Para muitos analistas políticos norte-americanos, o dia 08 de novembro de 2016 ficará na História do país da mesma forma que ficou o dia 02 de novembro de 1948.
Voltemos 68 anos no tempo para entender. Depois de 16 anos de hegemonia do Partido Democrata em Washington, consolidada pelas quatro vitórias seguidas de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) para a presidência dos Estados Unidos, o Partido Republicano tinha absolutamente tudo para ganhar a disputa eleitoral contra o então presidente Harry S. Truman, que assumiu o governo após a morte de Roosevelt em 1945.
A chapa republicana era um verdadeiro dream team eleitoral. O candidato à presidente, Thomas Dewey, era governador de Nova York; seu vice, Earl Warren (futuro presidente da Suprema Corte e da comissão que investigou o assassinato do presidente John F. Kennedy em 1963), era governador da Califórnia – assim, na mesma chapa, os republicanos reuniram os líderes políticos dos dois maiores estados em termos econômicos e populacionais do país.
Durante a campanha, Dewey sempre esteve na frente nas pesquisas de intenção de voto e na opinião da imprensa e de especialistas. Truman, o incumbente, tinha muito menos carisma e popularidade que seu adversário republicano e, desde o começo da campanha, enfrentou dificuldades práticas para viabilizar sua candidatura – Truman sofreu até mesmo para conseguir a vaga democrata na disputa presidencial, algo raro para alguém que já estava na cadeira presidencial.
No dia da votação, os democratas já se preparavam para uma derrota avassaladora para os republicanos na disputa pela Casa Branca. Na noite de 02 de novembro, Thomas Dewey foi dormir seguro de que, no dia seguinte, ele acordaria como presidente eleito dos Estados Unidos. Truman, por sua vez, já tinha preparado sua equipe para uma possível transição de poder nos meses seguintes para o seu adversário.
Mas, como as urnas não gostam de roteiros prontos, desde o começo da apuração, os votos contavam uma história bastante diferente daquela contada pelas análises antes da votação. Truman despontou na liderança já nas primeiras horas da apuração e nunca mais saiu dela. No final, o democrata foi reeleito com 303 votos no Colégio Eleitoral, número digno do termo em inglês landslide, que podemos traduzir grosseiramente por aqui como “de lavada”.
Ninguém foi capaz de prever esse resultado, nem mesmo Truman e sua equipe. O episódio em si poderia ter sido até banal se o destino não quisesse ser tão “travesso”: depois da votação, durante uma das paradas da viagem de trem que Truman fez entre o Missouri, seu estado de origem, até a capital Washington, um membro de sua equipe passou por uma banca de jornais e se atentou para a capa do Chicago Daily Tribune que trazia em destaque: DEWEY DEFEATS TRUMAN, “Dewey derrota Truman”. Uma edição do jornal foi levada ao presidente reeleito, que posou com toda a felicidade do mundo para fotógrafos na plataforma de uma estação de trem. As imagens de Truman segurando o jornal com manchete equivocada são antológicas.
Quase sete décadas depois, de certa maneira, a História se repetiu. Mais um candidato subestimado pela imprensa e pelos especialistas consegue uma virada sensacional na disputa pela Casa Branca. A despeito de praticamente todas as pesquisas e projeções realizadas antes da apuração, o republicano Donald J. Trump conseguiu derrotar a democrata Hillary Clinton e será o 45º presidente dos Estados Unidos a partir de janeiro de 2017, sucedendo a Barack Obama no cargo.
No calor deste momento, é difícil estimar o impacto da vitória de Trump para os Estados Unidos e para o mundo. Para isso, teremos bastante tempo até a posse do republicano para fazer projeções, pensar em possibilidades e se preparar para possíveis mudanças. De imediato, temos apenas a História para nos orientar. Novamente, a alusão ao democrata Truman pode ser interessante para pensar, ao menos, na dimensão do fenômeno Trump para a política internacional nos próximos anos.
Em 1948, Truman concorreu defendendo o legado de Roosevelt no pós-Segunda Guerra. Os desafios eram tremendos para os Estados Unidos naquela época: enfrentando um princípio de crise econômica, o país começava a experimentar momentos de tensão na sua relação com a ainda aliada União Soviética na divisão da Europa. Para Dewey e os republicanos, como nos anos 1930, os Estados Unidos precisavam voltar suas atenções para si próprio e se afastar das questões internacionais. Para Truman e os democratas, os Estados Unidos não podiam dar as costas para a arena internacional, sob o perigo de assistir ao avanço do comunismo na Europa Ocidental.
Fazendo um exercício de História alternativa, se Dewey tivesse ganhado em 1948, provavelmente o Plano Marshall, instrumento crucial para a reconstrução pós-guerra da Europa Ocidental, não tivesse a magnitude que ele teve sob Truman. Sem o Plano Marshall, países como França e Itália sofreriam por mais tempo com as tensões sociais do imediato pós-guerra que alimentaram o crescimento dos partidos comunistas nacionais naquele período – inclusive, com a possibilidade real de eles virarem comunistas.
Sem a Europa Ocidental sob influência norte-americana, a Alemanha Ocidental seria tragada pela União Soviética, principalmente a partir de 1949, quando os soviéticos explodiram sua primeira bomba atômica. Sem a Alemanha Ocidental, Berlim Ocidental não existiria. Sem Berlim Ocidental, a Guerra Fria como a conhecemos nos livros de História seria ficção.
Os acontecimentos entre 1949 e 1953, com os Estados Unidos sob administração de Truman, foram os catalisadores da Guerra Fria. Sem Truman, a reação norte-americana a certos eventos do período, como a bomba atômica soviética, o bloqueio terrestre de Berlim Ocidental, a invasão da Coreia do Norte sobre a Coreia do Sul, entre outros, poderia ter sido bem diferente – para o bem e para o mal.
O engajamento moderno dos Estados Unidos na política internacional, inaugurado por Roosevelt durante a Segunda Guerra Mundial e consolidado por Truman, permanece contínuo até hoje. Todos os presidentes, democratas e republicanos, com maior ou menor grau, mantiveram as mesmas premissas básicas de política externa, em particular a promoção do livre comércio, a defesa da democracia liberal em países relevantes para o interesse nacional, a cooperação militar estratégica contra inimigos potenciais e efetivos, o envolvimento na governança global via instituições internacionais, entre outros. Isso atravessou a Guerra Fria, chegando aos anos finais da Guerra contra o Terror pós-2001.
Donald Trump foi eleito com uma plataforma política que renega essas premissas básicas da política externa norte-americana. Em comércio, ele quer renegociar ou revogar acordos de livre comércio estratégicos para o país, como o NAFTA e a Parceria Trans-Pacífica. Na política, Trump não esconde sua simpatia por regimes e lideranças políticas pouco afeitas a ideias ou práticas políticas democráticas. Na segurança coletiva, o presidente eleito quer afastar os Estados Unidos de seus compromissos de defesa na Europa e na Ásia, rompendo um balanço delicado de forças que vem desde 1945. E, finalmente, nas relações internacionais, os Estados Unidos de Donald Trump podem voltar a um isolacionismo similar àquele do período entre-guerras, nos anos 1920 e 1930, afastando-se de iniciativas multilaterais no âmbito das Nações Unidas.
Neste último ponto, entra uma questão dramática: a agenda de mudança do clima. Por mais que líderes políticos e especialistas tentem relativizar a possibilidade, o Acordo de Paris, assinado no ano passado por mais de 190 países e em vigor desde o último dia 04, está ameaçado sob um governo Donald Trump nos Estados Unidos.
Boa parte das medidas adotadas pela administração Obama nesse campo está ameaçada de extinção já nos primeiros dias do governo Trump. O presidente eleito já afirmou que deseja “renegociar” o Acordo ou, se ele avaliar necessário, “cancelá-lo”. O Congresso, com suas duas casas sob controle republicano, também deverá fazer tudo o que estiver ao seu alcance para desmantelar as regulamentações definidas pelo governo Obama para incentivar fontes renováveis de energia e limitar o uso de fontes fósseis, como o carvão.
A assinatura do Acordo de Paris, depois de anos de negociações longas e frustrantes, foi considerada uma vitória histórica do multilateralismo no século XXI. Sem os Estados Unidos no barco, os incentivos estratégicos para que países como China e Índia aprofundem suas ações de mitigação à mudança do clima diminuem de maneira considerável, o que ameaçaria qualquer possibilidade de contermos o aumento da temperatura média do planeta em 2 graus Celsius até o final deste século. Se tivermos um recuo da ação climática dos países neste momento, qualquer medida tomada depois de 2020 (final do mandato de Trump) pode ser demasiadamente tardia.
Novamente, as respostas do governo norte-americano a um grande desafio global em um período particularmente crucial poderão determinar o futuro do mundo nas próximas décadas.