em abril passado, a Peabody Energy, líder global no mercado, entregou à Justiça norte-americana um pedido de insolvência. Em cinco anos, o valor de mercado de Peabody desabou de US$ 20 bilhões para meros US$ 38 milhões.
Em grande parte, a crise do carvão nos Estados Unidos está relacionada com a disponibilidade de outras fontes competitivas de energia, como gás de xisto, e a maior participação de fontes renováveis de energia, como solar e eólica. Assim, voltando à pergunta de Bone, como o candidato Trump implementaria sua política energética de forma a atender às necessidades do país, proteger o meio ambiente e preservar vagas de trabalho no setor energético?
“Existe uma coisa chamada carvão limpo. O carvão durará mais de mil anos neste país. Agora, nós temos gás natural e muitas outras coisas por causa da tecnologia (…) [que] nós encontramos nos últimos sete anos, nós encontramos uma tremenda riqueza bem debaixo dos nossos pés”, disse Trump. A questão é que, a despeito da certeza do republicano em sua resposta, não existe “carvão limpo”.
Dentre os combustíveis fósseis, o carvão é um dos mais utilizados em todo o mundo – e, consequentemente, um dos que gera maior impacto em termos de emissões de GEE. A queima de carvão é responsável por 1/3 das emissões globais de GEE e representa quase 70% das emissões associadas à geração de energia elétrica.
A queima desse combustível também libera milhões de toneladas de dióxido de nitrogênio e de enxofre na atmosfera, substâncias que resultam na precipitação de chuva ácida, com efeitos negativos sobre o meio ambiente e a saúde humana. Pior: segundo estudo recente de organizações ambientalistas europeias, a poeira gerada por usinas de energia movidas a carvão na Europa tem provocado a morte de cerca de 23 mil pessoas por ano e consumido dezenas de milhões de euros em gastos de saúde.
O carvão é o suprassumo do conceito de externalidade ambiental. A despeito de ser a fonte energética mais suja e letal disponível na natureza, o carvão é a fonte energética mais barata. Em muitas regiões do mundo, principalmente na África e na Ásia, o carvão continua sendo a principal fonte de energia para a população mais pobre – que se beneficia da energia gerada por ele, mas que também sofre com os impactos da sua exploração e de seu uso sobre a saúde.
Nos últimos anos, o setor carvoeiro vem tentando desenvolver soluções para reduzir o impacto ambiental e de saúde pública de seu produto. É desse esforço que nasceu a ideia de “carvão limpo”. Inicialmente, a “limpeza” do carvão dizia respeito a processos químicos que eliminariam substâncias perigosas e metais pesados do carvão a ser queimado. Hoje, o conceito se restringe basicamente à tecnologia de captura e armazenamento de carbono, na qual os GEE emitidos na queima do carvão são capturados antes de escapar para a atmosfera e armazenados em reservatórios geológicos, como como campos de petróleo maduros (esgotados ou em fase final de exploração), aquíferos salinos (lençóis subterrâneos com água salobra não aproveitável) ou camas de carvão no solo.
Entretanto, a tecnologia para captura e armazenamento de carbono ainda é bastante prematura. Os projetos atualmente em execução na área são experimentais, envolvem bilhões de dólares em investimento e até o momento não apresentam resultados viáveis em escala maior. Projetos promissores, como o CarbFix (saiba mais), que transforma o carbono capturado em calcário, ainda sofrem com incertezas relacionadas à viabilidade econômica da tecnologia. Além disso, persistem dúvidas quanto aos impactos ambientais desse tipo de tecnologia, como contaminação de lençóis freáticos com água potável.
Assim, por mais que o setor venha se esforçando para tentar reduzir o impacto do carvão sobre o meio ambiente e sobre o clima global, este combustível continua sendo um dos principais “inimigos” na luta contra a mudança do clima. Reduzir o seu consumo é vital para que possamos conter a concentração de GEE na atmosfera em níveis que não nos levem a um aquecimento global acima dos dois graus Celsius, conforme definido no Acordo de Paris.
Isso me leva a um ponto central que deveria ter sido abordado por Trump em sua resposta, mas que ele apenas citou superficialmente: as fontes renováveis de energia. Como a edição 104 de Página22 destaca, as fontes renováveis de energia avançaram notavelmente nos últimos anos. Quase 90% de toda a nova produção de energia elétrica adicionada no mundo em 2015 são de fontes renováveis, contra 50% no ano anterior.
Na última década, o desenvolvimento tecnológico barateou os custos relacionados à instalação de painéis fotovoltaicos e de aerogeradores, o que incentivou investimentos importantes nessas fontes energéticas no período. Desde 2009, os custos operacionais das tecnologias fotovoltaicas caíram mais de 80%, segundo dados do WWF-França, com tendência de cair outros 60% até 2025.
O avanço foi ainda mais notável em países como a China, um “vilão” histórico do setor renovável por causa de sua dependência maciça de carvão. De acordo com Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, a cada hora sobe mais uma turbina eólica e 10 mil painéis solares são instalados no país. “O que a China instalou em solar só nos primeiros seis meses deste ano equivale ao total de toda a matriz de eletricidade brasileira. É uma escala impressionante!”, avalia Rittl (saiba mais).
De acordo com relatório recente do Greenpeace Brasil, [R]evolução Energética, publicado em agosto passado, o Brasil tem condições de chegar a 2050 com 100% de sua energia gerada por fontes renováveis. Graças ao potencial natural brasileiro na geração eólica e solar e à queda nos custos de instalação de equipamentos para geração de energia a partir dessas fontes, as renováveis ganharam competitividade no mercado energético brasileiro (saiba mais).
No entanto, ainda que os sinais sejam promissores, a velocidade da implementação de fontes renováveis de energia no mundo permanece aquém da necessidade de reduzir significativamente o uso de fontes fósseis para a geração de energia. Mais de 85% da energia mundial continua sendo gerada a partir do petróleo, do carvão e do gás natural, mesmo depois de uma década de aumento exponencial no uso de fontes renováveis. O Brasil, que sempre gabou-se de ter uma matriz energética predominantemente renovável, por causa da grande representação da geração hidrelétrica, vem progressivamente “sujando” sua matriz, ao aumentar o uso de usinas termelétricas abastecidas com gás natural e carvão mineral.
Um aspecto central para viabilizar uma transformação no setor energético global é o financiamento dessa transição. Num cenário em que os governos se encontram endividados e sem condições de financiar unilateralmente projetos de infraestrutura energética com base renovável, o setor privado é ator fundamental para viabilizá-los. Nos últimos anos, ambientalistas e militantes sociais vêm avançando em campanhas internacionais de desinvestimento, nas quais pressionam instituições financeiras, grandes investidores, empresas e até mesmo universidades para retirar seus investimentos aplicados na geração de energia a partir de fontes fósseis e aplicá-los em projetos que utilizam fontes renováveis de energia. De toda forma, mesmo com o sucesso relativo desse movimento, o volume de recursos redirecionados ainda é tímido quando comparado com a totalidade de recursos existentes no mercado financeiro internacional (saiba mais).
Outro aspecto central para essa transição é a influência que as grandes companhias de petróleo, gás e carvão continuam tendo sobre os governos em todo o mundo. Mesmo debilitadas com as quedas mundiais nos preços do petróleo e do carvão, que afetou o desempenho econômico de todas as gigantes do setor, essas empresas continuam contando com grande poder de ingerência sobre as lideranças políticas para favorecer seus interesses e dificultar a implementação de medidas que venham a ser contraproducentes ao seu negócio, como projetos de energia renovável. Esse poder se reflete também no cenário internacional, com a presença dessas empresas em espaços de negociação internacional sobre mudança do clima, inclusive dentro de delegações oficiais de governos (saiba mais).
Em suma, as fontes renováveis de energia avançam, mas em ritmo e escala que não fazem frente ao desafio que a mudança do clima impõe ao setor energético global. Ilusões como a do “carvão limpo” são perigosas neste momento de transição, pois ameaçam a implementação de projetos atuais e futuros de energia baseada em fontes renováveis modernas. Para conter o aquecimento do planeta e seus efeitos climáticos sobre a Terra, precisamos de mais fontes renováveis de energia, e não de mais fontes fósseis, como defendeu Trump no debate eleitoral – e isso vale também para nós, brasileiros, frequentemente envolvidos no debate sobre o pré-sal.
* Bruno Hisamoto é mestre em Relações Internacionais pela USP, pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-EAESP (GVces) e colaborador da Revista Página22.
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