A família brasileira típica gosta de fartura na despensa e na mesa. Quando esse gosto pela abundância é combinado com a preferência pela comida fresquinha, temos um cenário propício a gerar elevado desperdício
O Brasil é um caso peculiar quanto às perdas e ao desperdício de alimentos. Temos tanto fatores que nos aproximam dos países em desenvolvimento, caracterizados por elevadas perdas pós-colheita e durante o escoamento da safra, quanto características de países mais ricos, nos quais o desperdício é elevado na etapa final em função do comportamento do consumidor. Enquanto a redução das perdas demanda investimentos em infraestrutura para modernizarmos nossa capacidade de escoar a produção agropecuária, o enfrentamento do desperdício envolve mais mudanças comportamentais.
Reduzir o desperdício de alimentos no Brasil deve ser prioridade dos agentes públicos e setor produtivo por razões econômicas, ambientais e sociais. Do ponto de vista econômico, não faz sentido um gigante do setor agropecuário perder em torno de R$3,5 bilhões ao ano no escoamento da safra de soja e milho em função das deficiências logísticas, conforme estima a Confederação Nacional do Transporte. Desperdiçar comida significa também ocupação em vão de terra e consumo desnecessário de água e outros recursos naturais escassos.
O dilema moral do desperdício diante da fome de muitos também é nítido. Enquanto o Brasil joga fora mais do que o necessário para neutralizar a insegurança alimentar no País, apenas um quarto do desperdício agregado dos EUA e Europa é suficiente para alimentar as 795 milhões de pessoas que ainda passam fome no mundo. O Brasil, graças a esforços de pesquisa agropecuária e a programas sociais como o Bolsa Família, saiu do mapa da fome da Organização das Nacões Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mas é preciso ir além. A insegurança alimentar grave foi reduzida de 7%, em 2004, para 3% segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013. Por outro lado, ainda temos 22% da população enfrentando algum estágio de insegurança alimentar, dado que ressalta o paradoxo do desperdício em meio à incapacidade de ofertar a quantidade apropriada de nutrientes para quase um em cada quatro brasileiros.
A redução do desperdício pode ser forte aliada para o combate à insegurança alimentar e também complementar a atuação dos programas sociais. Nesse aspecto, bancos de alimentos têm papel importante para que o excedente do varejo seja escoado a populações carentes. O Brasil ainda dispõe de poucos bancos de alimentos se considerarmos a dimensão do país. O programa Mesa Brasil, do Sesc, principal iniciativa brasileira, dispõe de 87 unidades. Como comparação, somente a rede Feeding America, dos EUA, disponibiliza 200 bancos de alimentos e 60 mil food pantries para a população americana. Enquanto os bancos americanos armazenam as doações da indústria e/ou varejo, as pantries – ou despensas, em tradução literal – servem para distribuir os produtos alimentícios às famílias sem custos.
A Rede Brasileira de Bancos de Alimentos, instituída neste mês de novembro, precisa atrair mais o interesse do setor privado. Para tanto, precisamos desburocratizar o processo de doação de alimentos próximos do vencimento, mas ainda apropriados para consumo. Os casos de sucesso brasileiros, como o Mesa Brasil e as ações da ONG Banco de Alimentos, por exemplo, podem ser fortalecidos se transpusermos alguns entraves legais e a baixa ação articulada dos agentes da cadeia alimentar. Os desafios vão desde a morosidade do Legislativo, por onde a Lei do Bom Samaritano tramita desde 1998, até o relativo baixo alcance de programas de educação nutricional. A base legal é necessária para ampliar a contribuição dos varejistas e da indústria no combate ao desperdício, e sem a educação não conseguiremos mudar a cultura do desperdício que prevalece nas famílias brasileiras, mesmo no contexto da classe média baixa.
A família brasileira típica gosta de fartura na despensa e na mesa. Quando esse gosto pela abundância é combinado com a preferência pela comida fresquinha, temos um cenário propício a gerar elevado desperdício. A mudança cultural demanda campanhas, como a Love Food Hate Waste, que tem alcançado bons resultados na Inglaterra. A iniciativa #SemDesperdicio (www.semdesperdicio.org), parceria entre Embrapa, WWF-Brasil e FAO, também é salutar. Para ganhar mais impulso, novos parceiros da indústria e varejo precisam abraçar a causa. O desafio é persuadir o consumidor sem acusá-lo de culpa. Precisamos educá-los, apontar caminhos, e por que não, incluir a nós mesmos como parte do problema e agentes de ação.
*Gustavo Porpino, 40, foi pesquisador visitante do Food and Brand Lab (Cornell University). É analista da Embrapa e doutor em administração pela FGV-Eaesp.