Por sofrer duplo preconceito, a negra é merecedora de atenções especiais no movimento feminista
O sociólogo Michael Kimmel, em um vídeo no TED, lembra o momento em que uma grande ficha lhe caiu. Em um grupo de estudos, durante uma conversa sobre feminismo entre duas mulheres, uma branca e outra negra, a primeira afirmava que todas possuíam um tipo de solidariedade, devido ao regime patriarcal. Mas a negra discordou e lançou uma pergunta: “Quando você acorda e se olha no espelho, o que você vê?” A branca disse: “Vejo uma mulher”. A outra respondeu: “Quando eu acordo e olho no espelho, eu vejo uma mulher negra. Para mim, raça é visível. Mas, para você, é invisível”.
A falta de um olhar racial sobre o movimento feminista tem invisibilizado as mulheres negras e suas lutas, vítimas de uma combinação de opressões em razão de questões de raça, classe e outras formas de discriminação, segundo a filósofa e ativista Angela Davis. Em seu livro Mulheres, Raça e Classe, de 1981, recentemente lançado em português pela Boitempo Editoral, Davis denuncia o racismo existente no movimento feminista. Judith Butler, também filósofa, ressalta que o discurso universal é excludente e que é preciso levar em conta as especificidades das mulheres.
Fã de Davis e de Butler, a filósofa política Djamila Ribeiro, em uma entrevista à Página22, afirmou que “o racismo cria uma hierarquia de gêneros, colocando a mulher negra em uma situação muito maior de vulnerabilidade social”. Ribeiro, que se tornou uma voz ativa no debate atual sobre mulheres negras, inclusive nas redes sociais, chega a dizer que as feministas brancas tratam a questão racial como birra e disputa.
Enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, a luta das negras era bastante diferente. “As mulheres de África foram sequestradas e trazidas para o Brasil já para atuar em trabalhos pesados”, lembra Maria Sylvia Oliveira, sócia efetiva e presidenta do Geledés ‒Instituto da Mulher Negra. Sem nenhuma distinção de gênero, as escravas trabalhavam tanto quanto os homens. “Quando as brancas começam a reivindicar o direito a trabalhar e a igualdade de condições com os homens, as negras em grande maioria já estavam trabalhando, desde a abolição, inclusive para as brancas. Elas partem de uma outra agenda…”, comenta Oliveira.
Nos Estados Unidos, na década 1970, as negras já começavam a denunciar a sua invisibilidade dentro do movimento feminista. Levou cerca de dez anos para essa pauta chegar ao debate brasileiro e começar uma luta real que considerasse não apenas gênero, mas também a raça entre as feministas.
Por outro lado, o movimento negro, orientado majoritariamente por homens, também não se mostrava capaz de entender o papel da mulher e acreditava que, se a situação do racismo fosse resolvida, as causas das mulheres também seriam. Foi Lélia Gonzalez, uma das precursoras do feminismo negro no Brasil e cofundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, quem começou a falar sobre o machismo no movimento racial no Brasil. “Na década de 1980, as mulheres negras começam a se organizar para que suas reivindicações fossem colocadas e, em 1998, criamos o Instituto Geledés, que nasce a partir dessa trajetória histórica”, lembra Oliveira ao falar da origem do instituto.
“Eu não sou mulher?”
O começo do movimento feminista lutava contra a ideia de que a mulher devia ser apartada do restante da sociedade, com o objetivo de garantir a função de parir e proteger a espécie. Mas, enquanto as brancas eram superprotegidas, as negras eram tratadas como iguais aos homens. Durante a escravidão, seus filhos eram vendidos, trabalhavam a mesma carga horária que os homens, comiam a mesma coisa e, ao contrário do sexo oposto, eram frequentemente vítimas de estupro pelo senhor, cuja mulher branca estava no resguardo.
Em sua tese de doutorado, Diana Helene Ramos ressalta que, após a abolição, as ex-escravas, lavadeiras, empregadas, serviçais e outras trabalhadoras enfrentavam o “estigma de puta”, pelo simples motivo de circularem fora do âmbito privado das casas. Com isso, enquanto a sexualidade da senhora branca estava restrita aos círculos familiares para fins de procriação, a mulher negra carregava a imagem da escrava submetida ao uso sexual dos senhores, fora da vida familiar.
Por isso, as mulheres negras da época chegavam a questionar-se: “Eu não sou mulher?” Essa provocação de Sojourner Truth, ex-escrava que se tornou oradora, marcou seu discurso na Convenção dos Direitos das Mulheres em Ohio, em 1851. A mulher negra era agricultora, fazia o trabalho pesado, assim como os homens, carregava peso e também ajudava a mulher branca a subir na carruagem.
E esse olhar sobre as mulheres negras persiste até os dias de hoje. Day Rodrigues, diretora do documentário Mulheres Negras: Projetos de Mundo, diz que “nós [mulheres negras] precisamos arcar com o peso do racismo e machismo e habitar uma pele estereotipada, como a preta que é jogada ao trabalho doméstico, e das ditas ‘pardas’ para o sexo”.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra e, principalmente, da mulher negra. Seu corpo é vendido como produto de exportação. Mulata, gostosa… E é ainda mais objetificado no Carnaval”, lamenta Oliveira, que aponta também a mídia como uma força de reprodução e disseminação de estereótipos relacionados à hipersexualização.
Violência negra
Uma em cada três mulheres é vítima de violência no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. Embora no imaginário das pessoas a violência só ocorra quando uma mulher é agredida fisicamente, há outras sutilezas. Uma mulher pode ser agredida física, sexual, moral e psicologicamente.
Muitas vezes mascarada por ciúmes, controle, humilhações e ofensas, a violência psicológica é pouco falada. “Os dados do Ligue 180 trazem um índice pequeno de denúncias de violência psicológica, mas esse número está sub-representado”, acredita Oliveira, que diz que este é o tipo de violência mais comum contra a mulher negra.
No Brasil, a violência contra a população negra é bem maior do que contra a branca. Morrem 2,6 vezes mais negros que brancos, por arma de fogo, segundo dados do Mapa da Violência 2016. Mas a situação das mulheres negras é ainda mais vulnerável. A violência contra elas, que pode chegar a não se concretizar como homicídio, cresceu cerca de 190% entre 2003 e 2013. Nesta mesma década, enquanto o número de assassinatos de mulheres brancas diminuiu em 10%, esse indicador subiu para 54% entre as negras, segundo o “Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil“, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da ONU Mulheres.
Os vários tipos de violência contra a mulher podem ser denunciados à Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência ‒ Ligue 180, canal que recebe denúncias como cárcere privado, assédio sexual ou tráfico de pessoas. Ele funciona durante 24 horas e pode ser acionado de qualquer lugar do Brasil e de alguns outros países. Criado em 2005, este disque-denúncia é oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, tem amparo da Lei Maria da Penha, e fornece uma base de dados de apoio à formulação das políticas para o governo nessa área.
A Lei Maria da Penha foi um passo importante na luta das mulheres, mas seus resultados não foram tão positivos para as negras quanto para as brancas, como mostram os alarmantes números de feminicídio. Esse termo está previsto na legislação e pode ser descrito como o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher, ou seja, quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Cuidado com outros estereótipos
Além de lutar contra a hipersexualização e a violência contra a mulher negra, o feminismo negro tem ainda de enfrentar outros estereótipos. Nos filmes e séries é muito comum ver personagens femininas mal desenvolvidas, criadas apenas para dar apoio ao papel protagonista dos homens nas histórias.
O Teste de Bechdel busca identificar em obras de ficção a falta de representatividade feminina na literatura, teatro ou cinema. Muitos filmes clássicos, por exemplo, não passam nesse teste, como Um Corpo que Cai, Blade Runner, Forrest Gump e também filmes com mulheres protagonistas como Gilda ou Quem Tem Medo de Virginia Woolf.
Mas, quando a personagem é negra, há ainda outros agravantes. Uma paródia promovida pelo SourceFed sobre a construção de personagens femininas precárias mostra um padrão de personagem, geralmente, negra e gorda que é frequentemente colocada como o alívio cômico da história e como uma espécie de “cota de minorias” nos filmes.
Algumas diretoras negras no Brasil começam a contar suas histórias, cheias dos mais diversos conflitos, sobre o que é ser uma mulher negra nessa sociedade. Yasmin Thayná, nascida em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, é diretora e roteirista do filme KBELA, uma experiência cinematográfica sobre a opressão que sofrem as mulheres negras que as faz anular suas características para estar perto de um padrão, como o uso absurdo de químicos para alisar os cabelos.
O curta Cores e Botas, de Juliana Vicente, retrata o sonho de uma menina negra no fim dos anos 1980 e início dos 1990 que quer ser paquita da Xuxa, mas tem seu desejo frustrado pelo padrão de meninas brancas e loiras do programa de televisão. “Nesta época, a gente não tinha nenhuma referência negra na TV e o programa da Xuxa foi um ícone disso”, lembra Vicente. Cores e Botas foi lançado em 2010 e fala de uma época de 20 anos atrás, mas Vicente lamenta o fato de ele ainda ser considerado um filme atual. “A situação do negro brasileiro continua igual.”
Em meio a tantos rótulos, a mulher negra quer apenas ter liberdade para representar o que ela quiser. Uma crítica feita aos movimentos feministas negros é que só um aspecto costuma ser retratado, que é a questão da hipersexualização.
Sob a bandeira da luta contra essa hipersexualização, há o perigo de reforçar outro estereótipo racista e sexista: a da negra que precisa ser policiada e controlada pela sociedade (geralmente através da polícia) “para seu próprio bem”, comentam Ana Paula da Silva e Thaddeus Gregory Blanchette, em um artigo ao blog O Mangue.
“A sexualidade das jovens negras está sendo cada vez mais colocada sob uma ótica disciplinar e repressora em nome do ‘combate a exploração sexual’. Enquanto isso, quando a filha adolescente branca da Xuxa começou um namoro com um ator adulto, não houve nenhuma discussão sobre se isso constituía ‘exploração sexual’: sendo jovem e branca, você tem o direito de desenvolver sua sexualidade do jeito que quiser, desde que não machuque ninguém e não viole a lei. Sendo negra…”, escrevem Silva e Blanchette, ao defender que nenhuma pessoa deve ser obrigada a rejeitar a sexualidade em sua vida.
As constantes articulações políticas das feministas negras, as redes sociais e as mídias independentes têm viabilizado um maior alcance desse debate. O movimento produz muito conhecimento e tem conseguido penetrar nas faixas mais jovens conectadas ao mundo digital. O blogueirasnegras.org é um exemplo disso. Uma comunidade online com mais de 1.300 mulheres produzindo conteúdo para o blog, que nasceu em 8 de março de 2012, Dia Internacional da Mulher, por iniciativa de um grupo de blogueiras negras a fim de amplificar suas vozes.
Mas é preciso também trabalhar a cultura da sociedade como um todo. Regiane Soares, ativista do feminismo negro, explica nas redes sociais por que transformar padrões nocivos da sociedade só é possível a partir de uma mudança nas escolas. “Dos estudantes do Ensino Fundamental, 47% acreditam que a culpa da violência contra mulher é da mulher”, comenta Soares, que afirma que a escola é o primeiro contato de convivência com o diferente.
Acontece que o sistema educacional não facilita a comunicação dessas causas. Essa recusa em reconhecer as contribuições de autores negros ou até mesmo da história da África é chamada de epistemicídio. “As escolas não contam a verdadeira história do Brasil. Até hoje o movimento briga para que a Lei nº 10.639 [que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira] seja implementada”, diz Oliveira.
E essa luta vai se tornar ainda mais difícil. Com a recente aprovação da lei da reforma do Ensino Médio, as aulas de história deixam de ser obrigatórias. Oliveira conclui que “as consequências [da reforma] são nefastas. Quem mais vai perder são os pobres, que são em maioria negros. O governo está tirando a possibilidade de uma parcela da população aprender a pensar e alijando essa parte da sociedade de pensar o Brasil”.