Cachaça orgânica de Pernambuco planeja exportações com viés socioambiental
Pernambucano entrou para a História do Brasil como celeiro da cana-de-açúcar, riqueza que sustentou o poderio dos antigos engenhos e seus “senhores”, e abasteceu os cofres dos colonizadores e dos invasores holandeses que ocuparam a região no século XVII. A tradição açucareira tornou-se símbolo cultural, influenciando a obra de escritores como Gilberto Freyre [1]. De tudo que foi construído no rastro daquele ciclo econômico, restou hoje em terras pernambucanas basicamente a produção de etanol, o álcool da cana usado como combustível. Ficaram para trás a velha rapadura, o açúcar mascavo, o mel de engenho e a brasileiríssima cachaça – bebida que rompe preconceitos, incorpora valor e busca uma nova história, agora marcada pelo encontro entre inovação e sustentabilidade.
[1] Autor de Casa-Grande & Senzala (1933) e Açúcar: uma Sociologia do Doce (1932), em que destacava as tradições e as disputas de poder e prestígio envolvendo o “ouro branco”
O inconfundível aroma que exala das instalações de uma pequena propriedade rural de Chã Grande (PE), na Zona da Mata, a 82 quilômetros do Recife, protagoniza a retomada. Tudo começou quando o engenheiro mecânico Oto Barreto abraçou o projeto do pai, físico aposentado da Marinha que trocou a capital pela vida mais tranquila na roça. Inicialmente, no cenário do intenso debate ambiental na década de 1990, o plano para obter renda foi investir nas promessas da agricultura orgânica. Mas a aposta não vingou: “Havia muito desperdício e o valor agregado do produto era baixo”, diz o empresário.
Em 2006, Barreto achou um novo caminho: a produção de cachaça. “O produto não tem problema de validade – uma grande vantagem para quem trabalhava com frutas e verduras – e permite melhores condições de preço”, explica Barreto, que se associou ao irmão para raspar as economias e investir R$ 70 mil na instalação dos canaviais orgânicos e da fábrica.
Assim nasceu a Sanhaçu, lançada em 2008 como a primeira cachaça orgânica de Pernambuco. Desde o berço, a marca – inspirada no nome de uma espécie de passarinho presente no Nordeste – adotou como diferencial o apelo da sustentabilidade. A produção familiar orgânica é apenas um dos atributos. Além dela, a eletricidade para mover a fábrica vem de placas solares. A água é bombeada por cata-ventos e os resíduos agroindustriais são aproveitados: parte do bagaço de cana, por exemplo, vira combustível para caldeira e outra parte volta aos canaviais na forma de adubo, mediante a compostagem. Entre as demais sobras, a “cachaça de cabeça” [2] é redestilada para se transformar em etanol usado nos carros da empresa e o vinhoto [3] gerado no processamento da cana retorna ao campo como fertilizante.
[2] Porção inicial da cachaça gerada após destilação. Contém alto teor de substâncias voláteis, danosas ao organismo de quem consome e, por isso, é descartada
[3] Resíduo líquido poluente, de alta carga orgânica, resultante da destilação do caldo de cana fermentado
Educação
Isso tudo está associado a um programa de educação, no qual a propriedade recebe estudantes para o conhecimento de experiências sustentáveis e também para aulas de Geografia e História, uma vez que a região se destaca por ter sediado o primeiro engenho do Brasil, construído no século XVI. Na rota da BR-232, que liga Recife a Caruaru e a diversas cidades do Agreste pernambucano, as instalações da Sanhaçu acolhem cerca de 8 mil visitantes por ano e hoje tanto o turismo rural [4] como o pedagógico já correspondem a 30% do faturamento da empresa, no total de R$ 360 mil ao ano.
[4] Cada turista paga taxa de R$ 10 com direito a degustação da cachaça e visita à fábrica e canaviais
Para além dos aspectos socioambientais, a qualidade do produto é importante pilar do negócio. A produção anual de 16 mil litros abrange três tipos de cachaça, diferenciados pela madeira dos barris em que é envelhecida – freijó, carvalho ou umburana. No entanto, o que mais chama atenção naquele alambique é a música clássica tocada no ambiente onde ocorre a fermentação da cana. “É para melhorar a qualidade da levedura e do processo, tornando-o mais uniforme”, explica Barreto, ao esclarecer que a iniciativa se baseia em relatos de experiências exitosas com produção de orquídeas e outras plantas.
Seja qual for o real efeito da obra de Chopin ou Beethoven para se produzir uma boa pinga, o fato é que a Sanhaçu tem colecionado prêmios, como a medalha de ouro nos concursos mundiais de Berlim e Bruxelas (2016). É considerada a quarta melhor do Brasil pelo ranking da Cúpula da Cachaça – reconhecimento que, somado aos demais, influencia positivamente na agregação de valor ao produto, no momento distribuído para os mercados de Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. O plano é exportar [5], a partir de 2017.
[5] A empresa integra o projeto Inovação e Sustentabilidade nas Cadeias Globais de Valor (ICV Global), conduzido pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces), da FGV-Eaesp, em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil)
Para chegar ao mercado externo [6], a estratégia nos próximos cinco anos está no aumento da produção para 40 mil litros anuais, superior ao dobro da atual. Devido ao elevado custo da certificação orgânica para os pequenos produtores, o plano de negócios da empresa – detentora do selo do IBD há cinco anos – prevê aumentar a escala produtiva com canaviais próprios, que hoje totalizam 7,5 hectares. Uma nova área de 10 hectares está sendo adquirida para dar suporte à expansão.
[6] A exportação brasileira de cachaça somou R$ 13,3 milhões em 2015. No País, há 2 mil produtores formais e mais de 10 mil informais (85% micros e pequenos), com 4 mil marcas. Mais em goo.gl/pdj5XK
Para as exportações, “devemos mostrar nossos diferenciais de modo tangível para quem está longe; não apenas para os que visitam a área”, reconhece Barreto, de olho no mercado colombiano como ponto de partida da empreitada internacional. Os tempos mudaram. Práticas de sustentabilidade têm potencial de abrir espaços aos novos “senhores de engenho”.
Sanhaçu
www.sanhacu.com.br
Microempresa
Setor: Bebidas & Alimentos
Faturamento em 2015: R$ 360 mil
Funcionários: 5
Fundação: 2006
Principais clientes: Distribuidores de bebidas em Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Visitantes recebidos nas atividades de turismo rural e pedagógico.
O que faz: Produz cachaça artesanal orgânica certificada. A empresa realiza também atividades de educação ambiental para visitantes.
Inovação para a sustentabilidade: Os resíduos agroindustriais são 100% aproveitados. O bagaço alimenta a caldeira e o vinhoto se junta ao esterco para produção do adubo. A energia consumida é gerada no local por painéis fotovoltaicos. A água utilizada na limpeza da fábrica é captada da chuva e reaproveitada para irrigação. A empresa também busca novas tecnologias para capturar carbono e comercializá-lo na forma de CO2 comprimido.
Potencial: Meta de crescer 15% ao ano, apostando no mercado crescente de consumidores que demandam produtos com atributos de sustentabilidade, além da qualidade. A renda proveniente dos convênios com escolas e universidades representa cerca de um terço da receita. O serviço possui potencial de sensibilizar estudantes em como trabalhar e produzir de forma socialmente justa e harmônica com o meio ambiente.
Destaques da gestão: Compensa emissões de carbono, plantando anualmente 3 mil mudas de árvores nativas com o objetivo de recompor a flora original da Mata Atlântica em que está inserida. Emprega métodos de produção por gravidade, que permitem economia de energia. Possui boas práticas de relacionamento com clientes e orientação aos consumidores.